Fantástico documental

Leonardo Sette é daqueles realizadores que colocam em xeque o gênero cinematográfico ao questionar a relação entre ficção e documentário. Já em Ocidente (2008), seu primeiro filme, o diretor põe em crise essa dualidade ao nos apresentar um filme que não se define nem por ficção, nem por documentário, nos termos tradicionalmente conhecidos.

Em Porcos Raivosos (dirigido por Leonardo Sette em conjunto com Isabel Penoni), selecionado neste ano para a Quinzena dos Realizadores em Cannes, as mulheres da tribo Kuikuro encenam um mito indígena em que os homens se transformam em porcos raivosos. Tudo é filmado dentro de uma oca, exceto o plano final. E, dentro dessa oca, as mulheres da tribo se preparam para se defender dos homens, agora transformados em porcos raivosos.

A encenação do rito se torna a história do filme, ao mesmo tempo em que poderia ser considerada como um arquivo documental. Acredito que essa dualidade intencional existe não porque o diretor queira colocar em crise esses estatutos (crise já bastante explorada), mas sim porque não acredita nessa divisão. É muito interessante ver um rito indígena ser encenado em frente à câmera, para a câmera, e ao mesmo tempo servir como registro documental.

A interpretação das atrizes e seu empenho são surpreendentes, fruto de um bom trabalho na direção de atores. Em muitos filmes indígenas que vi (filmados por eles, ou com atores indígenas), é notável o desconforto que a câmera causa. Em Porcos Raivosos, as mulheres da tribo executam seu ritual com uma veracidade notável; ao apontar suas estacas em direção à câmera, parece que é o espectador que está sendo mirado.

É bom relatar que essas são as impressões de alguém que nunca presenciou um ritual indígena ao vivo. Posso estar redondamente enganado. Fiquei muito curioso para saber o que elas cantam durante o ritual.

O curta de Leonardo e Isabel encena um mito e o representa dentro do espaço de uma oca, que, ao final, se mostra incompleta. Apenas metade dela tem palha, possibilitando que seja utilizada luz natural para a gravação. É interessante que nunca vemos os porcos raivosos e o único homem da história é o índio que entra na oca para dar a notícia terrível.

Porcos Raivosos conta uma história fantástica (sobrenatural) sem utilizar nenhum recurso mirabolante, apenas uma oca, um grupo de mulheres, seu rito e a luz do Xingu. O curta de Leonardo e Isabel faz muito com pouco.

Renato Batata

Porcos Raivosos está na Mostra Brasil 4. Clique aqui para ver a programação do filme

A história não importa

Cowboy é um daqueles curtas que logo de cara você já sabe o que está por vir, mas não, não é nada daquilo que você está pensando. O filme surpreende no segundo ato, quando percebemos toda a complexidade da história.

O documentário de Tarcisio Lara Puiati traz uma mensagem além das histórias e das imagens. Subjetivamente, estão descritos todos os preconceitos que temos com as pessoas que possuem alguma deficiência física.

Cowboy é um sujeito que não possui um braço. Ao acompanhar o personagem pela cidade, vamos escutando as histórias, que não sabemos se são reais ou fictícias. Mas, por trás de cada uma delas, está toda a intenção do diretor em nos mostrar que, para apreciarmos plenamente o curta, não importa qual delas é a verdadeira. Todas trazem a mesma mensagem, porém de um ponto de vista diferente.

Muitos dos curtas produzidos atualmente caem na obviedade, porém, em Cowboy o diretor usou uma forma incomum para nos trazer uma reflexão sobre um tema que já foi muito utilizado; não fosse pela precisão de Tarcisio, seria muito fácil cair no clichê. Ótimo filme que merece ser apreciado.

Rodrigo Ferro

Cowboy está na “Mostra Brasil 7”. Clique aqui para ver a programação do filme

Entre a fé e a “perdição”?

Ainda durante os créditos iniciais, uma voz off de depoimento, falando em vida, sofrimento, mundo e Deus. Logo após, outra voz externa, um rádio, locutor popular, relembrando os momentos iniciais de O Bandido da Luz Vermelha (1968), que fala de um crime passional.

Um hospital. Voz externa em oração. Montagem rápida intercalando insinuações de uma operação, e apresentações em um cabaré. Vemos, então, um órgão genital masculino, inerte, ensanguentado, posto em uma bandeja hospitalar; pode simbolizar morte de uma identidade para nascimento de outra, mas também, e isso parece reverberar no curta, uma forma de castração, gerando sofrimento.

A oração continua. Estamos dentro de uma igreja envolta em luzes celestiais. Em seguida, sem a oração, voltamos ao “inferninho”. O protagonista transexual Joel(ma) seguirá desafiando o senso comum, sendo, de sua forma extremamente religioso(a), vítima de conflitos internos.

O filme trabalha em sua montagem com uma lógica que combina antecipação e retorno. Depois de voltar para a cidade natal acompanhada de um companheiro é que descobrimos como a relação começou, mas temos também o prenúncio de uma prisão, antes de um julgamento, e um julgamento antes da consumação de um crime.

É de se pensar se essas alterações cronológicas da narrativa evocam, na verdade, o pré-julgamento social das escolhas de orientação sexual tomadas por Joelma, que nasceu em um rincão nordestino de atmosfera oligárquica (remetendo ao município de Sucupira, no Bem Amado de Dias Gomes).

Falando em “evocações”: voltemos ao locutor de rádio, que anuncia a abertura da nova delegacia da cidade em um carro que passa. Ele enfatiza o aumento de capacidade da retenção (“Para mais de 20 presos”) e o dado bizarro: o primeiro detento capturado ganhará um rádio de pilha (anúncio de “modernidade” e pompa, de novo, a mesma que toma Odorico Paraguassu quando da inauguração do cemitério de Sucupira). Nesse exato momento, Joelma retorna; há uma insinuação de tragédia por vir.

A ironia que une “céu” e “inferno”, espírito e carne, igreja e cabaré, torna o curta uma espécie de obra levada a cabo por um “Almodóvar Agreste”: o transexual tenciona abrir o seu templo, mas um auxilar nessa tarefa tenta estuprar Joelma. O ex-mendigo, atual marido desta, arrisca-se a defendê-la, mas acaba morto pelo agressor, que é morto, em legítima defesa, pela protagonista.

Qual a saída depois de constatado o crime? A culpa cristã acomete Joelma; ela se entregará, roupas sujas de sangue, faca ainda na mão. Recebe das mãos do próprio delegado, dentro da “jóia da coroa” local, o rádio ao qual tem direito, ironia máxima, tocando uma melodia religiosa erudita.

A assassina terá seu pecado maior expiado, será inocentada pelo juiz Edmundo da Crucificação. Outro sarcasmo do filme, unindo o mundano e o divino em uma mesma lei, não sem um riso patético (nos dois sentidos, trágico e ridículo).

Ao final, Joelma terá voltado ao mundo da “carne”? A última cena diz que sim, mas a estrutura narrativa de idas e voltas do filme nos deixa na dúvida. A única certeza, também irônica, logicamente é a de que, graças a Deus, não vivemos em uma teocracia, que proibiria a existência de uma personagem com esse tipo de contradição, entre fé e “perdição”. Mas apenas Bolsonaro e seus asseclas ainda creem que isso só existe na ficção de “mentes doentias”.

Rafael Marcelino

Joelma está na Mostra Brasil 1. Clique aqui para ver a programação

Marcando posição nas sombras

A diretora Juliana Rojas achou seu lugar. Um lugar estranho, mas que já a coloca como um dos nomes importantes do cinema brasileiro, ressoando também além de nossas fronteiras.

Seu curta O Duplo sedimenta um estilo. Mostra Juliana como cultora de um realismo fantástico com tintas de terror e sua inserção no cotidiano, seguindo uma construção elíptica e de pequenas catarses que remetem ao cinema de Lucrécia Martel e um certo terror atmosférico oriental – Kiyoshi Kurosawa é um dos nomes que me vêm.

O curta narra o encontro de uma professora com seu duplo e as consequências disso. As informações são preenchidas aos pouco. Juliana e equipe são hábeis em trabalhar com esses elementos como, por exemplo, não situar diretamente o tempo em que se passa a história, brincando com o texto introdutório que cita o caso de uma professora no século 19. A trama do curta se passa atualmente e é uma pequena surpresa quando surgem elementos modernos. Coisas assim vão se avolumando até a quebra entre impressão e real no encontro de pais no auditório, e o violento final.

A figura do duplo é recorrente no cinema fantástico. Outro elemento que surge é do vampiro, em um registro mais próximo do canibalismo, como o que Claire Denis fez no longa Desejo e Obsessão (2001). Denis também pode ser citada como influência para o estilo de Juliana, com sua concisão sensorial.

Esse limite com o fantástico não é tão bem visto na história do cinema brasileiro, mesmo com nomes como José Mojica Marins e Fauzi Mansur tendo feito trabalhos extraordinários. Sempre bom ver alguém traçar esse caminho com elegância e expandindo esses limites, já deixando sua marca de excelência.

Carlos Alberto Farias

O Duplo está na Mostra Brasil 8. Clique aqui para ver a programação do filme

Uma ética de cumplicidade

A Cidade começa com um plano de ambientação, o bastante para saber que existe uma certa “ironia inevitável” no seu título. O que um espectador urbano pode fazer é chamar o local, no máximo, de “vilarejo”. Até o som do vento, que certamente não encontra prédios em seu caminho, é perceptível.

Uma mulher idosa dirige um Fusca, por caminhos de terra, e depois parcialmente asfaltados. A dinâmica de montagem parece acompanhar o movimento do veículo, com cortes em planos de detalhe da mão da personagem passando as marchas, ou seu pé pisando no acelerador, antes de adentrarmos o ambiente da narrativa.

Esse é o único momento do filme em que existe de fato alguma referência ao que pode ser veloz. Daí para a frente sobram tempos, esperas e memórias.

Todos os indivíduos colocados diante da câmera nesse documentário têm mais de 60 anos. Aparecem principalmente em suas casas, falando sobre doenças, entre outras coisas. Não seria exagero dizer que as próprias paredes das construções parecem filmá-los. A abordagem do filme com relação aos espaços e às pessoas que encontra é a de observação paciente. Os próprios idosos, que são apenas 35 no total, dizem claramente esperar, entre conversas e jogos de bocha, “que algo aconteça”.

Algo acontece. Vemos pessoas trabalhando em uma cozinha industrial, único vestígio de “progresso técnico” que o filme mostra para além do carro do início. Há um grande bolo sendo preparado, uma fanfarra juvenil aparece e toca. Um salão com algumas mesas preparadas… E tudo acaba, com  pucos comentários residuais posteriores.

Sequência com sete personagens na praia. Falam de suas memórias afetivas, casamentos, namoros. Aqui, pode-se pensar que a fotografia corrobora uma sensação geral que permeia o filme como um todo, mas recebe ênfase nesse  trecho: a luz solar ganha tons marrons, quase sépias, num momento em que se tem a plena certeza de que o presente daqueles que falam é construído de “remontagem dos cacos” do passado. Até o agora já passou.

A sequência da praia se encerra com uma senhora que canta “Quem Sabe”, que ganhou o status de emblema do século XIX e da primeira metade do XX no cinema historiográfico brasileiro. Não posso dizer com certeza se o ato de cantar foi totalmente espontâneo (o que a lógica “observacional” assumida pelo curta-metragem quer supor) ou pré-combinada (o que minha consciência sobre as “encenações negociadas” do documentário presume). O fato é que a letra da música parece constatar a relação entre o tempo, as lembranças e os seres humanos aí envolvidos (“Tão longe/De mim distante”…) e do próprio filme para com essas pessoas (“Onde irá/Onde Irá/Teu Pensamento?”).

Uma possível resposta ao perguntado na canção: imagens de arquivo do surgimento dessa cidade de Itapuã (RS), acompanhadas de cartelas de texto, explicando a condição extraordinária de surgimento do local: era uma colônia de isolamento compulsório para acometidos de hanseníase, popularmente conhecida como lepra, nos idos de 1940. Três décadas depois acaba o isolamento, mas quem não tem relações externas, mesmo curado, fica.

A pergunta que fica ecoando nos personagens: o que fazer lá fora?

Voltamos aos olhares para dentro das casas, agora se entende uma certa “claustrofobia aceitável” atuando no próprio método do filme. O isolamento, antes forçado, agora é desejado. E A Cidade assume uma ética de cumplicidade com os que lá estão, e que atinge e conquista o público.

Rafael Marcelino

A Cidade está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme

Memória, chumbo e cinzas

O momento da história do país mais revisitado pelo cinema nacional é, sem dúvidas, o período que compreende a ditadura militar iniciada em 1964. Filmes documentais, ficcionais ou experimentais reconstituem, cada um à sua maneira, a violência do poder institucionalizado, a supressão de direitos civis e políticos e a luta de todos os que se colocaram na linha de frente, armados ou não, pela defesa da democracia e liberdade de expressão.

A vasta produção sobre o tema, no entanto, não impede que o cinema contemporâneo brasileiro continue a se debruçar sobre os chamados “anos de chumbo” com criatividade, originalidade e crítica. Um dos melhores exemplos é Ser Tão Cinzento, premiado no É Tudo Verdade e no Festival de Brasília. O diretor Henrique Dantas apropriou-se de diferentes linguagens para contar a história da perseguição política sofrida pelo cineasta Olney São Paulo.

A partir da projeção de Manhã Cinzenta (1969), uma das mais marcantes obras de Olney, nas paredes de uma construção em ruínas com elementos do cenário que remetem às torturas, quem não sabia a situação em que o realizador baiano Olney foi preso passa a conhecê-la.

E quem já sabia acompanha uma riquíssima série de depoimentos. Profissionais da equipe do filme e outros cineastas contam sobre as filmagens, falam das circustâncias em que Olney foi perseguido, preso e torturado, vindo a falecer em 1978. Orlando Senna, José Carlos Avellar e Luis Paulino dos Santos são apenas alguns dos entrevistados.

Da instalação que reproduz a obra de Olney, o espectador guarda algumas das mais belas imagens da única cópia que restou do filme, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Dantas traça um panorama político e da própria história do cinema brasileiro.

Se Manhã Cinzenta já fazia a crítica ao contexto da época — ao falar de um país imaginário da América Latina em que os estudantes manifestam-se, são presos e interrogados por um robô –, o curta de Henrique Dantas alia o experimental ao documental para refletir, e não apenas sobre os abusos da ditadura; para relembrar e trazer à tona para o público a importância de pessoas muitas vezes esquecidas na nossa memória como Olney São Paulo, a quem Glauber Rocha chamava de “mártir do cinema brasileiro”.

Camila Fink

Ser Tão Cinzento está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme

Ponto de ruptura

Torquato Joel é um realizador de filmes raros, que comunicam sem utilizar a palavra escrita, que contam histórias somente por meio da imagem e do som.  A sensação de assistir ao seu último filme na tela grande é indescritível. O realizador disse que Ikó-Eté é o primeiro de uma série de filmes-manifesto a serem produzidos nos próximos anos. Feito com baixíssimo orçamento, o que só engrandece seu feito, esse curta preserva traços comuns a outros filmes do realizador paraibano.

Como Passadouro (1999) e Aqui (2009), o novo filme de Torquato trabalha a linha narrativa por meio de imagens presentes no cotidiano de seus personagens. A televisão presente em Passadouro reaparece em Iko-Eté, mas desta vez ela não é mais objeto de fascínio e alienação. Não existe mais espaço para a televisão, assim como para os produtos da sociedade de consumo e até para a religião.

Iko-Eté marca um ponto de ruptura com os filmes anteriores de Torquato. O registro do passado, como em Aqui, e a narrativa que nos mostra a vida rudimentar no campo e a influência exercida pelo exterior, como em Passadouro, surpreendentemente integram Iko-Eté. Desta vez, no entanto, Torquato nos impulsiona a algo.

Os índios potiguaras, famosos pela bravura e pela resistência ao domínio português, habitam até hoje a Paraíba. E é num desses índios que um boia-fria se torna quando não suporta mais a religião, os meios de comunicação e o consumismo. Quando não suporta mais sua condição de vida e não vê outra alternativa de mudança.

Em uma região canavieira da Paraíba, nosso personagem bóia-fria se despe de suas vestes e parte para a mata, num transe em que surge sua essência indígena, potiguara, guerreira. A transformação do boia-fria em guerreiro-índio aponta um novo caminho no cinema desse talentoso cineasta e professor paraibano.

A revolta esteve presente em seus filmes; uma revolta velada, silenciosa, como se estivesse acumulada em anos e anos de sedimentação. O que Ikó-Eté realiza é a passagem para a ação. A ação contra o status quo, a usina de cana, a devastação da mata, a condição de pobreza, a vida alienada. Jesus não é a solução para o bóia-fria potiguara, muito menos o pastor e seu discurso transmitido pela televisão. A mensagem religiosa repetitiva e maçante surta o trabalhador ao invés de mantê-lo sob controle.

Se Torquato Joel pretende fazer mais filmes manifestos como Ikó-Eté, mal posso esperar pelo próximo. A transição do cinema de Torquato marcada por Iko-Eté deve levar a filmes ainda mais instigantes e que revelam muito sem “dizer” nada.

Renato Batata

Ikó-Eté está na Mostra Brasil 4. Clique aqui para ver a programação do filme

Medo de quê?

Os Mortos-Vivos, terceiro curta da diretora e roteirista carioca Anita Rocha da Silveira, é um filme de terror ? É, mas de onde vem o medo no filme? Isso cada um deve achar da sua maneira. Eu tenho a minha.

O curta está na Mostra Brasil 6, junto com outros bons curtas brasileiros, mas se destacou na abordagem do tema, que não é de zumbis. Mostrando um mundo jovem, de maneira menos particular como em seus outros curtas O Vampiro do Meio-Dia (2008) e Handebol (2010), Anita conta a história de um grupo de garotos e garotas que vivem no  Rio de Janeiro, indo a festas e à praia, tentando achar alguém para se completar, nem que seja em apenas um beijo. Porém, de alguma maneira, o pior acontece e elas acabam sempre ficando sozinhas.

O filme segue o personagem de João Pedro Zappa (presente em todos curtas da diretora). Ele conta uma história macabra de um casal que sofre um acidente doméstico com gás enquanto toma banho; a garota morreu, mas o cara ainda não. Essa história traz o elemento mais importante do filme: uma hora ela está lá e depois não está mais. Ideia codificada na sinopse: “Bia está off-line. As mensagens enviadas serão entregues quando Bia estiver on-line”.

Bia, interpretada por Clarice Lissovsky, é a ficante do João, que desaparece sem mais explicações em uma balada a que eles vão com um grupo de amigos. O último e único plano dela é um longo,“interminável” e profundo take onde ficamos desconfortáveis, a ponto de pedir para sair da sala perante o olhar marcante da atriz mirando o vazio completado por nós enquanto anda em uma fila de banheiro feminino.

O desaparecimento da garota mexe com o rapaz, que tenta a encontrar na internet, no celular e nada. O vazio toma conta dele e então o processo se repete quando ele se envolve com sua amiga, interpretada pela atriz Anita Chaves.

O medo vem desse vazio e sentimento de abandono que chega quando a pessoa por quem você se interessa, ou de que gosta, desaparece da sua vida sem mais nem menos. Uma metáfora das relações passageiras e insignificantes da geração atual? Talvez.

O filme traz ainda muitos elementos que à primeira vista não dá para entender, como o monumento da pirâmide e a esfinge, entre outros, usados para criar o sobrenatural em uma história de realismo fantástico muito bem executada.

Gabriel Ribeiro

Os Mortos-Vivos está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme

Uma pérola multicolorida

O sertão nordestino faz, de alguma forma, parte de nós. Do morador que ali vive sob o sol ardente ao mais urbanoide dos brasileiros, nos sentimos um pouco parte daquela realidade. Talvez pelas diversas apropriações já feitas, seja pelas pinceladas dos Retirantes, com os Miguilins das letras, com as imagens de um sertão que vira mar e um mar que vira sertão, ou com as melodias das asas brancas.

Dia Estrelado, pérola de estreia de Nara Normande, reúne essas e outras referências em um corpo único e original. Não por seu enredo, mas pela tradução estética do tema em uma belíssima animação stop motion. O roteiro é simples: uma família em busca da sobrevivência em um lugar pobre e árido. Tão seco que uma gota d’água vira pedra. Contrastam com essa “não-vida” as cores fortes e a textura do expressionismo de Van Gogh. O céu do cenário foi inspirado na obra Noite Estrelada e reproduz as grossas e largas pinceladas do artista.

Feita com massa de modelar, bonecos de arame articulados e muita paciência — quatro anos de trabalho –, a animação dialoga com todas as artes, e leva para o cinema esse drama sem um tom piegas. A realizadora pernambucana acerta a mão na poesia e no realismo, presente no piscar de olhos dos personagens, nos detalhes dos cabelos e na única flor que ainda tenta sobreviver. Uma metáfora do sertanejo, “antes de tudo, um forte”.

A perfeição técnica dos movimentos e da fotografia, trabalhada em conjunto com as mudanças de tonalidades da massinha, produz um efeito naturalista. No entanto, a diretora também deixa espaço para o humor e o lúdico, preenchendo essas vidas secas com uma graciosidade e uma paleta de cores infinitas.

Camila Fink

Dia Estrelado está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme

A arte de reproduzir

A mostra Cinema em Curso não rolou na última edição do Festival Internacional de Curtas de São Paulo, mas volta, reestruturada, para a 23ª edição. Curtas de diversos cursos de audiovisual de universidades paulistas vão rolar durante a semana, e quem acaba chamando a atenção são os produzidos na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

O curso de audiovisual da ECA é famoso por muitos motivos. Um deles são os vídeos que começaram a rolar na internet mostrando um tipo de exercício realizado por todos alunos de primeiro ano. Os vídeos consistem em  reproduções de cenas escolhidas de filmes da preferência dos grupos. Em muitos deles, é espantosa a qualidade da reprodução, e é exatamente essa habilidade em reproduzir filmes marcantes que chama a atenção em O Fim do Filme, de André Dib.

A cena inicial mostra o que seria o final de um típico western, em que os enquadramentos são uma reprodução muito fiel de Era uma Vez no Oeste (1968), clássico do diretor italiano Sergio Leone. No momento climático, embalados por uma música dramática e um tiro, somos levados até onde realmente a história vai se passar. Em uma videolocadora.

João Lucas, personagem principal, é um dos funcionários dessa videolocadora e tem a infeliz mania de revelar o fim dos filmes para os clientes da loja. Isso lhe causa muitos problemas, até ele encontrar uma garota que gosta disso, pois ela sempre aluga o mesmo filme em busca do significado aparentemente inexistente do final. Temos aí a dica para um romance que pede por um final feliz.

Eu também já estou contando o final do filme para vocês; é um final feliz. Mas, como diz a personagem da atriz Gabriela Cerqueira, a mocinha, às vezes o mais importante é o processo. No caso, é realmente isso. A história se passa de uma maneira que não difere em nada de tantos outros romances que vemos por aí, mas, por ser bem feita, é gostosa de ver.

Como estudantes de cinema, os realizadores estão de parabéns por mostrarem um trabalho muito bem finalizado, profissional. Como realizadores, mostraram que são cinéfilos, agregando elementos de outros filmes para compor o deles. Histórias como essas já deram muito certo; é esperar para ver.

Gabriel Ribeiro

O Fim do Filme está no Cinema em Curso 2 e também no Panorama Paulista. Clique aqui e veja a programação do filme