Saturno: o trash que nos resta

saturno

por Thiago Zygband –

Se não está mal o curta-metragem brasileiro, é inegável: paira certa monotonia. “Cinema de Afeto”, mais do que nunca. Câmeras contemplativas, diálogos de poucas palavras, sensações, relações orgânicas; a ausência da trilha sonora, tantos e tantos finais abertos, o silêncio que emergiu junto com a percepção do tempo. Não há dúvidas, realizamos produções notáveis sob tais recursos – Sem Coração, por exemplo, de Tião e Nora Normande, acaba de arcar com o troféu da Semana de Realizadores de Cannes utilizando-se dessa forma; além de tantos outros bons títulos no festival deste ano. Talvez ainda esteja dando seus primeiro passos esse tipo de cinema, muito embora Bressane já o faça há tempos. Incomoda, então, é o clima de mesmice que parece ter se estabelecido no curta nacional, e em especial no de ficção, no qual certos maneirismos, temas e abordagens se repetem incansáveis ao longo das Mostras Brasil. Estaremos tão afetivos assim? Por que calam nossas personagens? Algo cheira estranho por estas bandas…

Fazendo troça de afetações desonestas, advogando a boçalidade-geral e o desbunde ético, Saturno, de Savio Leite e Clécius Rodrigues, é o único curta honestamente ruim da Mostra Brasil. Não é bom, nem se pretende: assume o trash e se diverte. Parte do pressuposto da digestão de certa mitologia helenística – retoma a história de Saturno, que come seus filhos por temer a concretização da profecia na qual um deles o destronaria. Mas Zeus se salva por sendeiros tortuosos, destrona o pai e assume o poder do Olimpo, onde reinará imortal. Torna-se ele, então, soberano dos gregos.

Diz-se que todo filho há de matar o pai, mas Zeus também revela-se tirano: o mito permeia as relações do filme. Homens explodem uns aos outros, bocas comem bocas, massinhas degringolam-se, mãos amassam homens. A barbárie é geral.

A enorme quantidade de tipos humanos, assim como dos formatos das animações e do próprio quadro, remete-nos às imagens de TV ou vídeos de YouTube. Colocados no cinema, em objetos toscamente animados, ressalta-se a banalidade da imagem de violência. Uma análise menos cuidadosa poderia reduzir o curta ao mero prazer gráfico da coisa – como há em Tom e Jerry, por exemplo – mas, por ali, não há nada de ingênuo: é um mundo de homens irracionais e deformados, vivenciando situações-limite, circundados por violência e reproduzindo-as sem narrativa sequer. A referência ao mundo grego não é à toa, portanto – aquilo é nefando, a impossibilidade de escapatória é o Trágico, cada qual um pequeno tirano.

Ri-se do absurdo das ações – são sádicos os diretores, também o somos. Jogam-nos materiais em colisões às mentes, a montagem é frenética, anti-contemplativa, a trilha sonora tosca e incansável. Talvez não haja nada para ser ver ali, afinal das contas. Qualquer filme de Transformers é muito mais violento, veloz e histriônico do que podemos realizar por aqui. Saturno é paródia burlesca, portanto, e zomba pela precariedade. Já que o ideário Eisensteiniano da justaposição dos fotogramas diferentes que, trazendo o conflito, sobrepujam o pensamento atávico, hoje soa como utopia velha, ao menos avacalhemos.

O filme de Savio Leite e Clécius Rodrigues reafirma a necessidade do experimentalismo como postura crítica e, em tom de deboche, algo crucial por estas bandas – que cinema não se faz só com adornos. Cinema é ato de resistência, desejo que pulsa, exercício de liberdade.

Saturno está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Para além do preto e branco

parque sovietico

por Lucas Navarro –

Comecemos por Parque Soviético. Um casal com encontro marcado dentro de um parque construído em homenagem aos sovietes discute a relação e sua inadiável separação. Na medida em que o diálogo vai tomando a forma prevista do desenlace, a escuta atenta-se para o eco fantasmático dos monumentos cuja reverberação equivale ao mistério da crise. A voz desses obeliscos mudos fala aquilo que o casal silencia. Ambas são, salvo as dimensões, guerras frias.
Há, porém, entre discussões e reconciliações, uma pista, contada somente nas imagens, da natureza misteriosa dessa relação. Ela sucede a abordagem do rapaz nas moças que se fotografam. Consiste em uma série de planos corriqueiros dos gestos retirados da cena que acabamos de ver, só que, agora, vista “de fora” pelos olhos da mulher que os individualiza em fragmentos: sorriso, carícia, olhar: signos que, convertidos pelo olhar ciumento em indícios da culpabilidade do parceiro, compõem o secreto idioma do qual ela não participa. Resta aquela conhecida violência em sua absoluta magnitude infringida contra si própria, decifradora – fracassada – de cenas. A sequência termina com uma segunda suspensão que poderíamos chamar de montagem dialética pouco ortodoxa ao princípio eisensteiniano. Refiro-me a interrupção do fluxo narrativo que des-cobre, em três quadros, o estado desses personagens que, destacados sobre batalhas opostas, convergem na síntese de um mesmo fundo. Entretanto, mal nos acostumamos à terceira via refletida no abraço, voltamos à afirmação da diferença.

Se existe uma lei que aproxima essas duas potências ela está na mútua seriedade com que não participam do encanto contido num mesmo corpo. Tanto isso é verdade que todos os defeitos são levantados até que não reste mais nada com que se possa ornamentar a matéria rochosa. A força contida na diferença cumpre o gesto de ferir lembranças encararando o rosto livre de códigos decifráveis.

O preto e branco conecta Parque Soviético e La Llamada. Não há a intensão de justapor os curtas apenas porque empregam esse efeito, mas sim lidar com as particularidades a partir desse ponto de contato. Enquanto que no primeiro caso essa opção funciona como um personagem norteador que acentua uma diferença primordial – ela veste branco; ele, preto – no segundo ela aparece como resistência à cor – tão cara a Cuba – contrastando o peso da memória ao vazio cotidiano. Ambos os filmes motivaram esse texto menos por suas relações exteriores do que pelo impacto que tiveram iniciando e concluindo uma mesma sessão. Reduzi-los em conceitos significaria ignorar a insolubilidade da experiência que provocaram.

Divididos por uma grade, o cineasta faz perguntas ao seu personagem até que esse assine o termo de contrato para instalação do telefone, o dispositivo que envolverá o filme. Já temos aqui um modo muito original de aproximação do assunto por meio de uma brincadeira metafórica que conecte o interior ao além-grades. A partir desse primeiro contato passaremos para o outro lado sem mais abandoná-lo. Ficamos então a observar pequenas cenas onde a intensão previamente organizada compete com o acaso circundante, gerando mais-valia nos termos do cinema.

Nos dois filmes lidamos com relacionamentos cuja crise pouco se sabe. Aqui as memórias de um filho, esposa, amigos e revolução são atenuadas via furacões. Já o advento do telefone pouco lhe altera o horizonte, pois a chance de ouvi-lo tocar é desacreditada meio que por antecipação, afinal ninguém possui seu número. A respiração das cenas parece, contudo, sugerir a chance de ouvir, a qualquer momento, a chamada.

O filme passa então a crescer sobre o abismo do seu personagem até o ponto em que esse, durante a simulada conversa com o filho, desvela o sadismo desse dispositivo, colocando em xeque todo um modo de olhar para si que escapa ao cineasta. A notória abertura dessa cena para autocrítica mostra como, por vezes, personagens diante do filme estão como bebês diante do canibal.

A resignação se revela potência. Isso por que Gustavo Vinagre parece ter plena consciência de que qualquer imagem quando projetada no quadro suscita questões que são, antes de tudo, questão de cinema. Pois é exatamente sobre uma tela autossuficiente que se exprime o ponto de chegada de La Llamada, sendo o seu valor documental meramente acessório. Resta, porém, a secreta vontade de conferir se o número revelado romperia as conhecidas grades que separam personagem e espectador.

Parque Soviético e La Llamada estão na Mostra Brasil 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A Era de Ouro: o palco e a verdade

a era de ouro

por Bianca Elias –

A vida em torno de festas robotizadas pelas roupas pretas e o eletrônico tem grau de normalidade que vai dos paulistanos aos cearenses. Não cabe falar de uma pureza de raiz do paulistano que cresceu no coração do progresso econômico, pois quando não motorizada, a identidade mais miscigenada é a sua. Falamos aqui, ou falam Miguel Antunes Ramos e Leonardo Mouramateus, dos efeitos da cidade que perde suas convicções naturais e se transforma em impérios modulares de coqueiros e arranha céus de vidro; homens que se auto enclausuram com a identidade mantida no sotaque e mais nada.

A Era de Ouro aparenta um resultado final (ao menos até agora) de ensaios sobre a vida dentro dos muros invisíveis e sobre quatro rodas. Os realizadores em codireção sintetizam o que é brincar de atuar para a conquista do sucesso profissional e, hoje não desvinculado, pessoal. São tomadas diretrizes de duração de planos, escolhas de cores e palavras corporativas para a imersão no espectro burguês que não se discernem da presença preponderante desses elementos ermos na vida real: um incômodo invasivo toma conta do espectador que, mesmo não indo na contramão da ideologia mercadológica que se retrata, identifica um constrangimento ainda que não saiba qual é. O contato entre Simone e David, que se viram pela última vez no Ceará, acontece pela vitrine do viver em São Paulo e, por conta das tentativas vindas dele, de se resgatar o elo antes vivo e poético entre os dois. Um passado teatral que os conecta respinga apenas na teatralidade de Simone na vida real.

E e Salomão, ambos no festival deste ano e codirigidos por Miguel, em mesmo nível, mas em teor documental, resgatam pelo sarcasmo de suas imagens e silêncio a representação dos estacionamentos e do templo da Igreja Universal do Reino de Deus da mesma maneira em que se perpetua um papel para os personagens da ficção: ao alcance da aprovação em sociedade cria-se um discurso convincente sobre si mesmo e para si mesmo. O Completo Estranho (também em mostra) de Leonardo Mouramateus se situa dentro do mesmo universo em Fortaleza e cria o cenário para falar da sobrevivência conquistada através das máscaras, onde perucas e danças ensaiadas fazem parte de uma encenação pensada para ser verdadeira.

Relações esfriadas pela vida e outras esquentadas pela ideia de ser arte consagram-se e, sem força, acordam no dia seguinte sem esperança para ser. Numa descaracterização dos personagens, que vem sem informações adicionais que não seus nomes e vícios de entonação, poderíamos pensar no filme sendo realizado diegeticamente em qualquer lugar do Brasil, quiça do mundo.

Os dois diretores traçam caminhos que passam pelo entendimento da fraqueza relacional e/ou o fortalecimento inevitável das barreiras de concreto, para que juntos pudessem sintetizar um propósito, um fim em si: o alcance de consciência na retomada da atuação teatral. A Era de Ouro termina com Simone cedendo aos textos por ela conscientemente esquecidos e os declamando em voz alta, aos prantos, exterminando sua outra aparência e dando espaço ao riso por ferir David com seu cartão de visita de vidro – o papel dela o fere, e lhe invade o riso leviano do reconhecimento. Se atuar é estar em palco, então é o palco a única possibilidade da verdade.

A Era de Ouro está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Os Contos da Maré: folclore é documento

os contos da mare

por Amanda Martinez –

Apesar de classificado como documentário, o curta Contos da Maré (2013), de Douglas Soares, conta mais ficções do que dados estatísticos sobre o surgimento do Complexo da Maré, bairro de baixa renda no Rio de Janeiro. Remetendo aos primeiros moradores da comunidade, o filme escolhe junto de seus entrevistados uma maneira diferente e ao mesmo tempo tradicional de documentar a história de um lugar: contando suas histórias.

Inseridas em um formato documental convencional, com enquadramentos estáticos e abertos dos entrevistados, histórias de família são contadas informalmente à câmera-diretor. Divididas em capítulos, como em um livro, são mitos muito semelhantes ao folclore brasileiro, mesclando animais e pessoas em um só ser através de situações que se repetem – a diária transformação em lobo, a troca de pele da cobra, etc. A ficção se torna cada vez mais presente através de takes noturnos e mais soltos acompanhados de uma forte construção sonora, gerando uma dualidade de gênero que coloca em dúvida a veracidade dos depoimentos dados com convicção pelos moradores da Maré.

Como nas lendas, a resposta a essa indagação nunca é completa, se apoiando mais na relação de confiança entre narrador e ouvinte do que no conteúdo em si. As máscaras vestidas pelos entrevistados colocam-se em meio a isso, dando-lhes o caráter de personagens ao fazer uma analogia entre eles e os animais dos contos. São personagens do filme Contos da Maré que narram histórias mirabolantes e, simultaneamente, personagens (ou animais) de suas próprias histórias, algo que lhes confere uma espécie de credibilidade, mostrando ao espectador a possibilidade de aquilo ter sido realmente presenciado por alguém.

Entretanto, antes que seja possível depositar alguma confiança no que é dito, as próprias testemunhas põe em jogo a realidade de seus contos, desconstruindo a esperada função das histórias de transmitir acontecimentos ou alertar gerações seguintes sobre alguma moral. Os contos da Maré têm fim em si mesmos e sua importância está simplesmente no fato de terem existido em uma comunidade em crescimento, seja para divertir ou botar medo, preenchendo a escassez de pessoas e construções da época.

Ao transitar entre dois gêneros, Contos da Maré traz a lenda como caráter documental de uma sociedade, colocando em pauta o poder das histórias na construção de uma determinada cultura. O folclore criado no Complexo, por compor parte significativa da memória daquela população, serve não só como lembrança, mas também como registro, definindo o passado do local como um período em que os mitos eram verdade e o presente como um tempo em que as pessoas, incluindo seus narradores, já não acreditam tanto em nada disso.

Os Contos da Maré está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Um cinema de velhinhos

geru

por Artur Ivo –

É interessante como muitos curtas estão bem ligados à família e as vertentes mais exploradas são crianças/adolescentes e idosos; os idosos se destacam bastante, acho eu que seja por causa de sua apatia e simplicidade – é mais fácil fazer um curta com eles, e também por causa que idosos sempre tem algo para dizer. O espectador muitas vezes aparece como um confidente deles, alguém que está lá só para ouvir seus problemas e suas histórias, como um terapeuta ou um Eduardo Coutinho. Suas experiências e seu relatos são muitas vezes exagerados e os idosos acabam quase endeusados, imaculados, “os sábios idosos que poucos ouvem, vou fazer ouvi-los através do meu curta”.

No entanto, alguns realizadores conseguem captar seus idosos de forma muito legal, frequentemente reinventando a câmera e seu papel no filme, colocando-a dentro da cena, sempre percebida pelo seu personagem mais sábio, e principal, claro. E o cineasta, em todos os casos (mesmo naqueles que não reinventa a câmera), pauta seu protagonista em ações familiares, comuns para todos – por exemplo o jantar de família, a foto de família, a visita ao seu avô, o que contribui para o espectador não se perder quando a câmera muda de lugar ou quando alguma situação inusitada aparece em cena.

Como reinvenção do papel da câmera destaco dois curtas: Geru e Vailamideus. Ambos usam sua câmera dentro da cena e são disfarçados de documentário: o personagem principal não sai do quadro, percebe a câmera e interage com ela. Essa permanência dos idosos no quadro faz com que eles fiquem cheios de carisma para com a plateia, ao contrário de seus familiares. Enquanto estes andam, se movem e falam num ritmo frenético, os dois protagonistas são mudos, pouco expressivos, e esse carisma, esse contraste e essa permanência na tela os deixam interessantes.

Apesar dos curtas serem quase idênticos em relação aos papéis e ações dos seus personagens, considerando o plano de imagem são quase opostos. Em Geru, seu personagem é seguido enquanto anda por aí, arrasta cadeiras e almoça, até uma hora em que ele encontra a câmera face a face. A partir daí o filme se torna todo subjetivo, não vemos mais o velhinho, mas vemos o que ele vê. Por outro lado, Vailamideus só tem um plano – o filme inteiro a anciã fica sentada, com sua família tirando fotos com ela, ninguém olha pra ela, ela não fala nada, não se move, não faz gesto algum, mas mesmo assim ela é interessante e a plateia entende seus sentimentos, inclusive os compartilha.

Mas por que será que se fazem tantos filmes de idosos? Parece um tema interessante, familiar
e ao mesmo tempo esquecido dos grandes centros de cultura – eu mesmo consigo listar poucas peças e livros sobre o tema, e filmes também. Entretanto parece um tema comum em curtas brasileiros, pois além desses dois também assisti a A que deve a honra da ilustre visita este simples marquês? e Pausas Silenciosas, todos com algum traço de documentário e com idosos como personagens principais. Fico pensando também se não seria um modo de
conseguir história mais fácil, ainda mais para um documentário – nesse sentido lembro de O Gaivota, um curta brasileiro que passou no Anima Mundi desse ano que também falava sobre velhice.

De qualquer forma posso destacar que mesmo que os cineastas utilizem o tema idoso eles não se privam apenas na construção de documentários com suas histórias e memórias. Dos filmes que citei aqui, três deles são focados nisso, já os outros dois (que foram os que mais analisei) tentam pensar na vida do idoso e na sua expressão, além de conseguirem criar novas formas da câmera para isso.

Filmar sem sujar os pés

a cor do fogo e a cor da cinza

por João Gabriel Villar da Cruz –

Já algo preocupa quando, ao assistir um documentário, a plateia ri de alguém que fala sério. Na sessão de A Cor do Fogo e a Cor da Cinza, de André Félix, o desconforto é enorme. Na tela, Wagner, um rapaz de 18 anos, abre para a câmera todo o seu mundo pessoal com a felicidade de perceber um ouvinte atento e interessado, e seu relato é ouvido por entre gargalhadas da plateia. Num momento desses, é natural que se procure a origem dessas risadas, que mecanismo pode ser culpado por transformar o depoimento sincero em fonte de escárnio. Se esse mecanismo apenas se insinuava aqui e ali, é em uma cena filmada em uma boate que ele se escancara.

Wagner trabalha como drag queen, apresentando-se em uma boate numa performance de Diva Pop. O filme que, até agora, se preocupava em explorar o universo criado por Wagner, muda, sem razão aparente, e se transfere para seu ambiente de trabalho, onde filma uma apresentação do rapaz, logo após filmar a apresentação de stand-up comedy que o precedeu. A câmera se coloca num plano estático e distanciado, apesar do zoom que permite que os dançarinos sejam vistos de perto. O enquadramento pouco elaborado tira o movimento próprio da dança para circunscrevê-la numa visão fria e externa, a lógica do filme e do diretor se sobrepõe à do ambiente filmado. A música incidental ecoa dentro da tela, distante do filme. Vemos a maquiagem do rapaz, analisamos seu rosto, vemos o mecanismo por trás de suas expressões, enxergamos seus deslizes na dublagem da música, olhamos para o rapaz como para um E.T., cada consciência de cada movimento seu está escancarada, seu rosto parece artificial. Esse mecanismo se confirma quando, na cena seguinte, Wagner assiste a uma apresentação de Marilyn Monroe em Os Homens Preferem as Loiras, de Howard Hawks. Ele pausa e explica que usa do mesmo artifício que Marilyn ao levantar as sobrancelhas e nesse momento a plateia do cinema ri – o que acabamos de ser mostrados passa longe de Marilyn.

Mas uma apresentação como a de Wagner tem toda uma magia interna que não se pode ignorar. A luz, as pessoas que ali estão, a música, a dança, a embriaguez, a alegria, a relação do público: existem vários e vários fatores que aproximam, para quem está ali, a apresentação de Wagner à de Marilyn. E a câmera ali age como uma intrusa que não compreende a lógica interna do ambiente filmado e capta imagens mecânicas, sem ideia do que está acontecendo – é isso que nós vemos. Enquanto Hawks compreende e explora seu objeto filmado, dando-o corpo, glamour, atmosfera, vida – nem Marilyn Monroe consegue ser Marilyn Monroe sozinha –, André Félix poderia muito bem estar filmando um programa culinário ou um show de horrores com a mesma apatia. Tiramos um discurso do que o diretor quer ver, e o assunto em si – o rapaz, as pessoas, a apresentação – é deixado de lado para que a voz do realizador possa passar. Existe um discurso anterior à filmagem que tira do assunto a sua possibilidade de autenticidade, de originalidade, sua capacidade de movimentar o documentário em vez de ser movimentado por ele.

O diretor usa desse poder o tempo todo, de forma mais ou menos direta. Em seu modo de fazer perguntas, de filmar a representação em papel das novelas, está claro que o filme está sendo feito para que se possa mostrar o que alguém de fora vê ali, e não para realmente revelar algo ou permitir que algo se demonstre. Consequência fatal de filmar um mundo externo ao seu sem tentar adentrá-lo antes. O discurso está todo lá: o deslumbre nas novelas, o sonho, o efeito no povo, a ingenuidade do rapaz. E o personagem em si que sirva de boneco para o que o diretor tem a dizer, que se submeta inocentemente à crueldade da câmera que, sem que Wagner ouça, ri tanto dele quanto a plateia do filme. O funcionamento interno do mundo filmado perde lugar para a visão externa e preconceituosa desse mesmo mundo, baseada no que de mais imediato nele se mostra. Resta se desculpar a Wagner pela atitude escrota da qual ele foi vítima.

A cor do fogo e a cor da cinza está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Doble Chapa: além do horizonte

doble chapa

por Andréia Figueiredo –

É incrível pensar o quanto são diversificadas as possibilidades de temas que podem ser tratados em curtas-metragens, o que faz com que grande parte das vezes o espectador se surpreenda com as abordagens de cada assunto. Uma verdade incontestável é que não importa suas impressões sobre o filme, suas percepções jamais serão as mesmas depois da experiência. Uma citação que sintetiza muito bem o que estou tentando dizer é a do cientista Albert Einstein, que diz que “A mente que se abre a uma nova ideia, jamais voltará ao seu tamanho original”.

O curta-metragem Doble Chapa dos diretores Diego Vidart e Leo Caobelli, uma parceria entre Brasil e Uruguai, demonstra muito bem a ideia de abrir, literalmente, novos horizontes e explorar lugares. O filme conta sobre a viagem dos diretores pela fronteira do Brasil e do Uruguai, seu passado e seu presente, seus habitantes e as suas percepções, além de uma profunda discussão sobre a questão dos limites territoriais.

Procurando saber o significado de “doble chapa” descobrimos que quer dizer “filho de brasileiro com uruguaio”, com origem na época em que as fronteiras entre Santana do Livramento e Rivera foram abertas, e os carros circulavam de um país para o outro usando duas placas, uma brasileira e a outra uruguaia. O filme aborda muito a questão das fronteiras em si e usa de citações belíssimas de autores que dizem que no mundo não há fronteiras, mas que os homens criaram nações. É uma experiência muito curiosa assistir ao curta, pois faz com que conhecemos uma parte do nosso país e além. Durante os 20 minutos tentamos lembra de nossas aulas de histórias, de áreas que foram palcos de diversas batalhas e disputas por território.

Doble Chapa é uma experiência inesquecível por se tratar de uma intensa viagem de descobertas, tanto para os diretores quanto para os espectadores. Conhecemos cenários, pessoas e locais que pouco teríamos contato sem esse material. Outro ponto a favor é o uso de uma linguagem poética ao nos mostrar as belas imagens do sul do país. Refletindo mais profundamente, posso afirmar, esse curta se trata de uma viagem ao passado e ao presente de uma terra que já viveu muito e viu grandes momentos, e que agora, se encontra calma e tranquila, como deve ser.

Doble Chapa está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Vailamideus: risos e incertezas

vailamideus

por Beatriz Couto –

Uma senhora, em sua cadeira de rodas, olha fixamente para frente. Ao seu redor, o caos de uma festa familiar. Convocados por uma animada mulher ao microfone, filhos e netos se posicionam para fotos com a avó, em uma procissão infinita de sorrisos para a câmera. A situação é incômoda, e a narração da mulher é tão absurda que dá ao documentário ar de ficção. Vailamideus, de Ticiana Augusto Lima, é um filme muito simples, mas capaz de levar a reações diversas.

São apenas dois planos. O primeiro, com a sequência de famílias tirando fotos, se coloca no lugar da câmera fotográfica. O afastamento causado pela burocratização do processo é acentuado pela expressão neutra da avó. Enquanto as pessoas mudam ao seu redor, ela continua ali parada. Um corte mostra ao público o rosto da senhora, e suas reações se tornam visíveis. Enquanto a mulher ao microfone canta e conduz a festa, ela sorri e se emociona.

Grande parte do estranhamento do filme é causado pela narração. Ter um microfone em uma festa familiar denuncia seu tamanho sem mostrar mais do que uma parede na cena. A mulher, animada, convoca os parentes para as fotografias; um tio é provocado por ainda estar comendo, outro é citado por estar cuidando de uma menina com febre – é perceptível a descontração e intimidade do evento.

O público na sessão ri. Ri da mulher ao microfone, de desconforto com a situação e das peculiaridades da família, mas não é um filme de humor. Toda a situação ao redor da matriarca tem cara de despedida, de aproveitar essa chance por não saber se haverá outra, talvez aquela seja a última festa e a última foto. Há uma tristeza nas entrelinhas de tanta comemoração.

Ticiana, a diretora do filme, é uma das meninas na última família. Ela é a 57ª neta, filha de um dos doze filhos da avó. A senhora, Myrthes, tinha 94 anos no documentário e hoje tem 96. Saber um pouco mais sobre aquelas pessoas torna reais as figuras na tela. Festas, como a retratada, acontecem duas vezes por ano, no aniversário da avó e no dia das mães, e a diretora não sabe o que acontecerá quando a avó morrer. É impossível o espectador não se envolver, caso já tenha passado por situação semelhante.

Vailamideus não é um dos maiores filmes do festival, mas é um dos mais íntimos. Ticiana fez escolhas certeiras de montagem e com certeza irá marcar quem o assistir.

Vailamideus está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

No fundo, com coração

sem coracao

por Beatriz Modenese –

ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS

Um menino chamado Léo sai de sua casa na cidade em direção a uma vila de pescadores, para passar as férias na casa de seu primo, Vitinho. A rotina dos dois, que têm provavelmente entre 10 e 13 anos, reduz-se a brincar na praia, em barcos, na areia, juntamente com outros meninos. Já no início do curta, somos apresentados à personagem que o nomeia: Sem Coração. Através de uma fotografia cheia de cores e imagens submersas, vemos a menina capturando um polvo, para depois matá-lo a pancadas – logo começamos a entender o porquê do apelido.

Em dado momento, Vitinho e seus amigos encontram Sem Coração na praia, e a chamam. Somos então remetidos a um outro cenário: uma grande piscina vazia e abandonada, em frente ao mar. A narrativa, que até então seguia uma linha leve e de temas inocentes, transforma-se. Léo, Vitinho e os amigos sentam-se na borda da piscina, enquanto a menina dirige-se ao fundo dela, encostando-se numa das paredes. Um dos meninos agora desce e vai ao encontro de Sem Coração. Abre o zíper da bermuda e a menina levanta a saia; ele introduz-se nela. A inocência prévia de toda narrativa parece agora se perder. Os amigos assistem aos dois, sem qualquer aparente emoção. Léo demonstra um certo incômodo, mas que logo vemos dispersar. Sem Coração e o menino terminam. A menina, ainda sem expressão aparente no rosto, ajeita um pouco a saia. Outro amigo de Vitinho desce ao fundo da piscina, para fazer o mesmo com ela, enquanto os outros, em silêncio, continuam assistindo.

A cena desta vez dá-se em outro cenário. Resgatando o inicial perfil inocente das personagens, vemos estes brincando no mar. No meio do jogo, Léo beija rapidamente Sem Coração – o tipo de beijo que esperamos de duas pessoas na faixa de idade deles. À noite, Vitinho conversa com o primo, buscando descobrir se ele sentia-se atraído por alguma menina – novamente, o tipo de conversa que esperamos deles.

Agora, voltamos à cena da piscina: desta vez, Léo é pressionado por seu primo e os outros garotos a se encontrar com Sem Coração. Com alguma relutância, o menino desce. Inicia o ato sexual, e fala discretamente no ouvido da menina: “Queria te beijar”. Depois, ainda com a mesma discrição – com medo de ser julgado pelos que assistiam – coloca algo, que não conseguimos ver, na mão de Sem Coração. O curta encerra-se com Sem Coração olhando-se no espelho, com planos bem fechados da cicatriz que tem próxima ao coração – resultado da implantação de um marca passo. Léo encontra-se no carro, voltando para sua casa.

Sem Coração é uma grande crítica à sociedade de hoje, à vida sexual que inicia-se cada vez mais cedo, aliciando também muitas crianças ao tráfico sexual. Questionamos a maturidade da menina apelidada de Sem Coração, que consente os atos, nos perguntando se há idade ideal para o início de uma vida sexual. Se não há maturidade, podemos considerar então o coito entre a menina e os amigos de Vitinho, assim como Léo, um certo tipo de estupro?

Os meninos ao importar-se apenas com seu próprio prazer, e não com de Sem Coração, desencadeiam desta forma ações totalmente machistas. A vergonha de Léo de assumir seus sentimentos pela garota para os amigos é outro reflexo da mentalidade machista ali – e na sociedade contemporânea – contida. O fato dos meninos acreditarem (ou pelo menos, fingirem que acreditam) que tais ações não causam sentimento algum em Sem Coração, é mais um fator que contribuiu para a criação de seu apelido. Assim, somos remetidos também ao conceito muito popular nos dias atuais de “sexo descompromissado”. Até que ponto os sentimentos de um e de outro são respeitados? Ou são inexistentes, além do prazer físico?

O curta-metragem dos diretores Nara Normande e Tião, é o tipo de obra que nos faz sair da sala de cinema com um sentimento incerto: um misto de adoração, compaixão e raiva. O certo, no entanto, é a sensibilidade maestral com a qual assuntos tão sérios são lidados.

Sem Coração está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Sophia: o mundo dela

sophia

por Letícia Fudissaku –

Antes mesmo de começar, as palavras do diretor Kennel Rogis sobre o curta-metragem Sophia já me chamaram a atenção: um sensível retrato da relação entre mãe e filha. Tenho um interesse especial por enredos que tem como tema central os relacionamentos. No início, como a aspirante a roteirista que sou, me incomodei com a falta de diálogos – mal sabia eu o quanto isso acresce à história… Extremamente sensível, o diretor definiu bem.

Gosto particularmente do aspecto cíclico da narrativa: todas as pequenas cenas abstratas que pareciam unicamente satisfazer às preferências estilísticas do diretor fazem todo o sentido ao final da trama, e o filme inteiro é “rebobinado” na cabeça do espectador. A descoberta da surdez da filha, na perspectiva do espectador, dá novos significados a diversas cenas, tornando-as até mais poéticas – como quando a filha traz o rádio para que a mãe dance com ela. O silêncio no ambiente familiar, que de início parecia indicar um distanciamento – ou até uma falta de afinidade – entre mãe e filha é, afinal, uma mera circunstância.

A representação em cores distintas para as duas personagens – amarelo e laranja para a mãe e azul para a filha – e o cuidado especial com os diferentes sons da rotina destas foram os elementos técnicos que mais me chamaram a atenção. Exemplo disso é a cena em que a mãe nada em um rio, afundando a cabeça e voltando à superfície. Debaixo d’água, os sons são amenizados ou até eliminados. Mergulhando nas águas azuis, é como se a mãe tentasse reproduzir a percepção de mundo da filha, que não escuta. Essa tentativa da mãe também pode ser notada em outras cenas, nas quais ela usa protetores de ouvido fora do ambiente de trabalho barulhento.

Pelos motivos indicados acima, creio que a experiência de assistir Sophia seja por si só bastante sensorial, com uma trilha que ambienta o espectador de maneira intensa. Justamente por isso, é uma surpresa que, mais ao final, uma música cantada faça parte da trilha – a delicada Meu Amor É Teu, de Marcelo Camelo. Sua melodia combina perfeitamente com as cenas de companheirismo e afeto entre mãe e filha que encerram o curta. Sophia foi o destaque da Mostra Brasil 9 e reafirma a máxima de que existem inúmeras formas de demonstrar amor.

Sophia está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014