Ainda durante os créditos iniciais, uma voz off de depoimento, falando em vida, sofrimento, mundo e Deus. Logo após, outra voz externa, um rádio, locutor popular, relembrando os momentos iniciais de O Bandido da Luz Vermelha (1968), que fala de um crime passional.
Um hospital. Voz externa em oração. Montagem rápida intercalando insinuações de uma operação, e apresentações em um cabaré. Vemos, então, um órgão genital masculino, inerte, ensanguentado, posto em uma bandeja hospitalar; pode simbolizar morte de uma identidade para nascimento de outra, mas também, e isso parece reverberar no curta, uma forma de castração, gerando sofrimento.
A oração continua. Estamos dentro de uma igreja envolta em luzes celestiais. Em seguida, sem a oração, voltamos ao “inferninho”. O protagonista transexual Joel(ma) seguirá desafiando o senso comum, sendo, de sua forma extremamente religioso(a), vítima de conflitos internos.
O filme trabalha em sua montagem com uma lógica que combina antecipação e retorno. Depois de voltar para a cidade natal acompanhada de um companheiro é que descobrimos como a relação começou, mas temos também o prenúncio de uma prisão, antes de um julgamento, e um julgamento antes da consumação de um crime.
É de se pensar se essas alterações cronológicas da narrativa evocam, na verdade, o pré-julgamento social das escolhas de orientação sexual tomadas por Joelma, que nasceu em um rincão nordestino de atmosfera oligárquica (remetendo ao município de Sucupira, no Bem Amado de Dias Gomes).
Falando em “evocações”: voltemos ao locutor de rádio, que anuncia a abertura da nova delegacia da cidade em um carro que passa. Ele enfatiza o aumento de capacidade da retenção (“Para mais de 20 presos”) e o dado bizarro: o primeiro detento capturado ganhará um rádio de pilha (anúncio de “modernidade” e pompa, de novo, a mesma que toma Odorico Paraguassu quando da inauguração do cemitério de Sucupira). Nesse exato momento, Joelma retorna; há uma insinuação de tragédia por vir.
A ironia que une “céu” e “inferno”, espírito e carne, igreja e cabaré, torna o curta uma espécie de obra levada a cabo por um “Almodóvar Agreste”: o transexual tenciona abrir o seu templo, mas um auxilar nessa tarefa tenta estuprar Joelma. O ex-mendigo, atual marido desta, arrisca-se a defendê-la, mas acaba morto pelo agressor, que é morto, em legítima defesa, pela protagonista.
Qual a saída depois de constatado o crime? A culpa cristã acomete Joelma; ela se entregará, roupas sujas de sangue, faca ainda na mão. Recebe das mãos do próprio delegado, dentro da “jóia da coroa” local, o rádio ao qual tem direito, ironia máxima, tocando uma melodia religiosa erudita.
A assassina terá seu pecado maior expiado, será inocentada pelo juiz Edmundo da Crucificação. Outro sarcasmo do filme, unindo o mundano e o divino em uma mesma lei, não sem um riso patético (nos dois sentidos, trágico e ridículo).
Ao final, Joelma terá voltado ao mundo da “carne”? A última cena diz que sim, mas a estrutura narrativa de idas e voltas do filme nos deixa na dúvida. A única certeza, também irônica, logicamente é a de que, graças a Deus, não vivemos em uma teocracia, que proibiria a existência de uma personagem com esse tipo de contradição, entre fé e “perdição”. Mas apenas Bolsonaro e seus asseclas ainda creem que isso só existe na ficção de “mentes doentias”.
Rafael Marcelino
Joelma está na Mostra Brasil 1. Clique aqui para ver a programação