Imagens que recuperam a identidade sobre FLUXO – O filme dirigido por Filipe Barbosa
Por Nathália Ract da Silva
Fluxo – o Filme começa com uma paisagem vista de cima dos prédios de habitação popular localizados na Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo, distrito conhecido como o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina. Dirigido por Filipe Barbosa, o filme conta a história de Fábio, jovem negro de 22 anos, e resgata suas memórias entre os amigos Joel e Gabriel, que se conhecem desde a época da escola. É dia de baile da Sorte! São quase seis horas e Fábio está em seu quarto, deitado na cama, fumando cigarro. Na mesa de cabeceira está o cinzeiro e um porta-retrato que preserva uma fotografia com sua ex-namorada.
Depois de ser convocado pelos amigos, Fábio se arruma para ir ao baile da Sorte: abre o guarda-roupa e veste sua camisa da Lacoste, estampada com a bandeira da África do Sul. No filme, a moda periférica é um tema importante, que valoriza a cena dos bailes funks enquanto referência de estilo, mesclando peças de roupa atuais e também peças antigas, que marcaram época.
No caminho para o baile, Fábio enfrenta uma série de desafios que o levam a confrontar seus sentimentos após o término do relacionamento amoroso. A música assume papel fundamental, e o som aumenta progressivamente no momento em que eles chegam no fluxo. Na tela, algumas fotografias captadas são sobrepostas aos efeitos visuais glitches e aos efeitos sonoros da música “Brota na Tiradentes” do Mc MN do DJ Biel Mix. Na sala do CineSesc, recebemos o som não somente com os ouvidos, mas com o corpo inteiro, no momento em que “É o fluxo” começa a tocar — música que carrega o nome e a presença especial do Mc Nego Blue na obra audiovisual.
No filme, a dança é um recurso narrativo e expressivo da juventude. O filme nos lembra dos passinhos que marcaram o movimento funk e dominavam as batalhas de dança que aconteciam no horário do intervalo da escola — momento em que os estudantes formavam uma roda e dançavam livremente, muitas vezes sem música, apenas com os gritos e as palmas das mãos dos jovens reunidos. A câmera acompanha os movimentos e escolhe enquadrar os pés em destaque, o que parece convidar o corpo do espectador para dentro da batalha de dança.
Durante o baile, quando Fábio finalmente consegue ‘apaziguar a mente’, curtir a presença dos amigos e se aproximar de Daniele (uma garota da época da escola na qual está interessado), somos interrompidos com cenas de violência e terror.
O filme conduz o espectador a um olhar crítico, a partir de imagens de arquivo que foram registradas no mês de Dezembro de 2019 em Paraisópolis, na periferia da Zona Sul da cidade de São Paulo. Somos impactados por imagens de uma câmera de celular que registra a intervenção da Polícia Militar no baile funk, ação que provocou a morte de nove jovens, dentre outros feridos. O caso ficou conhecido como o “Massacre de Paraisópolis”, e é considerado a mais letal intervenção policial na cidade de São Paulo, segundo relatório do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Barbosa denuncia a violência policial contra os bailes funks e compartilha com o espectador uma homenagem aos familiares dos jovens Mateus dos Santos, Bruno Gabriel dos Santos, Luara Victoria, Marcos Paulo, Eduardo Silva, Denys Henrique Quirino, Dennys Guilherme dos Santos, Gustavo Xavier e Gabriel Rogério, mortos durante o massacre.
Após a exibição do filme na Mostra Brasil intitulada “Somos Embarcação”, do Kinoforum – Festival Internacional de Curtas de São Paulo, o diretor conta que existiam poucos registros que tornassem possível retratar o baile funk e oferecer essa visibilidade negada historicamente. Fluxo – O filme é um espaço de disputa de narrativa a favor da cultura e memória do funk. Ao relacionar a imagem e o movimento funk à construção da identidade, Filipe Barbosa demonstra a importância que as imagens têm para a visibilidade da juventude negra e periférica.
Não foi possível estrear o filme no território que foi produzido, conforme conta o diretor. A equipe planejou o lançamento oficial do filme no dia 21 de abril de 2024, dia do aniversário da Cidade Tiradentes, para que seus habitantes pudessem assistir. No entanto, a exibição foi impedida pela Polícia Militar. A instituição acusou a equipe do filme da intenção de vender armas e drogas, e interrompeu o evento. A acusação foi espalhada, inclusive, no programa do Cidade Alerta e do Brasil Urgente. “Era só uma exibição do filme”, Filipe conta, expondo como mesmo quando a quebrada busca se apresentar por meio do cinema, atravessa a mesma questão de violência que procura denunciar.
Biografia: Nathália Ract da Silva (Nara) é moradora da Zona Norte de São Paulo. Possui graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (2022). Atua como pesquisadora, roteirista e fotógrafa. Em 2019, produziu o documentário Chile de Olhos bem abertos via Lei Aldir Blanc/São Paulo. Seu primeiro roteiro de curta-metragem, Água Bonita de Maíra (2023), foi selecionado no programa Meu Olhar – Filmes curtos feitos pela Juventude Periférica de São Paulo.