A PASSAGEM DO COMETA

Pesadelo noir feminino

Em “A Passagem do Cometa”, exibido na Mostra Brasil 7, temos a situação do aborto numa clínica clandestina pelo olhar da mulher. A diretora Juliana Rojas aborda um tema ainda muito atual, mostrado aqui em 1986, mesmo ano da última passagem do cometa Halley, propondo uma reflexão sobre o que mudou nesse quadro. A tensão é mostrada em gestos, olhares e advertências.

Os questionamentos que uma decisão como essa levantam são trazidos em frases que ficam suspensas no ar ao longo da projeção.

“– É só uma mancha!”

“– Parece que esse corpo não é meu!”

Nada no filme é aleatório. A produção é embalada por uma interessante trilha, em especial pela música-tema que evoca o trabalho de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção.

As roupas e cabelos das quatro personagens principais nos levam para a época proposta de forma eficiente. E no cenário carregado de referências dos anos 1980, podemos ver símbolos que nos remetem ao corpo da mulher, como a tapeçaria que fica atrás da recepcionista; toda a ambientação ajuda bastante na nossa imersão temática.

A direção é muito perspicaz na criação da mise-en-scène em vários momentos, flertando com o drama e o suspense, sempre com bastante realismo e de forma enxuta, com lampejos de momentos que a gente completa depois, sobre a realidade daquele contexto. Como na cena em que vemos o cansaço da Dra. Adelaide (Gilda Nomace): quantas mulheres ela atende por dia numa clínica clandestina? O gesto da médica, de empatia junto à paciente, e a forma como é mostrada para a personagem a importância de o trabalho dela ser remunerado ou não, também lançam perguntas.

Uma outra sequência que chama a atenção são os desenhos em néon que se sobrepõem durante o sonho/anestesia de Thais, ao som de uma música que é praticamente um solilóquio cantado. A diretora mostra o momento pós-operatório como um verdadeiro pesadelo noir feminino.

O filme nos conduz o tempo inteiro a uma impressão de que vai acontecer algo ruim. O pior pode ou não acontecer. É como se dissesse que estamos numa situação impreterivelmente ruim, que mesmo “quando dá certo” deixa marcas e traumas.

As diferentes expectativas que duas das personagem têm a respeito daquela noite, seja no aspecto do macrocosmo da passagem de um cometa e o que aquilo traz, ou no microcosmo do interior do corpo da mulher, trazem ecos de “Melancolia”, de Lars von Trier.

(Ande Romano)

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *