Voltando aos seus mares sobre Não Tem Mar Nessa Cidade, dirigido por Manu Zilveti

Por Duda Lozano

Muitas vezes, não pertencemos ao lugar de onde viemos. Outras vezes, é para lá que devemos voltar. Porém, ao retornar, é possível realmente se sentir em casa? Por meio dessa reflexão, o curta-metragem Não Tem Mar Nessa Cidade (2024, de Manu Zilveti) apresenta Paulo (Paulo N´Dermei), um imigrante que decide voltar para Guiné-Bissau, o que significa o fim de seu relacionamento com Edneia (Edneia Brazão), uma imigrante de Cabo Verde que ficará no Brasil. Enquanto passam seus últimos momentos juntos em Pelotas (RS), nas praias de água doce, os dois relembram os mares de seus países natais.

Exibido no 35° Kinoforum – Festival Internacional de Curtas de São Paulo, na Mostra Brasil  3, o curta-metragem apresenta uma reflexão sobre pertencimento, tanto a um lugar quanto a uma relação. Mas o que acontece quando essas duas relações entram em conflito? Edneia, por amor, precisa deixar Paulo ir. E esse processo é representado por uma metáfora clara: Edneia pega um peixe que apareceu em sua casa, fora d’água, em um lugar que não pertence, e o leva ao lago, onde ele de fato deveria estar. Há uma sensação de angústia ao ver o peixe fora d’água. Ele está no chão, tentando respirar, e sabemos que aquele não é o melhor lugar em que ele poderia estar. E a personagem, mesmo o amando e querendo estar com ele, entende isso. Há um esforço de sua parte, ao pegar o peixe e levá-lo ao seu lugar. 

A princípio, essa cena pode causar estranheza, já que o peixe não havia aparecido antes no filme. Mas, à medida que ela se desenrola, a metáfora se revela clara e coerente. Desde a primeira cena, o casal reflete sobre voltar ao mar de sua origem, fazendo uma relação com o próprio título “Não tem mar nessa cidade”, já que em Pelotas não há praias de água salgada, diferente dos países de origem dos personagens. E a cena final do peixe é sobre isso: voltar ao mar que você pertence, seja ele o seu de origem ou não. A água também está muito presente no som, complementando ainda mais a relação do mar e suas nacionalidades, estando presente nas cenas de maior conexão e reflexão. Assim como as músicas, cantadas por Edneia, trazendo mais da cultura de Cabo Verde ao filme e mostrando que, talvez, ela tenha achado uma forma de se sentir pertencente ao Brasil, mas sem esquecer de sua origem. 

Biografia: Duda Lozano é estudante, atualmente no último semestre do bacharelado em Cinema e Audiovisual. Já atuou como diretora e roteirista em projetos independentes, além de escrever críticas cinematográficas.

Além das colinas sobre ‘As cinzas estão queimando’, dirigido por Lucas Leônidas

Por Beatriz Panico

Em As cinzas estão queimando (2024, de Lucas Leônidas), o espectador é transportado para Córdoba, Argentina, onde a vida de dois irmãos que entregam legumes serve como pano de fundo para uma história sobre amadurecimento, luto e conflitos familiares. Após a perda recente da mãe, Bruno, o irmão mais velho, está prestes a abandonar sua cidade natal e a vida com seu pai abusivo para buscar novas oportunidades, além das colinas que limitam seus horizontes. No entanto, a tensão entre ele e seu irmão mais novo parece ser o obstáculo final antes de sua partida. Por meio de uma narrativa visualmente evocativa, a trama se desenvolve em torno de um cigarro, que serve como metáfora para as dinâmicas familiares que moldam nossas decisões mais importantes.

O cigarro emerge como um poderoso símbolo multifacetado, representando não apenas uma ideia de masculinidade devido à sua forma fálica, mas também capturando a essência da complexa relação entre os dois irmãos. Para Bruno, ele serve como um mecanismo para fugir da dura realidade em que se encontra lhe oferecendo uma pausa das responsabilidades e do peso emocional associado à vida sob o controle de seu pai. 

O cigarro funciona como um emblema de sua autonomia inerente à maioridade, que lhe oferece a possibilidade de deixar Córdoba. Ao longo do curta, o irmão mais novo expressa um desejo crescente de acessar esse símbolo de controle, refletindo sua ambição por uma autonomia similar à de Bruno e realçando uma disparidade nas suas perspectivas de vida devido à diferença na independência dos dois irmãos. Dessa forma, o cigarro se torna um símbolo não apenas da busca por escape, mas também da dinâmica de poder e desejo que permeia o relacionamento dos protagonistas, unindo-os e afastando-os simultaneamente.

Em diversos momentos, o curta recorre a metáforas visuais que evidenciam a construção dos simbolismos presentes ao longo da história. Em determinado ponto, Bruno é retratado lavando sua caminhonete no quintal, enquanto seu irmão o observa pela janela no interior da casa. O enquadramento garante uma oposição entre duas realidades conflitantes: enquanto um irmão apresenta um futuro livre e distante do controle do pai, o outro ainda se encontra preso naquele mesmo local marcado por violência.

Apesar de o elemento feminino estar quase ausente durante a maior parte do curta, a trama recorre à lembrança da mãe simbolizada pelo fogo, que se faz presente também no título da obra. O fogo surge como signo que encapsula a memória e a influência ambígua da mãe falecida nos protagonistas. Representando tanto calor e segurança quanto o potencial para a destruição, as chamas refletem a relação contraditória dos meninos com a figura materna. Sua ausência, marcada pela falta de ação diante do abuso sofrido pelos filhos, deixa uma marca permanente na narrativa. A mãe, que deveria oferecer proteção, se torna um símbolo de abandono e falha. O fogo, portanto, não apenas evoca a memória dela, mas também os sentimentos conflituosos que os meninos nutrem.

Dessa forma, As cinzas estão queimando se configura não apenas como uma narrativa que gira em torno da relação entre dois irmãos, ou um retrato da luta pela autonomia em um cenário de adversidade, mas principalmente como um espelho que reflete as complexas interações entre memória, trauma e crescimento pessoal. 

Biografia: Beatriz Panico é uma estudante no segundo semestre do curso de cinema na FAAP. Apaixonada por leitura e escrita desde cedo, desenvolveu um interesse especial pelas áreas de história do cinema, roteiro e crítica.

Entre o céu e a Terra há o humano sobre STARLIT, dirigido por Raul Perez

Por Adriana Gaeta


“Você tem um carro veloz, eu quero uma passagem para qualquer lugar, talvez possamos fazer um trato, talvez juntos nós possamos ir para algum lugar”.

-“Fast Car”, de Tracy Chapman.

Starlit é um filme sobre reconexão. Um afronauta desembarca na Terra, em busca de um “religare”, ou seja, uma comunhão com sua essência interior, com o outro e com o cosmos. Em sua jornada por esse novo planeta, o astronauta vive a dualidade entre o despertar para o humano e a necessidade de se despir da proteção de seu capacete/casulo. 

A aventura do protagonista também se torna a nossa e esse pacto é construído de maneira muito consciente pelo cineasta, Raul Perez. Inicialmente, vemos o astronauta em planos mais abertos, com destaque para a paisagem da cidade trabalhada em foco/desfoque, que reforçam a ideia de um lugar ao qual o astronauta ainda não pertence. Ao longo da narrativa, contudo, os planos se tornam mais fechados, com destaque para os closes à medida que o protagonista se depara com toda a beleza do nosso mundo, Terra. O astronauta está desprotegido. Sensível e frágil como nós, ele vaga pelas ruas procurando experimentar gostos e sensações. A música de Tracy Chapman cessa para que o afronauta possa se maravilhar com a constelação artificial, feita de luzes de neon. 

A cena final, da mão ante o painel iluminado, vermelho como o sangue, reforça a crença que entre a indiferença da multidão e o caos urbano, o que nos conecta é uma canção que também é sobre prece, amadurecimento, esperança e fé. Somos todos astronautas. 

Biografia: Adriana Gaeta é atriz, Pesquisadora e Roteirista. Estudou cinema e audiovisual pela ELCV – Escola Livre de Santo André e CAV – Centro Audiovisual de São Bernardo do Campo. Se especializou em Roteiro na Roteiraria, INC e Senac e em Pesquisa na Roteiraria. Docente convidada pelo Senac e arte educadora de teatro e audiovisual em equipamentos públicos. Integrante de dois projetos contemplados pelo VAI – Amor Obsoleto – teatro dança e Sororité – projeto de documentário sobre os estereótipos da cultura do estupro.