A RESISTÊNCIA DO PERTENCER E A DESCOBERTA DA IDENTIDADE – Mostra Latino-Americana

por Gabriel Presto

Como discutido por Glauber Rocha em seu manifesto Uma Estética da Fome (1965), havia um forte desencontro entre a América Latina representada no cinema e a América Latina como ela é de fato. Da publicação do manifesto para cá, é satisfatório perceber, a partir dos filmes que compõem a mostra, que hoje somos levados a conhecer a cultura de povos excluídos, as paisagens de regiões remotas, a partir de um cinema feito pelo próprio povo que o representa.

Do México à Argentina, em variantes do espanhol ou em línguas nativas, o cotidiano de personagens impõe-se aos espectadores através de narrativas e alegorias sofisticadas, comprovando a potência da representação dessa população invisibilizada. Pessoas, culturas, línguas e espaços que vivem sob a constante ameaça do apagamento de sua identidade e autonomia.

Somos quem somos e nos reconhecemos individualmente como seres humanos a partir da relação com o outro. Na América Latina atormentada pelos fantasmas do colonialismo etnocida, essa relação pode ser crucial para a sobrevivência de seus povos e de sua memória. Como resultado, a busca pelo pertencimento surge como a substância do conforto e dos conflitos internos vividos pelos personagens que representam a diversidade da população latino-americana retratada nos filmes.

Em Invisíveis (Colômbia), a perspectiva da criança potencializa ainda mais o descobrimento de si enquanto parte de um todo. Em um contexto social e politicamente fragmentado, Azen, um menino de 9 anos, encara sua ancestralidade ao mesmo tempo em que a existência de seu povo é colocada em risco. Além da narrativa complexa retratada com planos bem estruturados que resultam num universo mágico e psicodélico, a identidade em construção do personagem indígena é encenada em sua língua nativa. O espanhol aparece em segundo plano, na voz do locutor da rádio que anuncia as mortes causadas pelo neocolonialismo.

A exuberância da natureza e das culturas segue como um aspecto marcante do continente. O profundo azul do céu e do mar no Caribe, em Yemaya, cumpre o mesmo papel do intenso verde da mata fechada na Colômbia e do amarelo árido na paisagem mexicana, em Somos Pequenas. A natureza é palco da vida em coletividade, dos corpos sociais que nela habitam e que são ainda mais ricos que suas cores.

Estrelas do Deserto (Chile) expõe a célebre paisagem do deserto do Atacama ao abordar o sentimento de abandono, resultado da decomposição do time de futebol formado por crianças de um pobre vilarejo. Pouco a pouco, o jovem Antay vê seus amigos partindo com a família por conta da seca. Assim como a terra e a comunidade, o time de futebol vai perdendo sua prosperidade a cada abandono. Na terra abandonada, não há espaço para a vida. E onde não há vida, não há memória.

Num mundo profundamente globalizado, continentes inteiros dificilmente se libertarão completamente das grandes cicatrizes deixadas pela colonização etnocida que ainda perdura. Como uma floresta em processo de desertificação – ou como um time de futebol que não pode jogar porque depende de um corpo coletivo para entrar em ação -, a memória e a autonomia de muitos grupos é constantemente devastada. A arte e seu princípio de liberdade tornam-se uma importante ferramenta para representação de universos particulares que estão longe de estarem isolados. Se eu é o outro, quando o outro morre eu morro também.

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