ENTRE O SOM E A ANGÚSTIA – Mostra Limite – Sinfonia

por Guilherme Cruz

Na mostra Limite – Sinfonia, a música e o som são destaques nas obras selecionadas. Não apenas porque esses dois elementos fazem parte essencial da narrativa dessas obras – eles são integrados de tal modo que tornam única a experiência cinematográfica para o espectador. Em algumas obras, o trabalho de som se destaca – como em Todas as paradas, onde não há falas dos personagens, apenas sons ambientes e a música de um órgão de igreja antigo. Em outras, a música exerce protagonismo, adicionando mais camadas às imagens e causando ora desorientação, ora agitação ou medo. Por falar em medo, é inevitável que a pandemia do novo coronavírus paire sobre essas obras como a nova realidade com a qual elas devem dialogar, como é o caso em Escuro e Dentro.

Esses dois filmes sintetizam os caminhos sonoros e estilísticos da mostra ao propor uma dicotomia entre harmonia e dissonância. Ambos tratam de alguma forma do isolamento social e da vida vertical observada nos grandes centros urbanos. Em Dentro, temos a visão de um mosaico de janelas e varandas animados de modo a passar a impressão de que o prédio à frente não tem fim. A movimentação das pessoas e seus sons diversos criam uma série de ritmos que vão se alternando e criando uma sensação surpreendente de conexão entre elas. Impossível não lembrar de cenas pandêmicas, quando as pessoas se uniam para bater palmas em seus apartamentos em homenagem aos profissionais de saúde, ou para demonstrar sua revolta com panelaços. Embora separadas em seus universos individuais quadriculares, as pessoas formam uma espécie de comunidade, uma harmonia que se demonstra na sincronia sonora.

Mas talvez o curta que trate mais abertamente dos medos e angústias da pandemia seja o brasileiro Escuro. Este filme nos convida a passar uma madrugada insone em São Paulo, vista através das janelas dos apartamentos dos quatro diretores durante o auge da pandemia. Nas imagens nervosas, observamos os apartamentos vizinhos e seus interiores, como que buscando alguma companhia e sinal de vida na imensidão de pequenas luzes da grande metrópole. O que menos se encontra, porém, são pessoas – vemos apenas seus fantasmas em telas. As varandas habitadas por televisores e sombras tornam o ambiente extremamente inóspito, e a trilha sonora, um jazz que intercala momentos de calma e confusão, revela a ansiedade e o estado mental instável que marcam esse período pandêmico. Quando vemos o sol finalmente nascer, não há muito alívio: o frenesi de carros e aviões da cidade, vistos à distância, nada fazem para apaziguar a angústia interna.

Ainda dentro desta chave sonora harmonia/dissonância, Son Chant apresenta o panorama sonoro e visual dos filmes feitos pela diretora Chantal Akerman com a violoncelista Sonia Wieder Atherton. Como não poderia deixar de ser, a harmonia aqui é a maior marca: as rimas imagéticas e sonoras proporcionadas pela montagem revelam uma profunda compreensão mútua entre as artistas, numa parceria que produziu mais de 20 filmes. Já em Alexander Mosolov. Três Peças, temos um paradoxo: uma homenagem ao compositor russo conhecido pela música vanguardista que primava pela dissonância e sons repetitivos (em alusão às máquinas das fábricas), o filme apresenta imagens da arquitetura soviética em uma montagem ritmada com a música, criando assim harmonia a partir do desarmônico.

Em O Túmulo da Terra, a música também é marcante, ajudando a criar esta fábula em preto e branco que remete ao cinema mudo. As notas fantasmagóricas dos pianos de Evil Nigger, do compositor Julius Eastman, dão o tom aterrorizante e dinâmico da narrativa. Utilizando-se de elementos estilísticos do expressionismo, o curta retrata a jornada (ou fuga?) do personagem até seu encontro com um misterioso objeto: uma máscara africana de granito, desenterrada das profundezas da terra. Chamada “Pretusi” – jogo de palavras com o nome de Brancusi, pioneiro da escultura moderna –, a máscara também dá nome aos personagens que assombram o protagonista sem rosto, facetas dele próprio. A temática da busca da identidade negra através da descoberta da herança ancestral e da descolonização é retratada de forma simbólica e metafórica: ao fugir das personas ameaçadoras que lhe parecem dizer para onde ir, o homem sem rosto é obrigado a descobrir no túmulo da pedreira a sua verdadeira identidade.

Caracterizados pela diversidade de temas e estilos, os filmes da mostra Limite – Sinfonia oferecem uma visão abrangente da produção de vanguarda durante a pandemia, no Brasil e no mundo. Tratando de temas universais com usos criativos do som e da música, essas obras mostram como a arte do cinema continua a ressoar de forma viva, e como é capaz de retratar, provocar e transformar os sentimentos humanos apesar de todas as dificuldades trazidas pela pandemia.

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