EROTISMO TRANSGRESSOROlhos Livres, de Fábio Rogério

por Otávio Osaki Cruz

Apaziguado do olhar, envolto pela escuridão, um corpo feminino nu dança e vibra ao som da melodia de fundo. O primeiro minuto de Olhos Livres, de Fábio Rogério nos atiça o olhar e convida a enxergar aquilo que resplandece na escuridão, aquilo que se  movimenta e move o mundo em todas suas esferas de complexidade: o corpo.

Com uma reorganização dos arquivos que contaram com a presença de Carlos Reichenbach, artista e cineasta brasileiro com notável carreira em São Paulo no Cinema da Boca do Lixo, Rogério rearticula e revisiona as obras desse diretor, dando ênfase, no curta, aos caráteres político e contestador, ambos intimamente ligados ao corpo e à sua imposição, presentes nesses arquivos. A partir disso, começa-se a explorar as potencialidades do sexo, da sexualidade e do erotismo, todos como libertadores do condicionamento imposto pelos olhares moralistas e conservadores, dos olhares que aprisionam, buscando ditar como devemos nos (com)portar e nos posicionar diante do mundo. Manifestos verbais e corporais preenchem o curta e o costuram com a exequibilidade política do cotidiano, como o trabalho, de maneira a forjar uma antítese à rigidez conservadora do olhar. Se o olhar, então, em seu sentido castrador, domestica, Rogério faz questão de concatenar cenas que dinamitam tal sentido, estabelecendo e edificando uma relação de não-sentido, como uma ode ao sentir dos corpos e do sexo.

Sentir é palavra-chave. Sentir é libertador. Sentir o prazer, a raiva, o sexo, a indignação e, principalmente, a transgressão. Livrar-se, despir-se, descondicionar-se das “pretensas verdades” da burguesia liberal, como afirma um personagem, é transgredir e contestar toda a domesticação dos corpos que são oprimidos pela violência do dia-a-dia, seja pela sexualidade, cor, raça ou gênero. É nesse sentido que a montagem e a trilha sonora do curta dialogam e criam a inquietação no espectador, convidando-o, mediante o incômodo ou o êxtase, a se posicionar e a questionar as suas verdades, quaisquer que elas sejam.

Libertando o olhar, o curta transita por muitas das obras do vasto repertório de Carlos Reichenbach, cuja heterogeneidade e inserção crítica às conjunturas históricas se refletem nessa remontagem. Não buscando uma unidade fechada e homogênea em si, algo que definitivamente encerraria a discussão, Rogério promove esta releitura e semeia leves dessincronias entre áudio e imagem no decorrer do projeto, de maneira a provocar e beliscar aquele que assiste. São fissuras e rupturas que abrem espaço para uma imersão reflexiva e livre para exploração dos sentidos.

“Eu gostaria demais de ver uma geração de provocadores, de rebeldes, de novos inventores e transgressores!”, é uma das provocações finais de Olhos Livres, um discurso de Reichenbach sobreposto a imagens de Avanti Popolo, filme com sua participação lançado dois anos após sua morte. Assim, incentivando o debate e a liberdade do corpo, tomando como base a libertação do olhar, temos um viva à arte erótica e à transgressão contínua das “pretensas verdades”.

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