Sobre a impotência do ato de filmar

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Mariana Moura –

E se nossa realidade fosse televisionada? Junto com ela, todas as violências que sofremos diariamente? E se os maridos agressores filmassem os momentos “estressados” com suas mulheres? E se, a partir de agora, todo criminoso filmasse sua execução ou agressão? Como seria o mundo se tudo fosse filmado e postado no YouTube ou no Facebook?

É essa pergunta que fica na cabeça depois de sentir e é claro, assistir Este ambiente está sendo filmado?. E tudo foi filmado mesmo. O curta mostra a trajetória de três jovens, depois de um tempo de terem vivenciado um acidente em plena avenida de São Paulo: um homem morto assustou os três baladeiros, que viram o corpo no carro, antes de ir para uma balada, que não foi tão interessante naquela noite.

O curta começa com as lembranças de David e Sarah sobre o ocorrido na noite. Enquanto ouvimos os relatos dos dois, durante a própria gravação sabemos que o terceiro amigo presente na noite é quem está filmando o curta e, por mais que ele não apareça, está presente nas narrações e participa da história, mesmo sem vermos seu rosto ou ouvirmos seu depoimento.

Além da narração – algumas vezes exagerada, pois o narrador poderia falar menos que o público entenderia de qualquer forma a proposta do curta –, também vemos cenas fortes de violência, expostas em pequenos quadros espalhados pela tela, mas que já causam incômodo em alguns espectadores. A narração faz algumas relações das imagens “caseiras” com outras situações de guerra e outros vídeos disponíveis na internet. Sarah fala sobre a questão da impotência que temos diante de uma situação de perigo e logo depois desse depoimento, podemos pensar, ironicamente, sobre essa impotência, o vídeo mostra um homem sendo atacado por leões e logo em seguida, outro vídeo de uma mulher sendo atacada por um homem.

E por que continuamos nessa impotência? Parece que o fato de gravarmos um vídeo nos torna isentos da responsabilidade, já é uma denúncia. O curta fala de vários aspectos, mas um dos mais fortes é essa nossa indiferença diante de situações limite, onde apenas pegamos os celulares e filmamos. Dessa maneira, nos tornamos internautas passivos de um ato violento, porém achando que estamos fazendo um bem para a sociedade com esse registro. E se, ao invés de filmarmos, fossemos ajudar com nossas próprias mãos?

Os dois jovens que vivenciaram a história nos contam com câmera estática, o que faz com que nós, espectadores, mergulhemos em suas expressões, queremos saber o que esse acontecimento despertou em cada um. O filme investe em mostrar essas gravações caseiras: em determinados momentos estou completamente dentro do filme e, em outros momentos, me distancio por conta dos cortes que ele propõe. É como se minha mente fosse o olho da câmera que recebe o depoimento, daqui a pouco corta para o Youtube, volta a mergulhar na intensidade e sensações do David e Sarah, sai novamente e vai pra cima de um viaduto, onde um homem tenta se suicidar. Respiro, me mexo na cadeira, estou incomodada. Até que no final quero muito ver o vídeo narrado durante todo o curta e só vejo o começo dele, não vejo o corpo estirado no chão da grande avenida e isso é ótimo, a imagem fica no meu imaginário, na câmera da minha mente, em mim.

O filme nos arrebata e não apresenta nenhuma resposta ao problema, porque resposta não temos, por enquanto só temos um ponto de interrogação na testa, um aparelho que registra tudo o que não sabemos lidar, a violência, a morte, a impotência. Sempre estamos atrás do olho da câmera, filmando e registrando tudo, o tempo todo, postando e curtindo tudo, sem sentir nada.

Este Ambiente está Sendo Filmado está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

CICLO 7×1 e o legado da Copa

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por Lígia Hsu –

Este ano contamos com filmes produzidos durante a Copa do Mundo de 2014, uma oportunidade única para que cineastas apontassem suas câmeras para o olho do furacão: um evento de alcance mundial em terras tupiniquins. O diretor Gil Baroni soube aproveitar essa oportunidade através do documentário Ciclo 7×1.

Luana, carroceira, mãe de seis filhos, percorre as ruas de Curitiba durante o período da Copa do Mundo recolhendo material para reciclagem, seu ganha pão. A vida dessa mulher passa longe do maior evento do Brasil. Seus filhos estão de férias, ela não. A solução é carregar dois deles pelas ruas da cidade, enquanto a mais velha, uma pré-adolescente, dá conta dos outros três em casa.

A câmera ocupa diversos pontos de vistas: ora é Luana observando a euforia da Copa, ora observa o que Luana e seus filhos observam, ora se afasta e capta Luana interagindo com a cidade, ora se coloca dentro dos bares e mantém Luana à margem dos acontecimentos.

Existe também uma câmera instalada no interior do seu carrinho e essa proximidade revela algumas falas, na maioria corriqueiras, porém algumas bem relevantes, como por exemplo, dizer aos filhos que ninguém vai deixá-los entrar no estádio da Copa. Luana é uma mulher pé no chão e atravessa Curitiba de cabeça erguida fazendo seu trabalho. Observa os jogos nas televisões dos bares sem muito envolvimento, apenas deixa que seus filhos possam aproveitar um pouquinho da festa da qual claramente não foram convidados.

Para quem como eu não via sentido na realização de um evento desse porte frente às necessidades mais básicas e fundamentais do país, o filme vai de encontro a esse sentimento de que a Copa não foi para todos e que no dia seguinte ao fatídico 7×1, a vida e os problemas continuaram os mesmos, assim como Luana que na manhã seguinte sai com seu carrinho pelas ruas de Curitiba atrás do sustento da sua família.

Ciclo 7×1 está na Mostra Brasil 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

De Profundis: o chuvisco corrosivo das memórias

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por Rodrigo Sá –

“Vivo numa casa colonial na calçada de sol do parque de San Nicolás, onde passei todos os dias da minha vida sem mulher nem fortuna, onde viveram e morreram meus pais, e onde me propus morrer só, na mesma cama em que nasci e em um dia que desejo longínquo e sem dor.”

Memória de Minhas Putas Tristes, Gabriel Garcia Marquez

De certo modo, o curta De Profundis, de Isabela Cribari, parece dar continuidade a uma reflexão bastante comum no cinema pernambucano contemporâneo: a investigação das relações entre o sujeito e a cidade. Ao enfocar tal relação, a obra une-se a um conjunto extenso de filmes como O Som ao Redor (2012), Boa Sorte, Meu Amor (2012), Um Lugar ao Sol (2009), Praça Walt Disney (2011), Em Trânsito (2013) e Eiffel (2008), que confeccionaram sua narrativa com as agulhas da crítica à cidade e seus processos coercivos de urbanização.

No entanto, a peculiaridade do filme de Isabela deve-se ao fato de a abordagem seguir na contramão dos demais filmes citados acima. De Profundis não trata de um problema circunscrito aos limites metropolitanos da capital Recife, mas investiga algo que irrompeu na cidade interiorana de Itacuruba. Isabela – que além de cineasta é também psicanalista – estava incomodada com o fato de a cidade apresentar níveis de depressão dez vezes maiores que a média nacional. Alimentada por esse incômodo e pela crença de que o cinema é um instrumento propício para refletir sobre o tema, Isabela foi até Itacuruba e filmou De Profundis, obra que desponta como um dos destaques da Mostra Brasil do Festival Internacional de Curtas de São Paulo, assim como destacou-se em festivais anteriores como É Tudo Verdade e Mostra do Filme Livre (onde chegou a ser premiado).

De antemão, acentua-se a semelhança do modo da diretora proceder à do filósofo Bachelard (autor do memorável Poética do Espaço), isto é, tomando o espaço como instrumento de análise para a subjetividade. Isso se deve a constatação de que os casos de depressão foram deflagrados após a destruição de Itacuruba Velha para a construção da Barragem de Itaparica. Os vestígios do deslocamento dos moradores para a Nova Itacuruba foram atravessados por contornos psíquicos. Se antes, era exatamente a proximidade dos rios que atraíam os povos indígenas para a região (vide o exemplo dos Pankararus). Agora, a proximidade fluvial desencadeou o processo de migração forçada do povo. O caso torna-se ainda mais gritante quando lembramos das recentes expulsões de povos de suas terras em virtude de grandes eventos como a Copa do Mundo

Assolados pelo afogamento da antiga cidade, uma gama de moradores de Itacuruba passaram a sofrer com os sintomas psíquicos da depressão. Trata-se da densidade das memórias perpetuando o eterno retorno delas à superfície. E com elas, a dor profunda.

As lembranças resistem ao afogamento, pois não se deixam levar pelas correntezas aquáticas, transfigurando-se em correntezas áridas de lembranças indeléveis como aquelas apresentadas na primeira sequência do filme, onde o sertão aparece delineado pelo turbulento vagueio de uma correnteza. Uma grandes belezas do filme está justamente na maneira de metaforizar esse pairar das memórias sobre as águas. Belas imagens de corpos e fotografias flutuando no rio simbolizam isso e dotam o filme de uma beleza alegórica que incrementa a narrativa documental.

Para penetrar na vida íntima dos moradores, o filme faz uso das entrevistas, as quais são marcadas pela tristeza profunda decorrente das alterações do modo de vida ocorridas após a migração. Ademais, o curta rejeita as tradicionais cabeças falantes e investe, em vários momentos, nos planos longos, com a câmera fixa, para retratar o vazio que habita a nova cidade. Enquanto isso, a voz em off dos moradores narra os casos psíquicos e seus evidentes motivos. Os relatos são ressaltados pelos sons de águas submersas que misturam-se às vozes das personagens juntamente com os ruídos das ruas da cidade onde subsistem apenas o vazio e um (quase) silêncio ensurdecedor. Quando são as imagens da água que invadiu a cidade que emerge na tela, é o som estridente de um violino que ressalta o padecimento que boia incansavelmente sobre a água. Assim, o elemento sonoro configura-se como um aspecto de bastante relevância para proporcionar ao curta uma perene atmosfera sufocante, tal como a que ressoa coercivamente entre os habitantes do novo território.

Imagens de arquivos são apresentadas para ilustrar imagens antigas da cidade, ancorando o filme na historicidade dos fatos e solidificando o conhecimento do contexto dos acontecimentos. O fato das imagens terem sido gravadas pelos próprios moradores – ao menos uma parte delas, como percebe-se pela narração que as acompanha – potencializa ainda mais a dramaticidade das imagens e o valor afetivo relacionado a elas. Uma cena onde vibra uma alegria aparente, na qual os moradores dançavam em um baile da região, é acompanhada pelo violino angustiante. Com isso, somos remetidos à noção de que o processo de rememoração é sempre permeado pelo presente, ou seja, de onde se rememora. Logo, ainda que naquele momento os moradores esbanjassem alegria, é a situação sofrível do presente que determina a maneira delas ascenderem, via memória, no presente. Em vista disso, o violino atribui a cena uma temporalidade que coaduna com a do momento que os personagens estão a contar seus relatos.

Uma espécie de anseio pode ser visto no plano em que é apresentada uma casa cuja decoração é repleta de guarda-chuvas pendurados. Talvez, o que os moradores da cidade mais quisessem era uma proteção como essa para não serem atingidos pelo chuvisco uniforme e corrosivo das memórias. Ou então, no limite, fazer o mesmo que aquela moça no último plano do filme: seguir rio a dentro, caminhar para as águas profundas, como se lá no fundo houvesse de surgir um atalho para a cidade antiga, para um tempo que não existe mais.

O escoamento das imagens da cidade submersa com as vozes narrando os acontecimentos é dilacerante. O pouco que resta da parte superior da igreja sobre as águas é consoante ao pouco que resta daqueles moradores, já que uma parte deles ficou no antigo território. Num momento pungente do curta, uma moradora relata um caso de suicídio e afirma não ter explicação para o acontecimento. Todavia, as imagens da cidade submersa não mentem: o desaparecimento da cidade é a única explicação possível.

De Profundis, ao tratar de maneira poética com relances experimentais da especificidade da situação dos moradores de Itacuruba – marcada pelos vertiginosos e surpreendentes casos de depressão – eclode como uma obra que não apenas serve como instrumento de crítica aos processos de migrações forçados, mas também para captar o sentimento da depressão, o qual insiste em não submeter-se à linguagem – nem mesmo a da própria psiquiatria, como dizia Foucault: “A psicologia não tem a verdade sobre a loucura, a loucura tem a verdade sobre a psiquiatria –, mas que por vezes é tangenciado por uma obra de uma profundidade tal como De Profundis. Além disso, em um tempo onde casos de depressão e de violência contra povos nativos é cada vez mais frequente, é imprescindível a construção de uma linguagem que abarque o tema fugindo do convencional. Apenas assim, a obra assume uma magnitude capaz de exceder os limites do comum e tornar-se algo de uma pertinência irrefutável.

Começou o Crítica Curta 2015

26º festival internacional de curtas metragens de são paulo curta kinoforum

Estamos a um dia do começo do 26º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo. E como acontece em todos os anos desde 2005, a oficina Crítica Curta convida estudantes de curso de de audiovisual em instituições da cidade a produzir reflexão em texto sobre os filmes exibidos no festival. A coordenação do projeto neste ano fica novamente a cargo do crítico de cinema, pesquisador e jornalista Heitor Augusto.

Assim como no ano passado, este blog volta a ser o espaço de publicação dos artigos, apostando que a publicação no ambiente virtual permite mas possibilidades de circulação dos textos e diálogos com os leitores – realizadores e público em geral. Os participantes da oficina terão a responsabilidade de assistir diversas sessões que compõem o cardápio do festival. Suas reflexões estarão concentradas nos curtas das mostras Brasil, Panorama Paulista, Cinema em Curso e Latino-americana.

O blog Crítica Curta terá posts diários, escritos pelos “calouros” (que participam da oficina pela primeira vez) e “veteranos” (que já compuseram o projeto no ano passado e são convidados). Você pode acompanhar as atualizações pelas redes sociais, seguindo o Twitter da Kinoforum [clique aqui] e curtindo a página do Facebook [clique aqui]. No topo de cada post no blog você encontrará um botão para compartilhar os textos.

A navegação é simples: na parte superior da home page estão os posts mais recentes. Do lado direito da metade inferior da home você poderá procurar por textos usando tags (nome do filme, nome do diretor, nome do autor, tema do curta etc). À direita de cada página há a nuvem de tags, que aponta os tópicos mais comentados nos textos.

Abaixo está a lista dos calouros que participam da oficina neste ano:

Adriana Gaeta
Armando Manoel Neto
Giovanni Rizzo
Janaina Garcia
Juliana Souza
Lígia Jalantonio Hsu
Mariana Moura Lima
Raphael Gomes
Rafael Dornellas
Rodrigo Sá

Sejam bem-vindos e boa leitura!

Termina mais um Crítica Curta

audiencia de cinema

Dezessete estudantes de cinema e comunicação. Doze dias de cobertura de filmes espalhados pelas mostras Brasil, Internacional, Panorama Paulista, Latino-americana, Diversidade Sexual e Infanto-juvenil. Chega ao fim mais uma edição, a 10ª, do Crítica Curta, oficina de crítica de cinema que acontece durante o Festival Internacional de Curtas-metragens, cujos textos são publicados neste espaço.

Os textos produzidos neste ano continuarão disponíveis no blog, servindo como fonte de pesquisa para os próximos anos, ilustrando como esse ou aquele curta foi recebido no calor da hora. Para realizar uma consulta de um texto ou filme específico, basta usar o campo de busca na página inicial do blog (no topo, à direita, desta página), digitando o nome do filme. Se desejar navegar pelos assuntos que mais apareceram nos textos, basca fazer uma busca utilizando uma tag sob a qual as críticas foram marcadas (por exemplo: “adolescência”, “violência”, “política”, “animação”, etc).

É possível também efetuar buscas por meio da mostra em que os filmes foram exibidos. Lobo abaixo o campo de buscas, navegue por um dos itens tópico Filtro por Mostras.

Como coordenador do projeto, deixo aqui um agradecimento aos oficineiros que se comprometeram em realizar reflexões a respeito do curta-metragem, ao Festival de Curtas por manter a atividade, e aos leitores que acompanharam a cobertura por aqui.

Heitor Augusto

Breves anotações do do curta brasileiro contemporâneo

algum lugar no recreio

Ricardo Corsetti –

Ao assistir o máximo possível de curtas apresentados na Mostra Brasil, percebi uma tendência dominante nessa categoria: a do experimentalismo vazio tentando se passar por “cinema de autor”. Destaco nessa categoria, curtas como Salomão (2013), dirigido por Alexandre Wahrhaftig e Miguel Antunes Ramos, e Até o Céu Leva Mais ou Menos 15 Minutos (2013), dirigido por Camila Battistetti.

No primeiro caso, o que vemos não é nada além de uma montagem feita a partir de imagens de operários de construção trabalhando, intercaladas por reproduções gráficas do mitológico Templo de Salomão ao qual a bíblia cristã faz referências. Ora, acho relevante abordar por meio de um curta documental a polêmica construção do faraônico Templo de Salomão empreendida pela Igreja Universal do Reino de Deus, uma instituição marcada pela exploração da boa fé de seus fiéis e sempre associada a formas “nebulosas” de enriquecimento. No entanto, ao invés de uma pesquisa séria ilustrada por meio de entrevistas e fatos esclarecedores acerca do tema, o que vemos em Salomão, não é nada além de uma simples e breve montagem de imagens que, teoricamente, deveriam permitir a livre associação por parte dos espectadores em relação à construção do templo real, mas que, na minha modesta opinião, não ultrapassa a barreira que separa o experimentalismo consciente e verdadeiramente transgressor das normas impostas pela narrativa clássica, do mero exibicionismo estético disfarçado de autoralidade.

Já em Até o céu leva mais ou menos 15 minutos, vejo apenas um bom trabalho de montagem/edição que visa encurtar e, ao mesmo tempo, tornar interessante o fato registrado, por meio de uma câmera estática: crianças berrando e chorando durante um passeio de carro. Confesso não entender mesmo o motivo deste curta ter feito, aparentemente, tanto sucesso entre o público participante do festival. Talvez isso se deva a evidente exploração da “fofura” do objeto filmado; o que, na minha modesta opinião, é mesmo muito pouco para justificar o êxito deste trabalho em termos autorais.

Por outro lado, destaco entre os curtas brasileiros que vi (embora tenham sido exibidos na mostra Panorama Paulista), Algum Lugar no Recreio (2014) [foto], dirigido por Caroline Fioratti e O que Fica (2014), dirigido por Daniella Saba. No primeiro filme, a trama e a estrutura narrativa são, sim, convencionais. Porém, vemos um roteiro bem escrito, com diversas tramas paralelas bem amarradas e também um ótimo trabalho de direção, a começar pelo belíssimo plano-sequência utilizado logo no início do curta, visando permitir a condução da ação aos próprios personagens em cena. O universo aqui retratado (problemas da adolescência) pode até não apresentar novidades, mas é belamente apresentado em termos técnicos.

Já em O que Fica, sei que muitos questionarão o fato de o roteiro ter sido escrito em francês, o que gera a obtenção de um humor tipicamente europeu. No entanto, foi justamente a sutileza do humor obtido pela roteirista e diretora do filme o que me cativou ao assistí-lo. Aqui também a estrutura narrativa é convencional o que, porém, em nada prejudica o filme, devido ao ótimo trabalho de direção, caracterizado por perfeito domínio do ritmo e consequente desenvolvimento da trama.

Por fim, faço questão de dizer que na condição estudante de cinema e aspirante a diretor, sou absolutamente a favor do experimentalismo e do autoralismo no cinema. Sobretudo no universo dos curtas-metragens que sempre renderam campo fértil à realização de tais práticas. Apenas faço ressalvas quanto ao experimentalismo vazio em termos de conteúdo que, muitas vezes, ao ser tão frequentamente praticado, acaba criando a ilusão de que um filme (ou curta, no caso) não pode ser convencional e muito bom ao mesmo tempo.

Contos da Maré: a inocência e a sagacidade

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Por Eleonora Del Bianchi –

Pessoalmente nunca entendo ironias e sempre acredito nas história mais bizarras. Quando  questionada de como não desconfio, respondo: tudo é possível!

O curta Contos da Maré me encantou muito por tratar de temas bonitos que já renderam tantas outras produções boas também: a inocência e as histórias orais. Sempre me lembro da cena do filme O Contador de Histórias quando Marguerit e Roberto Carlos assistem a apresentação de rua de um vendedor de bugigangas. Ela compra o que ele  diz ser a caneta que a princesa Isabel usou para assinar a Lei Áurea e Roberto fica bravo, pois o homem tinha várias outras, aquela com certeza não era a original: “Eu não estou comprando a caneta, estou comprando a história”, diz ela. É um filme incrível, real e inocente. Ela acredita  no menino e ele aprende a ver coisas bonitas no mundo, que não pensava ser possível ver e  acreditar e a passar isso adiante.

Também me lembrei do Mundo imaginário do Dr Parnassus falando do desmoronamento do  mundo sem as histórias contadas, sem as leituras e o acreditar no faz de conta. Quando somos pequenos ouvimos histórias e tudo faz sentido, não desconfiamos de nossos narradores pois não sabemos muito sobre nada, não criamos padrões. Somente ouvimos e absorvemos as informações. E o mundo parece tão maior e infinito.

O curta mistura a história do Complexo da Maré, conglomerado de favelas na zona norte do Rio de Janeiro, com a da família do diretor e roteirista Douglas Soares, usados como os atores do  curta, com a vida cotidiana no local e com as lendas urbanas que marcaram os moradores quando crianças, antes do smartphone e popularização da televisão nas conversas de fim de noite depois do jantar e que repassam hoje aos jovens boca a boca. “Toda a minha infância eu passei no Complexo da Maré, entre meus tios e avós maternos, que me contavam muitas histórias do passado daquele lugar. Queria trazer para a obra a mesma sensação íntima e afetiva que sentia quando meus familiares me recebiam, cuidavam e narravam histórias e lendas para mim, minha irmã e meus primos”, diz o diretor.

Os folclores que eles contam vão desde o inexplicável das noite escuras, sem eletricidade, com  barulhos bizarros que relacionavam a lobisomens e usavam para manter os filhos em casa: “A  noite é do bicho”; Ao bizarro, como o homem que teve um filho parecido com os porcos que vendia, e que teve de ir até à Polícia de tanta gente que queria ver. E às invenções de locais comuns, como a mulher que cozinhou uma sopa muito ruim que diziam ser cobra, e todo  mundo que tomou morreu, só sobrou ela que virava cobra todo ano, começando a descamar na semana santa.

Cada narrador usa uma máscara de animal. Eles podem estar representando a história, mas nem por isso elas deixam de ser reais, de certa forma. Um dos tios diz: “Acho que as coisas hoje não existem mais porque as pessoas pararam de acreditar. As pessoas não conhecem mais, mas quando a gente conta eles ficam fascinados”.

Ao final o avô diz que não toca teclado, que fica no automático e ele toca nota aleatórias. A avó diz que não, que ele toca muito bem.

Ele ri e continua, dizendo que essas historias são mentira, que lobisomem não existe nada. E no fim o vemos tocando. Ele aperta as teclas sem medo, apesar de claramente não saber bem o que está fazendo. Ainda assim elas se harmonizam com o som contínuo do teclado e, apesar de que talvez seja verdade que ele não saiba tocar, ele está feliz tocando – sua esposa fica por perto e gosta de ouvi­-lo e o resultado vale a pena escutar.

Contos da Maré está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Mundo Incrível Remix: assim nascem as religiões

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por Artur Ivo –

Aqui falarei do Mundo Incrível Remix, curta cheio do pop e do underground. Afinal o que mais pop e underground que exoterismo? Ainda mais quando misturamos celebridades, animais e alienígenas. Esse é o curta: essa lambança colorida e fantástica.

O filme começa cadenciando relatos de viagens e religiosidades até cair num mundo onírico de efeitos especiais conturbados. O ritmo frenético alucina a plateia até parar numa calmaria com plano parado e longos. Mas nesse ponto do filme o áudio se torna fantástico com relatos de estegossauros, Clodovil, alienígenas, Jesus, porcos e tartarugas. Depois disso nasce o Messias encarnado no corpo de um porquinho.

Afinal o que é isso?

Tive que sair da sala quando acabou o curta, e do lado de fora um senhor me disse que o filme não tinha conteúdo ou mensagem, depois perguntou se eu era da equipe com medo da gafe. Mas não é assim também, não podemos ser tão duros com um filme tão diferente por mais que ele seja essa massaroca multicolor perturbada, tem seus momentos. Ele é praticamente um livro sagrado com histórias de superação e morte, onde existem os escolhidos e muita presença espiritual. Claro que é um espiritual forçado, pop, mas ele é bem presente e importantíssimo no filme.

Além disso, o filme consegue, através de diferentes visões, nos colocar fora do filme. Ele utiliza pessoas vendo uma imagem filmada na tela, acompanhando uma música cortada pela edição, além de efeitos toscos (acredito eu) de propósito. O filme tenta experimentar e consegue, em várias áreas cinematográficas, mas se não fosse o tema, o filme iria bem mal (pior que isso). Quando eu digo que ele consegue experimentar graças ao tema é pelo aparato pop e o tema exotérico, tratado de forma trash, algo que contribui com efeitos mais baratos e mais simples. Mundo Incrível Remix se destaca por conseguir assumir seu lado trash e pensar num curta diferente – ele tem um tema muito raro no festival. Talvez pensando nos vídeos da internet, ele não se destaca tanto, já que essa estética é presente no mundo de vídeos underground, no YouTube e Vimeo.

Mas quando penso em festival e mesmo em cinema comercial, esse tema não é muito comum e por isso mesmo o filme tem mérito em conseguir trazer esse tema para as telas projetadas em cinema.

Apesar desse mérito, é um filme que perde bastante o foco e nas suas loucuras, deixando o público muitas vezes cansados – como o velhinho que veio reclamar do filme. Os efeitos cansam a vista e os efeitos fantásticos esgotam a narrativa. Talvez tenha faltado uma dosagem dos papeis do efeito e da apresentação do enredo.

Mesmo com os defeitos, o filme é uma grande religião – eu diria, inclusive, que os erros contribuem para isso. O curta tem todo o progresso e uma ideia voltada para isso, como se quisesse criar uma religião de verdade – ou, então, criticar as religiões, o que não é o meu palpite. Se o filme tivesse sido bem feito e divulgado eu não me surpreenderia se ele criasse alguns seguidores e fanáticos.

Mundo Incrível Remix está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Um boneco desanimado

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por Samuel Mariani –

A vida de um boneco de maquetes pode ser muito interessante, não somente por conta da originalidade das suas locações, mas também pela construção de um personagem “estrangeiro” neste mesmo mundo.

Acompanhando o boneco argentino Javier Juarez Garcia pelos stands de venda de apartamentos em São Paulo, é interessante imaginar o que está sendo vendido se não um personagem, um estilo de vida, uma história, um curta-metragem.

Bem assimilado dentro de um arco narrativo, Edifício Tatuapé Mahal se justifica pelo seu conceito, assim como cria um universo narrativo que está sempre se legitimando dentro do contexto do filme. Elementos de quadro e ângulos de câmera temáticos tratam elegantemente da “vida de merda” do boneco Javier dentro de um universo no qual o próprio processo de animação é muito meticuloso: ele estuda o tipo de movimento (ou ausência do mesmo) desses mesmos bonecos, compondo um ritmo bem específico.

A sincronia desses elementos, além de não deixar de trabalhar (e expandir) a narrativa no primeiro plano, trabalha seu tempo para que muitos dos payoffs do roteiro sejam resolvidos com humor.

No final das contas, o curta de Carolina Markowics e Fernanda Salloum dedica-se a uma história de bonecos com motivações bem humanas, e sua característica metafísica e justificativas bem ao estilo Starevich (Cameraman’s Revenge, 1912) geram uma animação brasileira de linguagem universal e bem sucedida.

Edifício Tatuapé Mahal está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Ameaçados: retrato de um povo perseguido

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por Pither Lopes –

Reinterpretar o novo mundo que à nossa frente se coloca, cada vez mais instável, hostil e inseguro, tornou-se como nunca essencial. A mídia globalizada, com seus crescentes processos de manipulação, não oferece as investigações, respostas e análises com a densidade necessária. A câmera jornalística, genérica e superficial, foi sequestrada pelos interesses dos conglomerados empresariais.

Nesse embate pelo novo front do olhar, o documentário, que se constitui a um só tempo escudo crítico e pausa reflexiva, vê-se como gênero eleito de primeira necessidade; uma linguagem que se revela inevitável à sobrevivência do espírito ético. Em Ameaçados, a diretora Julia Mariano se apropria com maestria dessa ferramenta cinematográfica para investigar a tragédia de um Brasil profundo, a história de sujeitos abandonados a própria sorte.

Figurando entre os favoritos do público na 25° Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, Ameaçados retrata o cotidiano de pequenos agricultores do sul e sudeste do Pará que lutam por um pedaço de terra para plantarem e garantirem sua subsistência. Lugar onde a lei está do lado dos poderosos, a luta pela sobrevivência e por um pedaço de terra virou questão de vida ou morte.

Para compor seu documentário, Julia optou por dar voz àqueles que não são ouvidos, aos marginalizados e perseguidos por um sistema opressor. A diretora construiu um retrato revelador e coerente do estado que registra 70% dos casos de trabalho escravo no Brasil e que possui o maior número de assassinatos no campo. O mesmo estado que em que foi assassinada a missionária Dorothy Stang, perseguida por fazendeiros porque defendia o uso sustentável da terra.

O documentário, que se utiliza de voz off e entrevistas, adquiriu uma estrutura certeira, abordando as questões mais caras ao tema. Além de trazer à tela a saga de trabalhadores vítimas de um sistema que controla pessoas e compromete a qualidade de vida de milhares de brasileiros, a cineasta parte para a denúncia das violaçãoes dos direitos humanos e da omissão do estado.

A intervenção do próprio poder público, tentando impor um modelo de desenvolvimento para essas regiões nas últimas décadas favoreceu grupos econômicos, pecuaristas, madeireiros e grandes mineradoras. Consequentemente, elimina e expulsa indígenas, quilombolas, trabalhadores e sem terras.

Para que o povo esteja presente nas telas, não basta que ele exista, é necessário que alguém faça documentários. E, mais que isso, estabeleça asserções sobre o mundo que é mostrado na tela. O cineasta alemão Wim Wenders gostava de dizer que “a política mais importante é aquela que fazemos com o olhar”. Em Ameaçados, Julia Mariano honra com esse compromisso, trazendo a tona uma história que permanece soterrada, fruto da alienação de boa parte dos brasileiros.

A exibição de Ameaçados na programação do festival acontece num ótimo momento para o Brasil. Em tempos de eleições, é preciso trazer para a pauta as discussões em relação ao equivocado modelo agrário do país, que concentra a maior parte da terra nas mãos de poucos. Para propor uma reforma agrária, é preciso contrariar os interesses do capital financeiro que cresce enquanto o cidadão comum perece.

Ameaçados está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014