NÃO É AUTOMATISMO. JURO. É JAZZ DO CORAÇÃOEscuro, de Martina Alzugaray, Daniel Tagliari, João Rubio Rubinato e Bruno Lopes

por Giuliana Zamprogno

Sombras de corpos dão voltas em seus próprios apartamentos. Outras sombras se apoiam nas beiradas das janelas contemplando a cidade, procurando o exterior. Como a maior parte dos filmes realizados durante o período de isolamento, Escuro versa sobre o medo e a insegurança dos primeiros meses de pandemia. Mas a grande tônica desse curta experimental é sua ambiência terna e cativante, construída pela recorrência de imagens, numa livre investigação da noite ao nosso redor.

Dentro da imensidão azul, luzes das telas dos monitores, das TVs ligadas nos quartos, das varandas dos prédios vizinhos e outras pequenas cenas são justapostas e combinadas com as faixas de um jazz ora sutil, ora caótico. As imagens nos chegam como projeções dos estados mentais confusos e melancólicos de sujeitos que, talvez pelo tédio da rotina circular do isolamento, lançam-se minuciosamente à paisagem e aos objetos. Esse escrutínio do olhar permite chegar até o píxel, em vislumbres da materialidade dos pontos de luz.

No conjunto, a atmosfera criada em Escuro se aproxima bastante da iconografia noir (noite, cidade, solidão, escuridão, janela). A plasticidade e a sensorialidade das imagens – exploradas até o limite pelo recurso da aproximação, da baixa resolução e da luz estourada – evocam uma estética própria da videoarte realizada em suporte VHS nos anos 80 e 90, ou em filmadoras digitais no início dos anos 2000.

O filme em si é divido em quatro partes ou passagens, pontuadas pela progressão das horas (00:00, 1:00 etc.) que aparecem em intertítulos. Essas passagens, no entanto, parecem demarcar não o tempo, mas as diferentes sequências produzidas por cada um dos quatro jovens diretores. Ainda assim, a variação sonora é o fator determinante do ritmo de Escuro, que se faz a partir da intercalação de dois tipos de sequências: uma mais tonal, suave, compassada em torno de um tema imagético; e outra improvisada, dodecafônica.

Enfim, saímos das trevas de São Paulo, dessa metrópole que parece nos engolir. Mergulhamos agora no brilho das ondas do mar, do nascer do sol que deita nas ondas do mar. É a nossa redenção, nosso alívio momentâneo, para sermos depois ofuscados pelos clarões violentos da cidade, e logo em seguida adoçados pelos contornos alaranjados das nuvens do céu. Num jogo lancinante, a trama de imagens em Escuro “se esboça, se esboça e se destrói, com a mesma lentidão, uma escritura ilegível e dilacerante de sombras, de arestas, de traços de luz, (…) de uma geometria fugaz que se escoa ao sabor da sombra das vagas do mar. Para em seguida, mais uma vez, incansavelmente, continuar a existir” (Marguerite Duras).

O experimentalismo de Escuro renova o olhar ao refrescar os sentidos num contexto de excessos e de uma leva já esgarçada de filmes sobre as angústias na pandemia. Através de uma atmosfera noturna magnética e de uma qualidade sonora ímpar, o curta traz breves lampejos de beleza num momento em que é realmente preciso muito esforço para encarar a escuridão.

 

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