FETICHES AUTOMOBILÍSTICOS DO CAPITALISMOPer Capita, de Lia Letícia

por Kimberly Palermo

Ofegante, uma mulher desperta de um pesadelo em sua luxuosa casa, com direito a vista para o mar. Três playboys arranham, quebram e se esfregam num carro à noite. Uma videoinstalação apresenta um mosaico de telas – vitrines de videogames, filmes e clipes musicais – como as de O homem que caiu na terra (1976).

Elite, violência e consumo – é a partir do entrelaçamento desses três motivos que a diretora e artista plástica Lia Letícia transforma Recife num pesadelo sensorial em Per Capita. O filme faz parte da tendência curta-metragista do fantástico para discutir questões sociais, mas sua abordagem se difere de seus antecessores por sua aproximação lynchiana. Assim, a ausência de diálogos, a fotografia expressionista em preto e branco e a acentuação dos ruídos são essenciais na construção de um mal-estar atmosférico.

É com ele que a mulher, representação das classes abastadas, irá nutrir o que seria, simultaneamente, seu maior pesadelo e fetiche. A figura do carro, presente desde o início com o enquadramento retangular do para-brisa, é o símbolo máximo do status quo dessa parcela populacional. Afinal, é ele quem permite a extensão do privado às ruas e a segregação dos subúrbios em relação às periferias. O design das cidades é cada vez mais excludente: alarga-se as ruas e precariza-se o transporte público, transformando o carro no sonho coletivo, agente político capaz de devolver o direito de ir e vir.

Em movimentos destrutivos e velozes, o mosaico de telas apresenta automóveis nas mais diversas vertentes do consumo. De Karma Police (1997) a Crash – Estranhos Prazeres (1996), referência explícita na associação entre prazer e destruição automobilística, Lia Letícia coloca até o próprio filme na instalação. Uma metalinguagem que se reconhece também como produto consumível daquela violência.

Essa agressividade permeia o pesadelo da mulher, no qual três jovens quebram, urinam e se esfregam sexualmente num automóvel vazio. Dispensadas as falas, as ações dos homens são como uma performance, um ritual quase sedutor. A coreografia destrutiva é intercalada por selfies, pois na contemporaneidade não se desassocia o prazer da imagem midiática. Ao fim, eles se sentam no meio-fio, extasiados, o suor escorrendo pelos rostos.

“Os subúrbios sonham com a violência”, diz um trecho de J.G Ballard. A mesma elite que teme a violência (a mulher do filme) é aquela que a consome e pratica (os homens). O título Per Capita, expressão indicativa da média que cada um deveria receber no país, costura todas as imagens díspares do curta em sua denúncia da desigualdade. Seu final reproduz o início, os escombros automobilísticos tornam-se um cemitério – a consequência iminente do ciclo de consumo, violência e prazer.

“Como despertar uma gente entorpecida que tinha tudo, que comprara todos os sonhos que o dinheiro pode comprar e sabia que tinha sido uma pechincha?” Lia Letícia nunca nos responde, mas nos provoca e assombra com 15 minutos de um transe hipnótico.

AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS CARNES BRASILEIRASRepública das saúvas, de Piero Sbragia

por Gabriel Marçal

A ironia, vergonha, tristeza e o abismo trazidos por República das Saúvas, de Piero Sbragia, provocam efeitos estranhos, sentimentos análogos aos de quem assistiu o Brasil da pandemia. Num exercício de colar recortes tão díspares quanto imagens das saúvas (formigas nocivas)  se alimentando de uma vegetação, paisagens de prédios em São Paulo e um conjunto de áudios das falas mais aberrantes de Jair Bolsonaro, o diretor cria um universo absurdo que, em vez de confundir, parece explicar o Brasil de hoje: um país onde “a realidade não existe” (frase utilizada no curta), ou existe de maneiras paralelas. Onde a morte diária de milhares de pessoas não mais impressiona, é como se os vermes e as pragas tivessem tomado o poder e convencido a população de que estava tudo bem se a sua plantação fosse destruída.

Estamos num documentário experimental que possui um detalhado desenho de som e uma montagem disruptiva que traz climas dissonantes. A relação entre as formigas destruidoras e o Brasil é fácil, uma vez que esse é um país cuja colonização teve o único objetivo de extrair riquezas sem qualquer precedente. Outros animais aparecem, como o gado e o burro, ambos relacionados com os discursos do presidente, que ocorrem durante todo o filme. A utilização das falas de Bolsonaro sobre a pandemia tem sido recorrente em documentários e até ficções. É um recurso potente (que nem sempre dá certo), e que aqui tem um efeito dúbio: a sua incessante utilização é vertiginosa, tornando-se ao mesmo tempo um elemento rítmico chocante e cansativo.

Esse eterno retorno cria um sentido cíclico, de que essa destruição da terra, cultura e povo nunca cessa no Brasil. A clareza da analogia entre os animais e o presidente pode ser vista como um caminho fácil, mas aqui aparece como parte de um mundo bizarro – A Revolução dos Bichos vem à cabeça –, e o clima de ficção científica tem uma ironia que beira o humor tosco. República das Saúvas é inteligente na forma como nos faz sentir esse lugar marcado pela violência de séculos e formado por um sistema de sobrevivência primitiva que reflete até hoje. Outras imagens complementam esse universo, como os céus trovejantes e arranha-céus.

As filmagens das formigas, que em um documentário convencional seriam acompanhadas por uma narração sobre sua ação na natureza, mas que são aqui sobrepostas pelas falas do presidente, causam uma experiência tátil significativa. Há ainda outro elemento irônico que traz perplexidade: as saúvas são pragas que fazem parte de um ecossistema regenerativo. O mesmo não pode ser dito de nós, que ultrapassamos, principalmente a partir do capitalismo, qualquer regeneração. Portanto, um país onde humanos são tratados como simples agentes naturais (em um mundo antinatural), que existem apenas para sobreviver, largados nas adversidades sociais e patológicas, é um cenário que só não é distópico porque já é verdadeiro. A realidade pode não existir, mas as feridas são reais. Por quanto tempo as carnes e os espíritos vão aguentar?

UM OLHAR SOBRE A AMÉRICA LATINA – Mostra Latino-Americana 2 – É Preciso Estar Atento e Forte

por Letícia Leão

“De uma forma nova, explosiva, de uma outra maneira”. Essa foi a resposta de Gal Costa a Gilberto Gil ao ser indagada, pela primeira vez, sobre como gostaria de interpretar a música “Divino Maravilhoso”. Canção que, não coincidentemente, tem como uma de suas passagens o título desta mostra. A América Latina continua “divina e maravilhosa”, e a efervescência tanto de criar quanto de experimentar em tempos sombrios nunca foi tão forte. Nós latinos seguimos em busca de nossas identidades e liberdades.

A América Latina, mesmo no momento difícil para a população mundial, se mantém em um movimento constante de reinvenção. As cicatrizes do passado seguem profundas, e o cinema e seus realizadores cuidam de registrar, relembrar e repensar nossos conflitos. O resultado disso, são filmes que cada vez mais se arriscam em desenvolver linguagens e narrativas sobre os nossos cotidianos.

Quem diz pátria diz morte (Chile) traz o cenário do metrô de Santiago como um belo fio condutor deste lugar cheio de memórias. Em cada estação, ele nos convida a uma viagem imersiva em regiões da cidade onde ainda existem resquícios dos difíceis tempos da ditadura chilena. Em paralelo, a obra mostra os receios e anseios da população durante as manifestações ocorridas no final de 2019, que tiveram como estopim o aumento da passagem do metrô. Se em um lado, há pedidos de melhorias em direitos básicos da sociedade, no outro há uma resposta repressiva de soldados e representantes do governo, que presentificam o medo de se manifestar e voltar a ter uma ditadura como a de Pinochet. Adentro (Colômbia, Costa Rica, Brasil) amplifica os problemas sociais ao retratar a intensificação das nossas feridas com a chegada da covid. O filme é uma melancólica experiência no cotidiano íntimo de seus realizadores: o vazio das ruas, o medo do coronavírus, o desespero das pessoas mais vulneráveis revelam cenas angustiantes e trazem uma reflexão sobre a condição humana. O alívio está no pensar do próprio ato de realizar o filme, uma obra coletiva de diretores de diferentes países.

Água (México) retrata o dia a dia de Camilo, um adolescente remador de Xochimilco, que pensa que seus encontros sexuais com outro homem foram descobertos por um colega do trabalho. Há o medo de ser reprimido, o medo da homofobia. No filme, a dualidade entre o moderno e o tradicional está não só no contraste entre os cenários rural e urbano, como na contraposição entre passado e presente. Camilo é remador de um sistema de navegação construído pelos astecas, a trajinera, um dos mais antigos, e é nesse ambiente de trabalho, arcaico, que o protagonista é introduzido a uma realidade diferente, que naturaliza as relações homoafetivas e o faz vislumbrar um lugar onde sua orientação sexual pode ser mais aceita.

O sonho mais longo de que me lembro (México) conta história de Tania, uma jovem, que por conta do crime organizado no país, decide sair de sua cidade natal. Neste ensaio, o rompimento das barreiras entre realidade e sonho nos provocam os estímulos do inconsciente. A experimentação de linguagem é o que potencializa o filme e nos envolve não por uma trama linear, mas pelas informações desconexas. As imagens não são didáticas, o espectador está sempre captando as mensagens soltas, nas entrelinhas. E há os fantasmas do passado, o pai de Tania, figura que nunca tem seu rosto revelado. Para além da discussão das questões sociais, o convite é o de imaginar novas realidades e sonhar mudanças junto com a protagonista.

Aqui, cabe a resposta dada por Gal a Gil em 1968: esta é uma seleção de filmes novos, explosivos e inventivos. Sobreposições entre batalhas do passado e do presente nos fazem refletir sobre a construção do nosso futuro. Embora haja uma onda conservadora que atinge todas as fronteiras latino-americanas, ela não calará as vozes ativas daqueles que mais geram debates e produzem cultura, os artistas. É preciso estar atento e forte.

O PODER DE MANIFESTAR-SEQuem diz pátria diz morte, de Sebastián Quiroz (Chile)

por Lorde Lore

Quem diz pátria diz morte é um documentário experimental dirigido, roteirizado e produzido por Sebastián Quiroz. Com uma narrativa emancipatória, traz uma formatação para o nosso olhar político, nos apresentando 101 motivos para protestar.

Em 2019, o Chile surpreendeu o mundo com uma onda de protestos civis. No início, os manifestantes eram contra o aumento do preço da passagem de metrô (cerca de 20 centavos na tarifa), e em poucos dias passaram a contestar o sistema político como um todo. Em resposta, o presidente do Chile, Sebastián Piñera, decretou estado de emergência, colocou o Exército nas ruas e determinou, por três noites consecutivas, um toque de recolher nas principais cidades do país.

O filme se passa no dia 19 de outubro de 2019, nos arredores do Estádio Nacional de Santiago, o palco da tortura da ditadura chilena, na primeira noite do toque de recolher na capital. O local foi usado como uma espécie de prisão improvisada nos primeiros meses do regime militar autoritário de Augusto Pinochet, que governou o Chile entre 1973 e 1990. Estima-se que nesse período mais de 3 mil pessoas foram mortas pela repressão do governo, e outras 40 mil foram torturadas.

O Chile é um país que tem um modelo político e social formatado na época da ditadura, mas seus cidadãos se esforçam bastante para não deixar a ditadura cair no esquecimento e não haver um apagamento histórico. Eles se lembram dos desaparecidos, dos mortos e de todos os afetados pela tragédia. As ditaduras do Brasil e do Chile têm diversos pontos em comum, mas a diferença se encontra na preservação da memória e na busca por responsáveis.

A obra é fruto dos cinegrafistas Isabel Riquelme, Receba Matte e Exequel Bairros, que “gravaram com coragem e coração rebelde”, enfrentando os protestos, o Exército e a pandemia da covid-19 com êxito em seus registros. Eles conseguiram captar todo o peso e poder que possui as manifestações, o impacto que a postura do povo chileno causou no país e no mundo. A pressão popular é historicamente responsável por uma série de avanços, e dessa vez não foi diferente. Hoje, o Chile caminha rumo a um novo futuro, construindo uma nova Constituição a partir do voto popular, retrabalhando, na medida do possível, o legado grotesco deixado pela ditadura.

AS MARGENSÁgua, de Santiago Zermeño (México)

por Gabriela Lima Santos

Em agosto de 2020, foi aprovada na Cidade do México uma reforma no seu Código Penal que criminaliza a “cura gay” na capital. Naquele mesmo mês, a história de Camilo, morador do bairro de Xochimilco, nos é apresentada em Água, de Santiago Zermeño.

Xochimilco é uma demarcação territorial mais afastada do centro do distrito federal, que desde o século 20 vem sendo integrada à região metropolitana devido a expansão urbana. A região agrária tornou-se um dos principais provedores de alimento e água para a Cidade do México, e seus canais comportam hoje os passeios de embarcações que atraem turistas locais e estrangeiros em busca de um contato com a natureza que sobrevive às margens de uma das maiores capitais do mundo.

É neste cenário que conhecemos um fragmento da vida de um garoto que tenta sobreviver num ambiente hostil para sua orientação sexual velada. Um retrato bastante conhecido na cinematografia LGBTQIA+, no qual a denúncia da dor para se afirmar enquanto pessoa que tem o direito de ser como tal é o recorte mais vivo que temos no imaginário do que é ser uma pessoa que escapa da heteronormatividade.

Para além da representação do gênero e sexualidade em sua dimensão trágica, Água justifica seu enredo ao estruturar a narrativa na relação entre o rural e o urbano, a tradição e o moderno. Enquanto conduz a embarcação com os visitantes pelo canal, Camilo observa naquele microcosmo a naturalização das relações homoafetivas. No curta, a interação entre o centro e Xochimilco é mediada pela atração turística. É a partir dela que Camilo vislumbra novas possibilidades de viver fora das margens que o oprime.

Ser LGBTQIA+ em regiões mais afastadas dos centros urbanos – onde o debate público sobre o tema está mais presente – envolve uma série de violências que tendemos a acreditar que já estavam próximas de serem superadas. Ao nos atentarmos a essa diferença, notamos que o contraste de realidades da vida privada se entrelaça com a dimensão de classe. Xochimilco foi integrada parcialmente ao centro mas, assim como a região metropolitana de São Paulo, preserva sintomas da desigualdade social que impacta no acesso de uma parcela da população aos debates que dialogam com as vivências em seu território.

Água se deixa ver com um gosto amargo, pois escancara que a luta alcança as margens à passos curtos. O senso de urgência provocado pelo medo da morte em locais mais violentos torna a fuga mais vantajosa do que a resistência. A fuga, por outro lado, deixa o espaço abandonado estático, em estado de permanência e alheio à necessidade de mudança. E assim, a segregação segue operando onde já poderia estar superada.

AUSÊNCIA SENTIDAO sonho mais longo de que me lembro, de Carlos Lenin (México)

por Júlia Lelli

O sonho mais longo de que me lembro é um ensaio sobre a ausência. Tudo angustia e traz uma sensação de incompletude. Nada é por inteiro, seguindo começo, meio e fim. Tudo é fugidio e confuso.

Aos poucos entendemos que a personagem principal, Tânia, teve seu pai tirado de sua vida de maneira repentina devido aos conflitos do crime organizado mexicano. Sem se lembrar de sua voz, ou de seu rosto ela tenta lidar com esse luto ao mesmo tempo em que decide deixar sua cidade natal e sua família.

Repleta de paisagens amplas, essa é uma daquelas obras que foram feitas para a sala de cinema. A amplidão do interior mexicano contrasta com a pequenez das personagens. Ao encontrar algo no solo árido, Tânia diz que aquilo parece um dente – o dente como algo que fica e resiste mesmo após a decomposição. A memória como algo frágil, mas que nunca é morta por completo. Ela mesma diz repetidas vezes que nunca irá esquecer. Se esquecermos das atrocidades e das dores, esse último dente desaparece, e se ele desaparece não nos sobra mais nossas raízes.

A ausência, no entanto, não é sentida apenas pela protagonista. Ela tem que lidar com a reação de seus familiares ao saber de sua mudança. Outra partida, outra falta para suportarem. A culpa é apresentada de maneira sutil, mas ela faz morada no coração de Tânia.

Em uma das cenas mais longas e emblemáticas, as lembranças de infância da protagonista adentram sua casa, que fica repleta de cenas passadas. O tom é onírico e perturbador – a trilha densa aumenta gradativamente e provoca angústia. Vemos que as plantas revestiram as paredes da casa antiga, suas lembranças se desenvolvem à sua frente. A natureza toma conta do concreto, a persistência frágil da memória, o passado se apossa continuamente do presente. Todos ali sofrem um luto contínuo, e a ida de Tânia faz ressurgir isso tudo de maneira ainda mais forte.

Deixar sua casa natal é um pouco sobre esquecer. E isso dói. É sobre queimar partes do passado e deixar ressurgir o novo através do fogo. A falta daquele território transforma quase que em outro ser. Um território em trânsito, como um luto que nunca termina por não ter um corpo para velar.

A fronteira entre sonho e realidade, passado e futuro nunca é quebrada no filme. Tudo é tão embaçado quanto o rosto do pai de Tânia. Na última cena, o corte é abrupto e somos lançados para a realidade crua. Após a entrada de Tânia no ônibus, a trilha e a imagem se apagam juntas e repentinamente. Tão abrupto e sem explicação quanto a morte de seu pai. Tão escuro como o esquecimento.

A ARTE DA INADEQUAÇÃO – Diálogos: André Novais e Lincoln Péricles

por Julia Fripp Thomaz

Cotidiano, subversão e autodeterminação são palavras que gravitam, intrinsecamente, a filmografia de André Novais, morador de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, e Lincoln Péricles, do Capão Redondo, periferia de São Paulo. Apresentadas na sessão Diálogos: André Novais e Lincoln Péricles, suas obras exploram os covis e as armadilhas de uma estrutura social adoecida, que silencia, menospreza e fetichiza os “inadequados”, através das marcas da experimentação do cinema “pobre” e da busca pelo deslumbramento da continuidade mais banal. Os diretores denunciam as relações violentas de propriedade e se rebelam contra o cinema hegemônico. Uma certa magia impregna suas produções, condicionada à transindividualidade dos grupos da periferia, articulados e fortalecidos por uma identidade coletiva de resistência.

Em Quintal, de André, o surrealismo é empregado como ferramenta para ressignificar o sentido do mundano: um quintal na periferia pode ser tão extraordinário quanto um romance de fantasia. É um manifesto político, que expõe a elitização do ambiente acadêmico mediante a analogia: nos dias de hoje, um portal para outra dimensão é tão ficcional quanto um homem negro apresentando sua pesquisa numa universidade brasileira. Da mesma forma, Ruim é ter que trabalhar, de Lincoln, atravessa as lutas de classe e utiliza simbologias, materiais e escolhas técnicas para entoar um posicionamento contra-hegemônico da quebrada, tal como escancarar a realidade: aqueles que estão na base da cadeia capitalista não descansam, nem dormem, muito menos usufruem do resultado de sua mão de obra.

Nas suas obras, Péricles denuncia as forças “parasitárias” do capital e as condições insalubres de moradia, transporte e trabalho do proletariado. Expõe, através do interior dos planos, o corpo que respira, o compasso da exaustão, as complexidades de uma conversa frívola. Aluguel – O Filme, de Lincoln, evidencia, inclusive, o lado fétido da indústria cinematográfica brasileira, que expurga e explora aqueles que não pertencem à elite, num processo de capitalização sistemática de obras “caras, raras e cultas” – para quem pode pagar e para quem pode fazer.

No mesmo eixo, André Novais se apropria dos poderes da imagem e do realismo fantástico para instigar a imaginação do espectador. Tanto em Fantasmas quanto em Rua Ataléia, ele é assertivo ao dar vida à câmera, associando memória e presente, propondo uma análise política por trás da cortina lírica das múltiplas interpretações. Enquanto no primeiro o cineasta relaciona, por meio de um ensaio voyeurístico, a efemeridade das relações humanas ao olhar vigilante da câmera, no segundo imperam os afetos numa casa da periferia sem luz e a reflexão: no Brasil, o acesso permanente à energia elétrica ainda é uma regalia para poucos.

Ademais, é prodigiosa a forma como André enuncia os fenômenos da imagem no centro da narrativa e reflete as banalidades cotidianas, como deslocamento, diversão e preguiça, sem se afastar do pensamento crítico. É o que aparece em Pouco mais de um Mês e Domingo, que perseguem uma estética disruptiva, composta por sons desenquadrados e trechos de outros filmes para expor os escombros de uma sociedade adoecida e desigual. Por sua vez, Lincoln reconfigura a própria noção do que é um filme ao encarar o cinema marginalizado. Evidência disso são Filme de Domingo e Entrevista com as coisas, que exploram as adversidades da rotina e propõem um modo de produção que se fortalece na mistura, nos intervalos e choques entre imagem e som.

Para mais além, Lincoln e André trabalham a ideia de pertencimento e ancestralidade da periferia, conectando as pautas identitárias à busca pela autodeterminação. Propõem a união entre os “desajustados”, denunciam as políticas de apagamento da burguesia branca cis heteronormativa e promovem um legado de sabedoria às próximas gerações da quebrada. O recado de suas produções é certeiro: mesmo no sofrimento e na dificuldade, aqueles que perderam perante o sistema capitalista estão unidos, são engajados e potentes na luta pela emancipação. Na “inadequação”, encontram um lugar de cooperação e criatividade que ultrapassa os limites da tela e das aparências.

A MEMÓRIA À LUZ DO FÓSFORORua Ataléia, de André Novais Oliveira

por Leandro Silva Lopes

É quase sempre de onde pisa o pertencimento de André Novais Oliveira que enxergamos seus filmes. É muito de Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte. O que assistimos é fruto de como ele percebe o seu próprio território, suas raízes e lembranças. Um realizador das belezas que só as insignificâncias rotineiras são capazes de proporcionar.

Podemos percebê-lo assim a partir da sessão Diálogos: André Novais, composta pelos filmes Fantasmas (2010), Domingo (2011), Pouco mais de um mês (2013), Quintal (2015) e Rua Ataléia (2021).

Nome conhecido no circuito de festivais brasileiros, André já esteve na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes em duas oportunidades, além de já ter sido citado na revista francesa Cahiers du Cinéma. É sócio da produtora Filmes de Plástico, uma das mais férteis produtoras do audiovisual brasileiro da atualidade.

Nesta sessão, sobretudo, em seu último trabalho, Rua Ataléia, descobrimos o porquê. André filma o seu mundo comum, desafiando a escuridão e propondo, por meio de sua câmera, um filme à luz de fósforos, descortinando um costumeiro social das regiões periféricas de um Brasil desigual, transformando a precariedade em poesia. Dito isto, é preciso atenção: nada é somente belo. O tanto que há de poético, há de político.

O desafio da impossibilidade da escuridão por si só poderia desencadear discussões em torno dos contrastes sociais, desvelando políticas que maximizam a precariedade e minimizam o acesso de alguns. Podemos falar isso da energia intermitente, mas também dos equipamentos. As câmeras que filmam Contagem não são as mesmas que filmam Lourdes, bairro da zona sul da capital mineira.

Filmando seus próprios pais, André promove um resgate de um pertencimento, de uma família que resiste e se empodera por meio das suas memórias. Seu irmão, Renato, tenta fazer uma leitura improvável no escuro. Ouvimos e quase não vemos sua mãe, Maria José, lembrando suas religiosidades e pensando em seus ancestrais enquanto faz “qualquer coisa”, como solicita o filho-diretor. Voltamos a vê-la, agora ao lado do marido Norberto à luz de velas, despindo alguns passados por meio do resgate fotográfico no folhear dos álbuns. São seus lugares de idas e vindas, como a própria feitura fílmica, na qual as cenas são capturadas em 2011, mas só montadas em 2021. O que é rever o que se fez dez anos depois? São as rememorações de uma família que habita as rotinas e que, com pouca luz, a fósforo, resiste no que há de belo nas banalidades do sempre: o ato de viver.

UM DISCURSO SEM ESPAÇOAluguel – O Filme, de Lincoln Péricles

por Davi Krasilchik

Um discurso que não encontra espaço. Falas que se dissolvem no ar, indignas de atenção. Seus emissores, igualmente desprovidos de um lugar para chamar de seu, condenados a vagar sem ter para onde ir, são vítimas desse mesmo mal.

Traçando uma coesão temática entre diferentes e breves “relances” urbanos, esse é o cerne de Aluguel – O Filme, filme do paulistano Lincoln Péricles que aborda a infeliz surdez com a qual a questão da moradia no Brasil flerta cotidianamente.

Do início narrado em francês, do áudio proveniente do longa coletivo Longe do Vietnã (1967) – sugerindo que certas línguas, mesmo tratando de universos próximos, têm prioridade na captação da simpatia de setores poderosos; ao final embalado pelo bordão de Robin Williams no famoso Bom dia, Vietnã (1987), uma passagem que associa o viver de esferas periféricas à mesma desumanização oferecida pela guerra; o que aqui predomina é o deslocamento, o não pertencimento social que é traduzido de maneira poética em tela.

Os planos que apresentam obstáculos entre os indivíduos e o espectador reforçam sutilmente essa visibilidade fragilizada, enraizada num cotidiano de adormecimento do senso crítico. Os muros que dominam as paisagens da metrópole se tornaram companheiros do nosso olhar, não mais ressoando como alertas para um distanciamento calculado. É como se a câmera, simplesmente deixada como “voyeur”, ressignificasse toda uma tradição imobiliária pelo simples fato de possuir uma lente.

Essa mesma simplicidade de se registrar o espaço – que reforça a ideia de que grandes cineastas conseguem comunicar muito com pouco – se faz presente nas tomadas internas, ambientes explorados junto a movimentos suaves, mas que imprimem certa instabilidade. Acrescidos de uma trilha incômoda, elas representam a injusta conversão de muitos brasileiros em “parasitas” que são expulsos de dentro para fora. O diálogo que o personagem de Felipe Terra estabelece com seu amigo, próximo a uma janela, é uma evidência dessa lógica da não manifestação espacial. Ele é excluído fisicamente da tela e propaga suas palavras com certa dificuldade, considerando os ruídos sonoros de chuva que se misturam a elas.

Tal olhar sobre o simples ainda é aplicado no enquadramento que vincula um passageiro de metrô – no qual ele logo adentra um túnel metafórico, que representa a dificuldade de se encontrar uma luz ao fim dessa jornada – a um cartaz do longa 12 Anos de Escravidão, sintetizando décadas de um sentimento descontente em alguns segundos de curta documental.

Tudo isso, e ainda aliado a um brilhante resgate de cenas do seriado “Chaves” – analogia da universalidade dessa problemática  e do silenciamento ao qual suas vítimas são condenadas –  tornam este um curta original em sua abordagem, que prioriza o simples na construção de seu importante discurso social.

Alavancado por sons e imagens de outras obras, Lincoln Péricles lidera um olhar sensível sobre fatos que estão escancarados, mas sobre os quais poucos têm a decência de se debruçar – seja por causa dos ruídos da vida cotidiana ou pela pura indiferença que nos domina.

ESTAMOS TODOS MALUCOS! E AGORA? – Mostra Internacional 2 – Surto

por Enzo Kruschewsky

Dizer que a pandemia apenas “afetou” nosso estado mental é um enorme eufemismo. De um momento para outro, fomos forçados a mudar todo o nosso comportamento, e estamos nessa situação há quase dois anos. Aqueles que podem ficar em casa se sentem presos, sufocados, com falta constante de contato humano, ansiosos pelo futuro. Aqueles que precisam continuar saindo têm que conviver com o medo constante da contaminação. Alguns tiveram que lidar com a morte de pessoas próximas, e todos fomos atingidos pelo estresse das milhares de mortes ao redor do mundo, muitas das quais poderiam ter sido evitadas. O vírus ainda é só mais um problema entre tantos outros que talham nossas mentes, como a crise climática, a crise da democracia, a crise econômica…

Os curtas da Mostra Internacional 2 – Surto exploram o estresse e a ansiedade, apelando para uma linguagem experimental e um caráter fantástico para melhor representar as partes sombrias da nossa psique. Quantas vezes ao longo do último ano não passou pela nossa cabeça, mesmo que rapidamente, que o mundo está acabando? Hospedeiros Naturais, de Nick Jordan, é uma representação dessa paranoia concentrada em dois minutos. A câmera passeia por um cenário pós-apocalíptico: uma casa abandonada, destruída, em preto-e-branco, habitada agora apenas por morcegos. Fotografias mostram um caçador expondo sua caça, orgulhoso. Um discurso falado atravessa o filme, tocando em assuntos como a pandemia, a crise climática e a pecuária intensiva, direcionando a causa de tudo isso à atitude predatória do ser humano com a natureza, que não se reconhece como parte dela e a vê apenas como uma presa de sua caça. Essa combinação dos conteúdos sonoros e imagéticos transmuta a casa pela qual passeamos na casa que nos abriga todos; e sua destruição, na destruição que causamos a nós mesmos.

Enquanto Hospedeiros Naturais se ocupa de representar o interior, nosso medo de um fim causado por nós mesmos, o outro filme britânico da mostra, Estrasburgo 1518, de Jonathan Glazer, externaliza esses pensamentos. Os personagens dançam ao longo de dias e noites, frenéticos. Por mais que estejam cansados, não conseguem parar de dançar. Também não são capazes de sair da mesma série de movimentos. Atormentados, convulsionando de forma repetitiva e padronizada, a dança começa a afetar como eles se relacionam com suas atividades. Algo obrigatório, como lavar as mãos, se torna uma rotina impregnada de um esforço sofrido, e aquilo que foge ao necessário, que fazemos apenas porque gostamos, como olhar os pássaros pela janela, se torna impossível pela instabilidade do movimento, pela falta de controle, de foco. O canto dos pássaros, que antes acalmava, também se mistura à batida que rege a dança, e a impossibilidade de aproveitar experiências se torna parte do problema. A ansiedade interior a essas personagens é tanta que se exterioriza, primeiro corporalmente, e depois no tecido do próprio filme através da montagem, com os cortes rápidos entre os diferentes dançarinos, numa mania geral. Uma representação não tão exagerada (por mais que pareça) da ansiedade coletiva que a pandemia causou.

Se, em Estrasburgo, a dança é convulsiva, ansiosa, compulsória e repetitiva, na terceira parte de Catin (uma coletânea de quatro curtas de mesmo nome dirigidos por diretores diferentes), a dança aparece como uma libertação solar da padronização noturna. Acompanhamos a rotina de uma prostituta: ela espera em uma esquina, entra em um carro, recebe o dinheiro, faz sexo, volta para a esquina, e repete os atos. Por mais que haja sexo, não há nada de sensual aqui, ao contrário de outros curtas que também compõem Catin. Para a personagem desta seção, o ato é vazio de significado; é apenas um procedimento necessário. Tem o mesmo valor da água que ela repetidamente gargareja e cospe para limpar sua boca. Seu rosto impassível ao fim de cada contato com o cliente reforça esse caráter. Mas, ao longo do curta, por mais que tente segurar, uma lágrima lentamente escorre por esse mesmo rosto, seu sofrimento contido vaza. Esse sofrimento fica bem claro na imagem em staccato que caracteriza o filme, em que o movimento se dá por fotos tiradas singularmente e depois justapostas, dando a sensação de que algo segura a imagem. Essa personagem tenta se segurar, conter seu sofrimento e consegue, pelo menos durante a noite, por mais doído que isso seja. Contudo, o dia chega, libertando-a da imagem staccato e permitindo que, por mais que relute num primeiro momento, ela possa liberar seus sentimentos através da dança, com lágrimas nos olhos.

Depois da exploração feita por esses curtas sobre nossa mente danificada, resta a pergunta: o que faremos sobre tudo isso? Catin nos oferece uma solução lírica e individual, mas que não resolve o problema de verdade – a prostituta terá que repetir o trabalho na noite seguinte, afinal, talvez sentindo a mesma angústia. Nadador, de Jonatan Etzler, nos mostra uma solução perfeita (por mais que seja impossível): fugir dos problemas ao regredir temporalmente. Primeiro à infância, quando Ola, como uma criança, se recusa comicamente a sair da piscina após os policiais pedirem para ele ir à delegacia. Depois, ao primeiro estágio da vida, o útero, representado pela piscina aquecida em que mergulha, se acolhe, se protege e, finalmente, some.

É frustrante, mas talvez a resposta seja, inevitavelmente, a falta de resposta. É isso que O Fim do Sofrimento (Uma Proposta), de Jacqueline Lentzou, sugere. Para acalmar uma garota sofrendo um ataque de pânico, o Universo conta que ela, na verdade, vem de Marte, e começa a descrever a utopia que é o planeta. A descrição, porém, é representada visualmente por imagens da Terra através de um filtro vermelho, mostrando que a Terra e Marte não são tão diferentes. A Terra até poderia se tornar esse paraíso se quiséssemos. Depois de mostrar essa fantasia que existe onde estamos, o Universo conclui, através de seus sopros cósmicos: “Ficando na Terra, você encontrará a razão pela qual você caiu do seu planeta.” Essa é a proposta do título, o que devemos fazer para acabarmos com o sofrimento: resistir. “Ficando na Terra”, eventualmente encontraremos as respostas e paz. Precisamos apenas viver.