A ARTE DA INADEQUAÇÃO – Diálogos: André Novais e Lincoln Péricles
por Julia Fripp Thomaz
Cotidiano, subversão e autodeterminação são palavras que gravitam, intrinsecamente, a filmografia de André Novais, morador de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, e Lincoln Péricles, do Capão Redondo, periferia de São Paulo. Apresentadas na sessão Diálogos: André Novais e Lincoln Péricles, suas obras exploram os covis e as armadilhas de uma estrutura social adoecida, que silencia, menospreza e fetichiza os “inadequados”, através das marcas da experimentação do cinema “pobre” e da busca pelo deslumbramento da continuidade mais banal. Os diretores denunciam as relações violentas de propriedade e se rebelam contra o cinema hegemônico. Uma certa magia impregna suas produções, condicionada à transindividualidade dos grupos da periferia, articulados e fortalecidos por uma identidade coletiva de resistência.
Em Quintal, de André, o surrealismo é empregado como ferramenta para ressignificar o sentido do mundano: um quintal na periferia pode ser tão extraordinário quanto um romance de fantasia. É um manifesto político, que expõe a elitização do ambiente acadêmico mediante a analogia: nos dias de hoje, um portal para outra dimensão é tão ficcional quanto um homem negro apresentando sua pesquisa numa universidade brasileira. Da mesma forma, Ruim é ter que trabalhar, de Lincoln, atravessa as lutas de classe e utiliza simbologias, materiais e escolhas técnicas para entoar um posicionamento contra-hegemônico da quebrada, tal como escancarar a realidade: aqueles que estão na base da cadeia capitalista não descansam, nem dormem, muito menos usufruem do resultado de sua mão de obra.
Nas suas obras, Péricles denuncia as forças “parasitárias” do capital e as condições insalubres de moradia, transporte e trabalho do proletariado. Expõe, através do interior dos planos, o corpo que respira, o compasso da exaustão, as complexidades de uma conversa frívola. Aluguel – O Filme, de Lincoln, evidencia, inclusive, o lado fétido da indústria cinematográfica brasileira, que expurga e explora aqueles que não pertencem à elite, num processo de capitalização sistemática de obras “caras, raras e cultas” – para quem pode pagar e para quem pode fazer.
No mesmo eixo, André Novais se apropria dos poderes da imagem e do realismo fantástico para instigar a imaginação do espectador. Tanto em Fantasmas quanto em Rua Ataléia, ele é assertivo ao dar vida à câmera, associando memória e presente, propondo uma análise política por trás da cortina lírica das múltiplas interpretações. Enquanto no primeiro o cineasta relaciona, por meio de um ensaio voyeurístico, a efemeridade das relações humanas ao olhar vigilante da câmera, no segundo imperam os afetos numa casa da periferia sem luz e a reflexão: no Brasil, o acesso permanente à energia elétrica ainda é uma regalia para poucos.
Ademais, é prodigiosa a forma como André enuncia os fenômenos da imagem no centro da narrativa e reflete as banalidades cotidianas, como deslocamento, diversão e preguiça, sem se afastar do pensamento crítico. É o que aparece em Pouco mais de um Mês e Domingo, que perseguem uma estética disruptiva, composta por sons desenquadrados e trechos de outros filmes para expor os escombros de uma sociedade adoecida e desigual. Por sua vez, Lincoln reconfigura a própria noção do que é um filme ao encarar o cinema marginalizado. Evidência disso são Filme de Domingo e Entrevista com as coisas, que exploram as adversidades da rotina e propõem um modo de produção que se fortalece na mistura, nos intervalos e choques entre imagem e som.
Para mais além, Lincoln e André trabalham a ideia de pertencimento e ancestralidade da periferia, conectando as pautas identitárias à busca pela autodeterminação. Propõem a união entre os “desajustados”, denunciam as políticas de apagamento da burguesia branca cis heteronormativa e promovem um legado de sabedoria às próximas gerações da quebrada. O recado de suas produções é certeiro: mesmo no sofrimento e na dificuldade, aqueles que perderam perante o sistema capitalista estão unidos, são engajados e potentes na luta pela emancipação. Na “inadequação”, encontram um lugar de cooperação e criatividade que ultrapassa os limites da tela e das aparências.