A santidade de ser quem se é

Apesar de muitos avanços nas discussões sobre sexualidade e heteronormatividade, o debate sobre gênero no âmbito social e artístico ainda engatinha. Porém, temos aqui, na 23ª edição do Festival, um dos exemplos de obras que, poeticamente, colocam esse tema em pauta.

A Santa (La Santa) é um filme chileno do diretor Mauricio López Fernández, sobre a hermafrodita María, que é forçada pelo pai a encarnar a Virgem Maria em uma procissão da cidade onde moram. Segundo ele, talvez tamanha honra faça com que a filha seja “consertada”. Por sua vez, a “garota” (por falta de melhor artigo, substantivo e gênero) está em constante tensão com a decisão do pai e com o que ela representa, ou seja, apresentar-se oficialmente como mulher.

Para além do ambiente familiar, a religião parece ser um dado importante de pertencimento e aceitação na cidade de María. A discussão de gênero está situada, portanto, inevitavelmente dentro da religiosa: María não se sente bem naquela opção espiritual não apenas por não ter nada a pedir a Deus, mas também porque aquela Igreja não a aceita como ela verdadeiramente é.

Um caráter forte a leva a refletir para além de sua criação católica, e lhe traz a conclusão terrível de que para agradar ao pai e se tornar parte de um grupo, ela deve fazer uma escolha para a qual ainda não está preparada, visto que ambos os gêneros se manifestam na personagem, e ambos são igualmente aceitos por ela.

A arte e a fotografia do filme são bem sucedidos em retratar essa dubiedade da beleza de María. Vemos um belo rosto de menina iluminado pelo sol em um momento, e logo antes, em um plano mais aberto, seu figurino justo que evidencia a genitália masculina.

Não há, porém, nada forçado quanto a isso; estamos claramente diante de uma pessoa com um problema a ser resolvido, e não diante de uma aberração a ser observada com curiosidade. Essa sutileza deixa o filme mais bonito. Bonita também é a imagem de María como a santa; simbolicamente, ou talvez até ironicamente, uma personagem renegada representa justamente todo um grupo de pessoas que pedem benção e perdão.

Isabela Maia

A Santa está na Mostra Latino-Americana 3. Clique aqui para ver a programação do filme

Exemplos instigantes do audiovisual portenho

Já passa de uma década que o cinema argentino fortaleceu seu nome entre nós, servindo inclusive como um comparativo de qualidade. Roteiros fortes, temas diversificados e uma estrutura de produção aparentemente simples dão a tônica de boa parte do que vem de lá.

Na programação do festival, os curtas Noelia, dirigido por María Alché, e Pude ver um Puma (Pude ver un Puma), dirigido por Eduardo Williams, são exemplos instigantes do audiovisual portenho. Ambos trabalham com uma câmera frouxa, quase amadora, e vão construindo seu tema e intenção com retalhos editados que ganham força sempre que pensamos neles.

Noelia é estruturado por meio da personagem-título, registrando com uma câmera (na mão ou posta sobre algo) suas ações, com uma estética próxima à dos vídeos amadores postados na internet. Sua primeira tomada faz com que se pense assistir a um filme sobre a relação difícil entre mãe e filha, com as ações frias, e às vezes agressivas, de sua mãe camareira sendo captadas com cautela.

No entanto, os lugares mudam e vão surgindo várias “mães”. Cai-se em um jogo da personagem. O campo de visão limitado e a estranheza das ações fazem com que se tente sempre tomar uma posição sobre o que está acontecendo, questionando até a sanidade da moça. Mas, sempre que uma certeza parece se firmar, um elemento novo surge e faz rever o que pensamos.

Sem fechar a história, o curta apenas registra a estranheza – como bem representa o plano final, com o rosto da moça ensopado (por quê?) em primeiro plano, num lugar impossível de apreender, e por fim o escuro do apagar das luzes que serve de fundo para os créditos, sendo que a música é aparentemente tocada pela personagem.

Pude Ver Um Puma não é um filme fácil. Registra a esmo alguns grupos jovens que surgem caminhando sobre telhados e vão para ruas e espaços destroçados. Os diálogos são simples e entrecortados. Alguns planos são longos e a câmera não está fixa, o que aumenta o desconforto. Pontualmente, alguém cai ou há um acidente mudando o grupo na sequência seguinte.

O final inesperado reverte tudo, dando sentido a todas as ações anteriores. Temos aqui uma maneira engenhosa e barata de contar uma ficção científica apocalíptica e perturbadora, e que cresce cada vez que é lembrada.

Carlos Alberto Farias

Noelia e Pude ver um Puma estão na Mostra Latino-Americana 5.