O PAPEL DO QUE ESTÁ MADUROEla que Mora no Andar de Cima, de Amarildo Martins

por Fernanda Queiroz

Alto-astral e com múltiplas camadas de paixão sufocada, Ela que Mora no Andar de Cima nos carrega em uma breve jornada pela subversão dos valores do amadurecimento. Marcélia Cartaxo nos faz mergulhar em sua personagem Luzia, que vivencia um sentimento atemporal por sua vizinha Carmem: o amor platônico.

Ao vermos uma senhora com marcas do tempo aparentes como Luzia fazendo uma tatuagem, saímos da zona de conforto sem pensar duas vezes – para, poucos segundos depois, descobrirmos que Carmem possui o corpo repleto de tatuagens, situação que nos dá um norte para a narrativa.

O desespero transformado em impulso e a necessidade de validação pela protagonista são transmitidos com humor pelo filme. A construção da atmosfera aos olhos de alguém com sentimentos não correspondidos pode ser evidenciada ao compararmos os apartamentos das vizinhas: enquanto o de Carmem é iluminado pela luz do sol refletindo sua postura jovial e livre de amarras, o de Luzia é repleto de cores sóbrias, luzes duras e pesadas.

Ao construir a relação das duas acerca do doce e do amargo – como nas cenas em que ambas fazem shots de tequila –, enxergamos o quanto o estereótipo da velhice e do amadurecimento poluem nossas mentes sobre o amor. Como se o que está maduro não pudesse sentir com espontaneidade ou agir de maneira impensada.

O trabalho de Amarildo Martins é repleto de escapismos que tornam a experiência interessante. Luzia se torna uma cobaia muito receosa dos doces (nem tão saborosos) de Carmem, que é representada de maneira sensual, e assim a idade é retratada de maneira pouco banal a um público mais jovem.

Em contraponto, na cena dos insetos na base do assento do banheiro quando Luzia se ausenta da presença de Carmem, ou quando ela espera à frente do telefone esperando o momento certo de atender, somos preenchidos por uma ideia racional da relação das duas. De maneira abrasiva, Luzia permanece abrindo mão de sua individualidade em busca de ser vista pela vizinha, vivendo em solidão perpétua.

“Se você pensa que meu coração é de papel, não vá pensando pois não é. Ele é igualzinho ao seu e sofre como eu”, é o trecho da trilha de Sérgio Reis que ilustra o ápice da conexão entre a figura das vizinhas, e que acaba tendo um fim abrupto no terceiro ato, nos deixando completamente desconcertados. A troca da cobaia de Luzia pelo sobrinho de Carmem é o que ilustra o fim da construção psicológica de um possível amor recíproco. E assim, Luzia prossegue sua vida ao se deliciar com um grande bolo de chocolate, nos dando um claro sinal de como Carmem ficará para sempre em sua vida.

NÓS, AS ABELHASColmeia, de Maurício Chades

por Gabriela Zanatta

“Colmeia” é o termo dado ao presídio feminino de Brasília. Um meio de vivência tamanha que é capaz de uma mulher sair de lá com tal renascença que sinta a necessidade de dar a si mesma outro nome. É assim a trajetória de Huri, protagonista do documentário de Maurício Chades.

A abelha é um animal que usa seu ferrão apenas em legítimo contra-ataque, para defender a si e aos seus. Ao picar, não apenas machuca sua ameaça, como a si própria – pois o ferrão da abelha, quando adentra a superfície inimiga, fica por lá mesmo, e ficam, anexos a ele, diversos órgãos internos do animal. Depois disso, oca, a abelha desfalece. Ela dá a vida nesse gesto. Assim procedeu Huri, à época Pâmela, defendendo-se de seu agressor. Gesto que lhe rendeu a pena na Colmeia.

O curta se dá tal qual um relato. Huri, numa bem-vinda metalinguagem, constrói sua colmeia junto ao diretor, dialogando com ele e com o público, olhando diretamente para a câmera. Isso confere intimidade à obra, e uma abertura para que seja desenvolvida a abordagem subjetiva que permeará todo o curta. O formato fílmico lembra também uma entrevista, mas é Huri quem guia o curso do documentário, deixando-o à mercê dos pensamentos dela sobre seu próprio passado, sobre a desigualdade, e sobre o que a Colmeia significou para ela.

Colmeia se faz além das normas de seu gênero fílmico. Ele documenta memórias, impressões, previsões. Documenta sonhos. No mais, a obra se destaca por retratar subjetividades. Não por isso, deveria ser considerada menos documental que outros tipos mais objetivos de seu gênero. Tudo nele traz absoluta realidade – justamente pelo filme dar voz aos pensamentos de Huri, uma mulher que vivenciou a realidade de um jeito que escapa ao raso e mero exercício imaginativo de muitos – especialmente dos donos das grandes casas à beira de lagos.

Quando no fim do filme as casas explodem, tal qual no sonho de Huri, o que Colmeia faz é a documentação de um desejo, de uma esperança. É em seus instantes finais que o filme concretiza as previsões de Huri para a humanidade, munida de seu baralho de tarô, conquistando com sua vivência esse posto de arauto. Colmeia concretiza a iminente nova era que só pode ocorrer com uma drástica mudança social, na qual prevaleça a justiça a favor de mulheres esquecidas, abandonadas, à margem da sociedade. Mulheres feitas abelhas como Huri.

EROTISMO TRANSGRESSOROlhos Livres, de Fábio Rogério

por Otávio Osaki Cruz

Apaziguado do olhar, envolto pela escuridão, um corpo feminino nu dança e vibra ao som da melodia de fundo. O primeiro minuto de Olhos Livres, de Fábio Rogério nos atiça o olhar e convida a enxergar aquilo que resplandece na escuridão, aquilo que se  movimenta e move o mundo em todas suas esferas de complexidade: o corpo.

Com uma reorganização dos arquivos que contaram com a presença de Carlos Reichenbach, artista e cineasta brasileiro com notável carreira em São Paulo no Cinema da Boca do Lixo, Rogério rearticula e revisiona as obras desse diretor, dando ênfase, no curta, aos caráteres político e contestador, ambos intimamente ligados ao corpo e à sua imposição, presentes nesses arquivos. A partir disso, começa-se a explorar as potencialidades do sexo, da sexualidade e do erotismo, todos como libertadores do condicionamento imposto pelos olhares moralistas e conservadores, dos olhares que aprisionam, buscando ditar como devemos nos (com)portar e nos posicionar diante do mundo. Manifestos verbais e corporais preenchem o curta e o costuram com a exequibilidade política do cotidiano, como o trabalho, de maneira a forjar uma antítese à rigidez conservadora do olhar. Se o olhar, então, em seu sentido castrador, domestica, Rogério faz questão de concatenar cenas que dinamitam tal sentido, estabelecendo e edificando uma relação de não-sentido, como uma ode ao sentir dos corpos e do sexo.

Sentir é palavra-chave. Sentir é libertador. Sentir o prazer, a raiva, o sexo, a indignação e, principalmente, a transgressão. Livrar-se, despir-se, descondicionar-se das “pretensas verdades” da burguesia liberal, como afirma um personagem, é transgredir e contestar toda a domesticação dos corpos que são oprimidos pela violência do dia-a-dia, seja pela sexualidade, cor, raça ou gênero. É nesse sentido que a montagem e a trilha sonora do curta dialogam e criam a inquietação no espectador, convidando-o, mediante o incômodo ou o êxtase, a se posicionar e a questionar as suas verdades, quaisquer que elas sejam.

Libertando o olhar, o curta transita por muitas das obras do vasto repertório de Carlos Reichenbach, cuja heterogeneidade e inserção crítica às conjunturas históricas se refletem nessa remontagem. Não buscando uma unidade fechada e homogênea em si, algo que definitivamente encerraria a discussão, Rogério promove esta releitura e semeia leves dessincronias entre áudio e imagem no decorrer do projeto, de maneira a provocar e beliscar aquele que assiste. São fissuras e rupturas que abrem espaço para uma imersão reflexiva e livre para exploração dos sentidos.

“Eu gostaria demais de ver uma geração de provocadores, de rebeldes, de novos inventores e transgressores!”, é uma das provocações finais de Olhos Livres, um discurso de Reichenbach sobreposto a imagens de Avanti Popolo, filme com sua participação lançado dois anos após sua morte. Assim, incentivando o debate e a liberdade do corpo, tomando como base a libertação do olhar, temos um viva à arte erótica e à transgressão contínua das “pretensas verdades”.

O PERTENCIMENTO DOS CORPOSAcesso, de Julia Leite

por Giovanna Barbosa

“Tem CEP que me sabe, outros que não me cabe”. A frase já nos impacta logo no início de Acesso, uma frase que possui um peso enorme em cima de corpos que não seguem a heteronormatividade. O ser humano nasce em busca do sentimento de pertencimento, queremos nos sentir parte de um todo apenas sendo nós mesmos, e quando se vive em um mundo que muitos espaços te rejeitam, essa busca se torna muito mais complexa. O filme de Julia Leite torna pública a história dessas pessoas que acharam ou que ainda buscam seu lugar de pertencer.

Pessoas LGBTQI+ trazem relatos sobre seus corpos e o espaço em que habitam na cidade de São Paulo, mesmo após séculos de luta, o direito de frequentar e ser respeitado em qualquer local público ainda não conquistado. Segundo Filipe Fontes, que expõe a história de quando precisou se locomover até um lugar longe de sua casa para poder mostrar afeto ao seu parceiro publicamente: “a rua é a mesma, mas ela é feita por outro tipo de pessoas”. E mesmo com essas pessoas querendo apagar a presença desses corpos, precisam lembrá-las constantemente que a definição de ambiente público é de uso comum e posse de todos.

“Entender o meu corpo ocupando qualquer espaço como corpo que educa.” É um dos trechos de um relato que fala sobre se fazer presente em ambientes em que as pessoas geralmente não se relacionam com a comunidade LGBTQIA+, e só o fato de estarem aproveitando o momento e se divertindo faz com que outras pessoas se eduquem apenas por presenciar aquilo. A frase é muito impactante no meio de uma pandemia que os obriga a ficar em casa e deixar de ocupar espaços na rua, passando a ocupar espaços virtualmente. Acesso reforça a importância de a comunidade precisar marcar presença em todos os lugares, mostrar ao mundo que existem e que não vão aceitar acesso limitado às ruas.

Julia Leite, que possui a ficção Ainda Não em sua filmografia LGBTQIA+, agora dá voz a quatro pessoas queers, permitindo-as revisitar remotamente lugares em que experimentaram alegria e dor. Com muita sensibilidade, consegue fazer algo inovador. Utilizando o Google Earth, ela nos teletransporta para dentro de lugares em que a história acontece.Juntamente com a seleção de imagens e ambientação sonora, o CEP carrega uma carga emocional para as pessoas do curta e também se torna especial para nós espectadores, mesmo sem nunca termos visitado esses lugares.

ENTRE O SOM E A ANGÚSTIA – Mostra Limite – Sinfonia

por Guilherme Cruz

Na mostra Limite – Sinfonia, a música e o som são destaques nas obras selecionadas. Não apenas porque esses dois elementos fazem parte essencial da narrativa dessas obras – eles são integrados de tal modo que tornam única a experiência cinematográfica para o espectador. Em algumas obras, o trabalho de som se destaca – como em Todas as paradas, onde não há falas dos personagens, apenas sons ambientes e a música de um órgão de igreja antigo. Em outras, a música exerce protagonismo, adicionando mais camadas às imagens e causando ora desorientação, ora agitação ou medo. Por falar em medo, é inevitável que a pandemia do novo coronavírus paire sobre essas obras como a nova realidade com a qual elas devem dialogar, como é o caso em Escuro e Dentro.

Esses dois filmes sintetizam os caminhos sonoros e estilísticos da mostra ao propor uma dicotomia entre harmonia e dissonância. Ambos tratam de alguma forma do isolamento social e da vida vertical observada nos grandes centros urbanos. Em Dentro, temos a visão de um mosaico de janelas e varandas animados de modo a passar a impressão de que o prédio à frente não tem fim. A movimentação das pessoas e seus sons diversos criam uma série de ritmos que vão se alternando e criando uma sensação surpreendente de conexão entre elas. Impossível não lembrar de cenas pandêmicas, quando as pessoas se uniam para bater palmas em seus apartamentos em homenagem aos profissionais de saúde, ou para demonstrar sua revolta com panelaços. Embora separadas em seus universos individuais quadriculares, as pessoas formam uma espécie de comunidade, uma harmonia que se demonstra na sincronia sonora.

Mas talvez o curta que trate mais abertamente dos medos e angústias da pandemia seja o brasileiro Escuro. Este filme nos convida a passar uma madrugada insone em São Paulo, vista através das janelas dos apartamentos dos quatro diretores durante o auge da pandemia. Nas imagens nervosas, observamos os apartamentos vizinhos e seus interiores, como que buscando alguma companhia e sinal de vida na imensidão de pequenas luzes da grande metrópole. O que menos se encontra, porém, são pessoas – vemos apenas seus fantasmas em telas. As varandas habitadas por televisores e sombras tornam o ambiente extremamente inóspito, e a trilha sonora, um jazz que intercala momentos de calma e confusão, revela a ansiedade e o estado mental instável que marcam esse período pandêmico. Quando vemos o sol finalmente nascer, não há muito alívio: o frenesi de carros e aviões da cidade, vistos à distância, nada fazem para apaziguar a angústia interna.

Ainda dentro desta chave sonora harmonia/dissonância, Son Chant apresenta o panorama sonoro e visual dos filmes feitos pela diretora Chantal Akerman com a violoncelista Sonia Wieder Atherton. Como não poderia deixar de ser, a harmonia aqui é a maior marca: as rimas imagéticas e sonoras proporcionadas pela montagem revelam uma profunda compreensão mútua entre as artistas, numa parceria que produziu mais de 20 filmes. Já em Alexander Mosolov. Três Peças, temos um paradoxo: uma homenagem ao compositor russo conhecido pela música vanguardista que primava pela dissonância e sons repetitivos (em alusão às máquinas das fábricas), o filme apresenta imagens da arquitetura soviética em uma montagem ritmada com a música, criando assim harmonia a partir do desarmônico.

Em O Túmulo da Terra, a música também é marcante, ajudando a criar esta fábula em preto e branco que remete ao cinema mudo. As notas fantasmagóricas dos pianos de Evil Nigger, do compositor Julius Eastman, dão o tom aterrorizante e dinâmico da narrativa. Utilizando-se de elementos estilísticos do expressionismo, o curta retrata a jornada (ou fuga?) do personagem até seu encontro com um misterioso objeto: uma máscara africana de granito, desenterrada das profundezas da terra. Chamada “Pretusi” – jogo de palavras com o nome de Brancusi, pioneiro da escultura moderna –, a máscara também dá nome aos personagens que assombram o protagonista sem rosto, facetas dele próprio. A temática da busca da identidade negra através da descoberta da herança ancestral e da descolonização é retratada de forma simbólica e metafórica: ao fugir das personas ameaçadoras que lhe parecem dizer para onde ir, o homem sem rosto é obrigado a descobrir no túmulo da pedreira a sua verdadeira identidade.

Caracterizados pela diversidade de temas e estilos, os filmes da mostra Limite – Sinfonia oferecem uma visão abrangente da produção de vanguarda durante a pandemia, no Brasil e no mundo. Tratando de temas universais com usos criativos do som e da música, essas obras mostram como a arte do cinema continua a ressoar de forma viva, e como é capaz de retratar, provocar e transformar os sentimentos humanos apesar de todas as dificuldades trazidas pela pandemia.

NÃO É AUTOMATISMO. JURO. É JAZZ DO CORAÇÃOEscuro, de Martina Alzugaray, Daniel Tagliari, João Rubio Rubinato e Bruno Lopes

por Giuliana Zamprogno

Sombras de corpos dão voltas em seus próprios apartamentos. Outras sombras se apoiam nas beiradas das janelas contemplando a cidade, procurando o exterior. Como a maior parte dos filmes realizados durante o período de isolamento, Escuro versa sobre o medo e a insegurança dos primeiros meses de pandemia. Mas a grande tônica desse curta experimental é sua ambiência terna e cativante, construída pela recorrência de imagens, numa livre investigação da noite ao nosso redor.

Dentro da imensidão azul, luzes das telas dos monitores, das TVs ligadas nos quartos, das varandas dos prédios vizinhos e outras pequenas cenas são justapostas e combinadas com as faixas de um jazz ora sutil, ora caótico. As imagens nos chegam como projeções dos estados mentais confusos e melancólicos de sujeitos que, talvez pelo tédio da rotina circular do isolamento, lançam-se minuciosamente à paisagem e aos objetos. Esse escrutínio do olhar permite chegar até o píxel, em vislumbres da materialidade dos pontos de luz.

No conjunto, a atmosfera criada em Escuro se aproxima bastante da iconografia noir (noite, cidade, solidão, escuridão, janela). A plasticidade e a sensorialidade das imagens – exploradas até o limite pelo recurso da aproximação, da baixa resolução e da luz estourada – evocam uma estética própria da videoarte realizada em suporte VHS nos anos 80 e 90, ou em filmadoras digitais no início dos anos 2000.

O filme em si é divido em quatro partes ou passagens, pontuadas pela progressão das horas (00:00, 1:00 etc.) que aparecem em intertítulos. Essas passagens, no entanto, parecem demarcar não o tempo, mas as diferentes sequências produzidas por cada um dos quatro jovens diretores. Ainda assim, a variação sonora é o fator determinante do ritmo de Escuro, que se faz a partir da intercalação de dois tipos de sequências: uma mais tonal, suave, compassada em torno de um tema imagético; e outra improvisada, dodecafônica.

Enfim, saímos das trevas de São Paulo, dessa metrópole que parece nos engolir. Mergulhamos agora no brilho das ondas do mar, do nascer do sol que deita nas ondas do mar. É a nossa redenção, nosso alívio momentâneo, para sermos depois ofuscados pelos clarões violentos da cidade, e logo em seguida adoçados pelos contornos alaranjados das nuvens do céu. Num jogo lancinante, a trama de imagens em Escuro “se esboça, se esboça e se destrói, com a mesma lentidão, uma escritura ilegível e dilacerante de sombras, de arestas, de traços de luz, (…) de uma geometria fugaz que se escoa ao sabor da sombra das vagas do mar. Para em seguida, mais uma vez, incansavelmente, continuar a existir” (Marguerite Duras).

O experimentalismo de Escuro renova o olhar ao refrescar os sentidos num contexto de excessos e de uma leva já esgarçada de filmes sobre as angústias na pandemia. Através de uma atmosfera noturna magnética e de uma qualidade sonora ímpar, o curta traz breves lampejos de beleza num momento em que é realmente preciso muito esforço para encarar a escuridão.

 

DA SUPERFÍCIE ÀS PROFUNDEZAS, E DE VOLTAO Túmulo da Terra, de Yhuri Cruz

por André Quevedo Pacheco

“Descia ao túmulo mais profundo

Reunia os farelos de mim

E você me erguia:

– Sim, eu!”

Assim termina o poema de Yhuri Cruz O Túmulo da Terra (Pretusi), que o poeta-diretor utiliza de base para criar seu filme homônimo, em que ainda atua como protagonista. Nele, uma figura preta é perseguida por quatro outras, até que cada uma encontra uma máscara de granito, sendo a da personagem principal sem rosto.

Nas ruínas da atualidade: segundo o realizador, o curta seria uma tradução audiovisual do seu poema, que buscaria encenar um processo de subjetivação, em que a personagem principal encontra um rosto na ausência de rosto. Essa busca se associa a uma tentativa de retrabalhar os traumas da subjetivação e racialização de pessoas pretas, diretamente associadas a sistemas de violência social. Segundo texto de Castiel Vitorino Brasileiro, O Túmulo da Terra abriria um questionamento sobre esse processo: o que, na subjetivação preta, vale ser enterrado? E o que, como as máscaras, vale ser desenterrado?

Pedreira abaixo no ontem: pode-se encontrar na década de 70 um antecessor direto do filme – Alma no Olho, do ator e diretor Zózimo Bulbul. Zózimo atua e dirige um curta que retrabalha a racialização através da performatização da diáspora. Além de terem como único som peças inquietas de músicos pretos americanos, ambos os filmes usam da comunicação gestual e do contraste entre preto e branco para criarem alegorias visuais que questionam a posição da pessoa preta e apresentam alguma saída. Zózimo ao fim quebra as correntes da colonização e tapa a câmera com seu corpo preto. Mas no caso de Yhuri, qual o sentido de tapar a o próprio rosto com a superfície preta, afirmando uma não identidade?

Escavando o túmulo do antigo: fazer um “filme de início do cinema” com pessoas pretas parece ser uma das motivações do curta. A narrativa esgarçada e o tema da perseguição sem motivo aparente lembram filmes dadaístas e surrealistas. As maquiagens intensas marcando as linhas de expressão dos rostos e a atuação gestual e antinaturalista remetem a filmes expressionistas. As trucagens de desaparecimento e reaparecimento são claras referências aos truques de mágica cinematográficos de Georges Méliès. Como o próprio nome do projeto em que o curta se insere diz: pretofagia. Mas se essas referências ao cinema europeu coabitam a geleia geral do filme, onde estão as tensões entre esses movimentos, e mais importante, as tensões entre o cinema branco de países colonizadores e o cinema preto de país colonizado? Quem comeu quem?

Sob o sol do agora: no poema, o protagonista é oprimido até encontrar, solitário, “a inconsciência geológica daquilo que não detém medo”. Porém, no curta, Pretusi Sem Rosto é sempre conduzido pelos outros Pretusis. Eles agem sobre ele, que reluta assustado, mas depois se identifica a eles, esfregando seu rosto assim como esfregam o seu, levando ao progressivo encontro de sua máscara. Em seguida, porém, deixamos de acompanhá-lo, pois a máscara retirada da terra é a de Pretusi II. Se o poema encena a trajetória do Sem Rosto, qual é o sentido dessa elipse no filme? Apesar de não ter razão aparente, ela chama atenção para o encontro de máscaras pelas outras facetas da identidade de Pretusi, que ao fim são colocadas em posição de equivalência em planos iguais em que ostentam suas máscaras. Assim, a subjetivação de Sem Rosto acaba sendo retratada como semelhante à dos outros Pretusis, que se identificam com imagens de si, sendo a máscara aqui não um simulacro, mas uma representação. Cada faceta encontra sua imagem e seu espelho: estamos na identificação narcísica. Mas e a faceta diferente de si? Ela é igual às outras, mas lhe faltam olhos, nariz e boca. Por que aquilo que foge de si teria de não falar, não ver e não respirar?

Aqui, a não identidade tem lugar no sistema de identificações narcísicas, mas somente ao se manter sem expressão.

UM BRASIL DE HOJE, ONTEM E AMANHÃ – Mostra Brasil 3 – Perplexidade

por Carolina de Oliveira Silva

A Mostra Brasil 3 – Perplexidade apresentou filmes que ultrapassam a percepção temporal cronológica usualmente compartilhada e descrita nos livros de história. Ao propor uma série de tensões que explicariam o hoje brasileiro, o conjunto de filmes explicita a necessidade de compreender tempos e espaços de maneira simultânea, colocando em questão a percepção linear da história: passado, presente e futuro passam a compor, mais do que nunca, apenas um só tempo.

Nesse sentido, a própria sequência dos curtas parece produzir uma leitura cíclica que comunica as incongruências de um país construído sob as bases do absurdo. Intercalando diferentes estéticas – do experimental ao clássico e do ensaio ao documental – os cinco filmes exploram aquilo que é difícil ver, ouvir, relembrar, entender ou aprender – e justamente por isso, devemos fazê-lo.

O ódio funciona muito bem como prólogo ao abrir de maneira quase universal a sua imagem praiana e pavorosa de um latente e irreversível apocalipse. Os pássaros, quase sempre utilizados para invocar liberdade, são agora trancafiados numa vermelhidão que purga a tela. Um som militarizado acompanha a aproximação de uma bola de fogo, o sol, em seu último dia. É o resultado da mão humana que nem é possível de se ver, já que ela mesma fora responsável pelo nosso desaparecimento.

De maneira mais clássica e previsível, mas não menos problemática, A obra final se debruça sobre uma sombra densa da história brasileira: a ditadura militar. A narrativa que intercala as temporalidades – o auge da ditadura e a retomada, anos depois, de histórias forjadas no âmago de um Estado autoritário – joga com os dados estéticos do filme de gênero – o policial, por exemplo, construindo uma narrativa em torno do mistério, que não prevê reviravoltas, mas confirma uma condição engessada: o assassino converte-se em herói por meio da aprovação do povo.

Se a ditadura brasileira ainda nos persegue como uma sombra sólida que não pretende se decompor tão facilmente, revelando-se em um terreno ainda fértil para as produções cinematográficas, o ambiente despertado pelo onírico em Per Capita se apresenta numa realidade que relega aos corpos a principal miséria.

Obsessão, violência, depredação e estupro são temas que compõe essas imagens, como num gesto incontrolável de vômito – as imagens múltiplas de carros dos mais diversos filmes que apontam, principalmente para a liberdade, são contestadas pelo cinema pernambucano: estariam os road movies já ultrapassados em suas metáforas? Sim e não. As ações que levam a misoginia são agrupadas pela violência diante de um veículo abandonado, elas habitam a mente de uma mulher acordada pela angústia – a realidade que adentra o sonho e o sonho que se torna real não permitem discernimento. Mas afinal, quando permitiram?

Esse amálgama também serve como terreno movediço em República das Saúvas, que nos força goela abaixo uma série de pronunciamentos de quem se diz presidente em plena crise sanitária num Brasil tão grandioso e ao mesmo tempo tão pequeno. Com uma montagem que inventaria uma realidade nacional explicada pela terra e seu mundo animal, o jogo cômico se faz presente pela recuperação de um dos romances mais importantes de nossa literatura, Macunaíma. As saúvas, denunciadas como as principais responsáveis por sua própria depravação, provocam um questionamento tão incômodo em nós quanto o vai e vem dessas imagens – saúvas, gados, saúvas, burros, saúvas, urubus. Se é possível angariar um papel nessa cadeia alimentar, a pergunta deve sugerir: a que preço?

Em meio a essas inúmeras realidades, a afirmação de uma especificidade – a das mulheres surdas em Seremos Ouvidas – se volta para um dado preocupante na trajetória dos feminismos brasileiros: a de que é preciso ouvir, falar, ver, tocar e sentir em seus mais diversos e possíveis significados. Por meio de depoimentos que se fazem tão diretos e reais quanto as experiências das mulheres que sofrem algum tipo de violência, o curta explora um redimensionamento necessário para tornar o mundo um lugar habitável, acessível e, principalmente, disponível às mais variadas transformações – mesmo depois de sua explosão devastadora.

Os filmes da Mostra Brasil 3 – Perplexidade conseguem, de alguma maneira, pontuar grande parte daquilo que foi acumulado, guardado, restringido em séculos de história brasileira, mas que, ao ocupar um espaço finito, não sabe mais para onde ir e só pode explodir. O prognóstico diante da detonação do país já foi feito: a ideia nunca foi organizar o caos, mas aceitá-lo em suas mais diversas constituições e, quem sabe, especular sobre o que podemos na tela e fora dela.

FETICHES AUTOMOBILÍSTICOS DO CAPITALISMOPer Capita, de Lia Letícia

por Kimberly Palermo

Ofegante, uma mulher desperta de um pesadelo em sua luxuosa casa, com direito a vista para o mar. Três playboys arranham, quebram e se esfregam num carro à noite. Uma videoinstalação apresenta um mosaico de telas – vitrines de videogames, filmes e clipes musicais – como as de O homem que caiu na terra (1976).

Elite, violência e consumo – é a partir do entrelaçamento desses três motivos que a diretora e artista plástica Lia Letícia transforma Recife num pesadelo sensorial em Per Capita. O filme faz parte da tendência curta-metragista do fantástico para discutir questões sociais, mas sua abordagem se difere de seus antecessores por sua aproximação lynchiana. Assim, a ausência de diálogos, a fotografia expressionista em preto e branco e a acentuação dos ruídos são essenciais na construção de um mal-estar atmosférico.

É com ele que a mulher, representação das classes abastadas, irá nutrir o que seria, simultaneamente, seu maior pesadelo e fetiche. A figura do carro, presente desde o início com o enquadramento retangular do para-brisa, é o símbolo máximo do status quo dessa parcela populacional. Afinal, é ele quem permite a extensão do privado às ruas e a segregação dos subúrbios em relação às periferias. O design das cidades é cada vez mais excludente: alarga-se as ruas e precariza-se o transporte público, transformando o carro no sonho coletivo, agente político capaz de devolver o direito de ir e vir.

Em movimentos destrutivos e velozes, o mosaico de telas apresenta automóveis nas mais diversas vertentes do consumo. De Karma Police (1997) a Crash – Estranhos Prazeres (1996), referência explícita na associação entre prazer e destruição automobilística, Lia Letícia coloca até o próprio filme na instalação. Uma metalinguagem que se reconhece também como produto consumível daquela violência.

Essa agressividade permeia o pesadelo da mulher, no qual três jovens quebram, urinam e se esfregam sexualmente num automóvel vazio. Dispensadas as falas, as ações dos homens são como uma performance, um ritual quase sedutor. A coreografia destrutiva é intercalada por selfies, pois na contemporaneidade não se desassocia o prazer da imagem midiática. Ao fim, eles se sentam no meio-fio, extasiados, o suor escorrendo pelos rostos.

“Os subúrbios sonham com a violência”, diz um trecho de J.G Ballard. A mesma elite que teme a violência (a mulher do filme) é aquela que a consome e pratica (os homens). O título Per Capita, expressão indicativa da média que cada um deveria receber no país, costura todas as imagens díspares do curta em sua denúncia da desigualdade. Seu final reproduz o início, os escombros automobilísticos tornam-se um cemitério – a consequência iminente do ciclo de consumo, violência e prazer.

“Como despertar uma gente entorpecida que tinha tudo, que comprara todos os sonhos que o dinheiro pode comprar e sabia que tinha sido uma pechincha?” Lia Letícia nunca nos responde, mas nos provoca e assombra com 15 minutos de um transe hipnótico.

AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS CARNES BRASILEIRASRepública das saúvas, de Piero Sbragia

por Gabriel Marçal

A ironia, vergonha, tristeza e o abismo trazidos por República das Saúvas, de Piero Sbragia, provocam efeitos estranhos, sentimentos análogos aos de quem assistiu o Brasil da pandemia. Num exercício de colar recortes tão díspares quanto imagens das saúvas (formigas nocivas)  se alimentando de uma vegetação, paisagens de prédios em São Paulo e um conjunto de áudios das falas mais aberrantes de Jair Bolsonaro, o diretor cria um universo absurdo que, em vez de confundir, parece explicar o Brasil de hoje: um país onde “a realidade não existe” (frase utilizada no curta), ou existe de maneiras paralelas. Onde a morte diária de milhares de pessoas não mais impressiona, é como se os vermes e as pragas tivessem tomado o poder e convencido a população de que estava tudo bem se a sua plantação fosse destruída.

Estamos num documentário experimental que possui um detalhado desenho de som e uma montagem disruptiva que traz climas dissonantes. A relação entre as formigas destruidoras e o Brasil é fácil, uma vez que esse é um país cuja colonização teve o único objetivo de extrair riquezas sem qualquer precedente. Outros animais aparecem, como o gado e o burro, ambos relacionados com os discursos do presidente, que ocorrem durante todo o filme. A utilização das falas de Bolsonaro sobre a pandemia tem sido recorrente em documentários e até ficções. É um recurso potente (que nem sempre dá certo), e que aqui tem um efeito dúbio: a sua incessante utilização é vertiginosa, tornando-se ao mesmo tempo um elemento rítmico chocante e cansativo.

Esse eterno retorno cria um sentido cíclico, de que essa destruição da terra, cultura e povo nunca cessa no Brasil. A clareza da analogia entre os animais e o presidente pode ser vista como um caminho fácil, mas aqui aparece como parte de um mundo bizarro – A Revolução dos Bichos vem à cabeça –, e o clima de ficção científica tem uma ironia que beira o humor tosco. República das Saúvas é inteligente na forma como nos faz sentir esse lugar marcado pela violência de séculos e formado por um sistema de sobrevivência primitiva que reflete até hoje. Outras imagens complementam esse universo, como os céus trovejantes e arranha-céus.

As filmagens das formigas, que em um documentário convencional seriam acompanhadas por uma narração sobre sua ação na natureza, mas que são aqui sobrepostas pelas falas do presidente, causam uma experiência tátil significativa. Há ainda outro elemento irônico que traz perplexidade: as saúvas são pragas que fazem parte de um ecossistema regenerativo. O mesmo não pode ser dito de nós, que ultrapassamos, principalmente a partir do capitalismo, qualquer regeneração. Portanto, um país onde humanos são tratados como simples agentes naturais (em um mundo antinatural), que existem apenas para sobreviver, largados nas adversidades sociais e patológicas, é um cenário que só não é distópico porque já é verdadeiro. A realidade pode não existir, mas as feridas são reais. Por quanto tempo as carnes e os espíritos vão aguentar?