UM OLHAR SOBRE A AMÉRICA LATINA – Mostra Latino-Americana 2 – É Preciso Estar Atento e Forte
por Letícia Leão
“De uma forma nova, explosiva, de uma outra maneira”. Essa foi a resposta de Gal Costa a Gilberto Gil ao ser indagada, pela primeira vez, sobre como gostaria de interpretar a música “Divino Maravilhoso”. Canção que, não coincidentemente, tem como uma de suas passagens o título desta mostra. A América Latina continua “divina e maravilhosa”, e a efervescência tanto de criar quanto de experimentar em tempos sombrios nunca foi tão forte. Nós latinos seguimos em busca de nossas identidades e liberdades.
A América Latina, mesmo no momento difícil para a população mundial, se mantém em um movimento constante de reinvenção. As cicatrizes do passado seguem profundas, e o cinema e seus realizadores cuidam de registrar, relembrar e repensar nossos conflitos. O resultado disso, são filmes que cada vez mais se arriscam em desenvolver linguagens e narrativas sobre os nossos cotidianos.
Quem diz pátria diz morte (Chile) traz o cenário do metrô de Santiago como um belo fio condutor deste lugar cheio de memórias. Em cada estação, ele nos convida a uma viagem imersiva em regiões da cidade onde ainda existem resquícios dos difíceis tempos da ditadura chilena. Em paralelo, a obra mostra os receios e anseios da população durante as manifestações ocorridas no final de 2019, que tiveram como estopim o aumento da passagem do metrô. Se em um lado, há pedidos de melhorias em direitos básicos da sociedade, no outro há uma resposta repressiva de soldados e representantes do governo, que presentificam o medo de se manifestar e voltar a ter uma ditadura como a de Pinochet. Adentro (Colômbia, Costa Rica, Brasil) amplifica os problemas sociais ao retratar a intensificação das nossas feridas com a chegada da covid. O filme é uma melancólica experiência no cotidiano íntimo de seus realizadores: o vazio das ruas, o medo do coronavírus, o desespero das pessoas mais vulneráveis revelam cenas angustiantes e trazem uma reflexão sobre a condição humana. O alívio está no pensar do próprio ato de realizar o filme, uma obra coletiva de diretores de diferentes países.
Água (México) retrata o dia a dia de Camilo, um adolescente remador de Xochimilco, que pensa que seus encontros sexuais com outro homem foram descobertos por um colega do trabalho. Há o medo de ser reprimido, o medo da homofobia. No filme, a dualidade entre o moderno e o tradicional está não só no contraste entre os cenários rural e urbano, como na contraposição entre passado e presente. Camilo é remador de um sistema de navegação construído pelos astecas, a trajinera, um dos mais antigos, e é nesse ambiente de trabalho, arcaico, que o protagonista é introduzido a uma realidade diferente, que naturaliza as relações homoafetivas e o faz vislumbrar um lugar onde sua orientação sexual pode ser mais aceita.
Já O sonho mais longo de que me lembro (México) conta história de Tania, uma jovem, que por conta do crime organizado no país, decide sair de sua cidade natal. Neste ensaio, o rompimento das barreiras entre realidade e sonho nos provocam os estímulos do inconsciente. A experimentação de linguagem é o que potencializa o filme e nos envolve não por uma trama linear, mas pelas informações desconexas. As imagens não são didáticas, o espectador está sempre captando as mensagens soltas, nas entrelinhas. E há os fantasmas do passado, o pai de Tania, figura que nunca tem seu rosto revelado. Para além da discussão das questões sociais, o convite é o de imaginar novas realidades e sonhar mudanças junto com a protagonista.
Aqui, cabe a resposta dada por Gal a Gil em 1968: esta é uma seleção de filmes novos, explosivos e inventivos. Sobreposições entre batalhas do passado e do presente nos fazem refletir sobre a construção do nosso futuro. Embora haja uma onda conservadora que atinge todas as fronteiras latino-americanas, ela não calará as vozes ativas daqueles que mais geram debates e produzem cultura, os artistas. É preciso estar atento e forte.