FOGO SOBRE A TERRA BRASILEIRA – Mostra Competitiva Brasil

por Laís Torres

“Eu vim lançar fogo sobre a terra, e quem me dera que já tivesse sido ateado!”. A frase-sinopse de Quanto Pesa, de Breno Nina, anuncia a forte ebulição que a Mostra Competitiva Brasil traduz em termos audiovisuais. Mesmo que o cinema brasileiro pareça quase fadado às cinzas, estamos mais em tempo de cinema do que nunca. E este cinema é mais consciente da própria potência, distante de estereótipos, fórmulas e construções presas ao século passado. Quanto Pesa anuncia o incêndio que a protagonista Huri, do curta Colmeia, de Maurício Chades, diz sonhar.

Os 13 filmes da mostra permeiam o gosto da angústia de ser brasileiro nessa distopia em que nos encontramos, no segundo ano pandêmico. Tão imersos na falsa alucinação de normalidade, a única notícia que esperamos é que isso seja apenas um sonho ruim, como a protagonista de República anuncia com lágrimas nos olhos, aos berros de alívio. O filme de Grace Passô não é potente apenas por seu discurso; ele é a própria experiência da estética-quarentena, uma busca pelo alívio da clausura. A única solução aparece como o fim desse país. Quem dera fosse simples, como a própria personagem vai notar: se o Brasil nunca existiu para pessoas negras e indígenas, que Brasil temos?

Já a protagonista de Céu de Agosto, de Jasmin Tenucci, se corrói nessa questão enquanto carrega no ventre um filho, desesperada por senti-lo vivo dentro de si, mas não segura de trazê-lo ao mundo. Sua busca por qualquer ajuda a leva até a igreja evangélica, mas só o que lhe traz conforto é o reconhecimento em outra mulher. Mas ainda assim, será que ainda há lugar para a esperança?

Em Colmeia, de Maurício Chades, acompanhamos Huri, mulher que assim se apresenta e diz ter mudado de nome agora em sua nova fase da vida: acabou de sair da prisão e quer recomeçar do zero. Seu testemunho é ininterrupto à câmera, embalado pelo som ambiente de um lago calmo que enfeita seu plano. A paz que ela performa é só fachada. Ali é calmo, mas não é seu espaço. Em seus sonhos, ela fala, um tsunami no lago iria levar os casarões das pessoas ricas ao seu redor, e elas iriam queimar. Um jogo de tarô é tirado para a humanidade: para o mundo continuar, ele não pode continuar como está. Ao final, as casas pegam fogo, anunciando assim uma fuga teleológica. “Se o céu cair sobre as nossas cabeças, é nele que vamos morar”, anuncia Huri.

Essa rebeldia e a temática da teologia também é percebida em Olhos Livres, de Fábio Rogério. O curta relaciona a temática do corpo, do sexo, do trabalho e da política por meio da montagem de trechos de filmes do diretor Carlos Reichenbach (1945-2012). Produzindo um diálogo intra e extrafílmico, o documentário visa apresentar o autor por sua obra, reservando espaço para um pequeno trecho em que ele dá as caras. Sem sincronia entre imagem e som, Carlão, em silêncio e sereno, advoga a favor das utopias: “utopia sempre; utopia é vanguarda; utopia é vida”. O filme parece condensar os anseios rebeldes do passado com as manifestações contemporâneas, e faz todo o sentido que ele esteja sendo apresentado ao lado de outros filmes incendiários.

Se a protagonista de Colmeia sonha em reconquistar seu lugar no mundo, o direito ao espaço também é discutido em outro filme, o paulistano Acesso, em memória ao amigo da diretora Julia Leite. Em formato completamente remoto, realizado com imagens do Google Earth e com depoimentos via chamada de vídeo, o curta retoma a discussão da ocupação da cidade por parte da população LGBTQIA+ desta e de outras décadas.

Em temática de esperança, temos em 4 bilhões de infinitos, de Marco Antonio Pereira, uma espécie de retrofuga, o cinema se apresentando como possibilidade de expansão do mundo. O protagonista pega emprestado o “cinema lá da escola”, um projetor de filmes, e tenta usá-lo em vão, pois onde está não há energia elétrica. Ainda assim, o menino e sua irmã penduram um lençol branco numa árvore e se sentam juntos para assistir unicamente ao vazio. Nesssa busca por esperança, em Seiva Bruta, de Gustavo Milan, a protagonista tem um caminho tortuoso e violento enquanto migra da Venezuela ao Brasil, por terra. Temos ao final uma imagem também de uma esperança triste, ela com um bebê que não é seu no colo, novamente sozinha a encarar as infinitas possibilidades no Brasil — que talvez não sejam tão melhores quanto deveriam.

Se Reichenbach esperava “uma geração de provocadores, de rebeldes, de novos inventores e transgressores”, ele conseguiu. A Mostra Competitiva deste ano apresenta uma geração de cineastas disposta não só a queimar de cima a baixo as instituições e as más representações, como também reconstrói imaginários e reinventa o cinema de dentro da clausura, da angústia. O cinema brasileiro do início desta década caótica se apresenta coeso e inflamado, consciente de que das cinzas vamos ressurgir.

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