UM DISCURSO SEM ESPAÇO – Aluguel – O Filme, de Lincoln Péricles
por Davi Krasilchik
Um discurso que não encontra espaço. Falas que se dissolvem no ar, indignas de atenção. Seus emissores, igualmente desprovidos de um lugar para chamar de seu, condenados a vagar sem ter para onde ir, são vítimas desse mesmo mal.
Traçando uma coesão temática entre diferentes e breves “relances” urbanos, esse é o cerne de Aluguel – O Filme, filme do paulistano Lincoln Péricles que aborda a infeliz surdez com a qual a questão da moradia no Brasil flerta cotidianamente.
Do início narrado em francês, do áudio proveniente do longa coletivo Longe do Vietnã (1967) – sugerindo que certas línguas, mesmo tratando de universos próximos, têm prioridade na captação da simpatia de setores poderosos; ao final embalado pelo bordão de Robin Williams no famoso Bom dia, Vietnã (1987), uma passagem que associa o viver de esferas periféricas à mesma desumanização oferecida pela guerra; o que aqui predomina é o deslocamento, o não pertencimento social que é traduzido de maneira poética em tela.
Os planos que apresentam obstáculos entre os indivíduos e o espectador reforçam sutilmente essa visibilidade fragilizada, enraizada num cotidiano de adormecimento do senso crítico. Os muros que dominam as paisagens da metrópole se tornaram companheiros do nosso olhar, não mais ressoando como alertas para um distanciamento calculado. É como se a câmera, simplesmente deixada como “voyeur”, ressignificasse toda uma tradição imobiliária pelo simples fato de possuir uma lente.
Essa mesma simplicidade de se registrar o espaço – que reforça a ideia de que grandes cineastas conseguem comunicar muito com pouco – se faz presente nas tomadas internas, ambientes explorados junto a movimentos suaves, mas que imprimem certa instabilidade. Acrescidos de uma trilha incômoda, elas representam a injusta conversão de muitos brasileiros em “parasitas” que são expulsos de dentro para fora. O diálogo que o personagem de Felipe Terra estabelece com seu amigo, próximo a uma janela, é uma evidência dessa lógica da não manifestação espacial. Ele é excluído fisicamente da tela e propaga suas palavras com certa dificuldade, considerando os ruídos sonoros de chuva que se misturam a elas.
Tal olhar sobre o simples ainda é aplicado no enquadramento que vincula um passageiro de metrô – no qual ele logo adentra um túnel metafórico, que representa a dificuldade de se encontrar uma luz ao fim dessa jornada – a um cartaz do longa 12 Anos de Escravidão, sintetizando décadas de um sentimento descontente em alguns segundos de curta documental.
Tudo isso, e ainda aliado a um brilhante resgate de cenas do seriado “Chaves” – analogia da universalidade dessa problemática e do silenciamento ao qual suas vítimas são condenadas – tornam este um curta original em sua abordagem, que prioriza o simples na construção de seu importante discurso social.
Alavancado por sons e imagens de outras obras, Lincoln Péricles lidera um olhar sensível sobre fatos que estão escancarados, mas sobre os quais poucos têm a decência de se debruçar – seja por causa dos ruídos da vida cotidiana ou pela pura indiferença que nos domina.