FETICHES AUTOMOBILÍSTICOS DO CAPITALISMO – Per Capita, de Lia Letícia
por Kimberly Palermo
Ofegante, uma mulher desperta de um pesadelo em sua luxuosa casa, com direito a vista para o mar. Três playboys arranham, quebram e se esfregam num carro à noite. Uma videoinstalação apresenta um mosaico de telas – vitrines de videogames, filmes e clipes musicais – como as de O homem que caiu na terra (1976).
Elite, violência e consumo – é a partir do entrelaçamento desses três motivos que a diretora e artista plástica Lia Letícia transforma Recife num pesadelo sensorial em Per Capita. O filme faz parte da tendência curta-metragista do fantástico para discutir questões sociais, mas sua abordagem se difere de seus antecessores por sua aproximação lynchiana. Assim, a ausência de diálogos, a fotografia expressionista em preto e branco e a acentuação dos ruídos são essenciais na construção de um mal-estar atmosférico.
É com ele que a mulher, representação das classes abastadas, irá nutrir o que seria, simultaneamente, seu maior pesadelo e fetiche. A figura do carro, presente desde o início com o enquadramento retangular do para-brisa, é o símbolo máximo do status quo dessa parcela populacional. Afinal, é ele quem permite a extensão do privado às ruas e a segregação dos subúrbios em relação às periferias. O design das cidades é cada vez mais excludente: alarga-se as ruas e precariza-se o transporte público, transformando o carro no sonho coletivo, agente político capaz de devolver o direito de ir e vir.
Em movimentos destrutivos e velozes, o mosaico de telas apresenta automóveis nas mais diversas vertentes do consumo. De Karma Police (1997) a Crash – Estranhos Prazeres (1996), referência explícita na associação entre prazer e destruição automobilística, Lia Letícia coloca até o próprio filme na instalação. Uma metalinguagem que se reconhece também como produto consumível daquela violência.
Essa agressividade permeia o pesadelo da mulher, no qual três jovens quebram, urinam e se esfregam sexualmente num automóvel vazio. Dispensadas as falas, as ações dos homens são como uma performance, um ritual quase sedutor. A coreografia destrutiva é intercalada por selfies, pois na contemporaneidade não se desassocia o prazer da imagem midiática. Ao fim, eles se sentam no meio-fio, extasiados, o suor escorrendo pelos rostos.
“Os subúrbios sonham com a violência”, diz um trecho de J.G Ballard. A mesma elite que teme a violência (a mulher do filme) é aquela que a consome e pratica (os homens). O título Per Capita, expressão indicativa da média que cada um deveria receber no país, costura todas as imagens díspares do curta em sua denúncia da desigualdade. Seu final reproduz o início, os escombros automobilísticos tornam-se um cemitério – a consequência iminente do ciclo de consumo, violência e prazer.
“Como despertar uma gente entorpecida que tinha tudo, que comprara todos os sonhos que o dinheiro pode comprar e sabia que tinha sido uma pechincha?” Lia Letícia nunca nos responde, mas nos provoca e assombra com 15 minutos de um transe hipnótico.