Quintal: mergulhar no portal cinematográfico

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por Adriana Gaeta –

Quintal é um experimento sobre linguagem. Se inicialmente mostra um casal de idosos e seu cotidiano, o curta rapidamente nos insere no universo do realismo fantástico, com o qual o diretor André Novais (Fantasmas, Pouco Mais de um Mês) vem flertando em outros curtas. Desse reconhecível mundo da casa e do quintal, o filme nos leva em uma viagem por universo nonsense e muito divertido.

Ele parte da observação do cotidiano da casa dos pais do diretor, Maria José Novais Oliveira e Norberto Novais Oliveira, na casa da família. Uma sacola de fitas eróticas é achada. O protagonista masculino se deleita com as imagens. Enquanto isso, um forte vendaval quase leva Maria pelos ares. Da mesma maneira que ele surge, vai embora. Mas, no quintal um estranho “portal” é aberto.

Enquanto isso, Norberto se deleita em seu aparelho televisivo, onde bundas prefeitas em poses provocativas se besuntam de óleo. Fascinado pelas imagens, Norberto mergulha no portal. Maria por sua vez não sente falta do marido durante todo o período e mantem suas atividades cotidianas. Norberto ressurge, sem explicar a nós espectadores onde foi. O elemento fantástico no filme está inserido em um cotidiano e não carece de explicação. Cabe a nós, espectadores, recriarmos esse lugar.

Nas cenas seguintes, Norberto apresenta sua tese “Bundas e óleos”, tema que foi objeto de um profundo estudo. O portal do quintal então poderia ser uma metáfora do portal televisivo, do mergulho no universo erótico, ou uma abertura para a consciência da sexualidade na terceira idade. Nada nos é explicado. O filme não dá possíveis trilhas a serem percorridas. Cabe a nós espectadores também mergulharmos no portal cinematográfico. O mergulho é de Norberto em um mundo paralelo e também o de nós, na nossa própria capacidade de (re)criação. Quintal nos teletransporta para o interior de nosso mundo imaginativo, e nos convida a ser co autores do curta metragem. E o mergulho, é bom avisar, é de cabeça.

Quintal está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Da organização fílmica do sujeito

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Rodrigo Sá –

À sua maneira, um filme pode ser muitos filmes. Dada a não produção de uma impressão geral que permita uma interpretação do sentido, o filme constrói-se por meio de um processo de negação de síntese onde não se atribui aos elementos determinações semânticas permanentes. Filmes que se utilizam desse procedimento fogem daquilo que comumente se espera de uma narrativa fílmica. Em uma narrativa tradicional, a unidade do geral e do particular verifica-se sem mediações: sublinha-se o caráter orgânico de tais obras. Nas obras inorgânicas – nas quais conserva-se uma abertura em si mesma –, a unidade do geral e do particular não está dada. A negação do sentido produz um choque no receptor, no momento em que esse percebe que apenas ele é capaz de produzir o momento de unidade da obra. A estética do choque é um procedimento para acabar com a imanência estética e conceder à obra um potencial de transformação do comportamento daquele que entra em contato com a ela.

Como São Cruéis os Pássaros da Alvaroda é construído sob essa inorganicidade estrutural. No entanto, não é apenas a forma do filme que assume esse aspecto. A própria vida do personagem dialoga com essa ausência de um sentido fixo, fechado em si mesmo. Os acontecimentos do personagem parecem sempre palpebrear a vertigem dos seus abismos interiores. Forma e conteúdo – ambos marcados pelo caráter inorgânico – fundem-se e promulgam uma narrativa que outorga ao próprio vazio uma capacidade explosiva. Tudo se passa como se o fogo pudesse surgir mesmo no vácuo. Construído sob essa esfinge indeterminista, o filme de João Toledo desponta como um dos curtas mais promissores da Mostra Brasil.

As indicações do GPS no início do filme já indiciam o desnorteamento de uma busca fadada a nada encontrar, senão o vazio da própria (in)existência. Logo em seguida, a visualização do personagem atrás das grades da janela denunciam o aprisionamento pelo qual se dilacera a existência do personagem. As primeiras informações verbais acerca dele são obtidas a partir da descrição feita por aqueles que seriam seus pais adotivos. Esse modo de apresentação do personagem é muito significativa se pensarmos em algo que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade: uma impossibilidade de falar de si. O discurso do sujeito sobre si mesmo é invalidado em função da miríade de instituições que colonizam o discurso e detém a verdade sobre eles. O filme, já em seu começo, põe em questão duas delas: a família e a psiquiatria. Ambas estão instaladas no cerne da sociedade capitalista, constituindo-se, assim, como um dos seus principais aparelhos controladores.

Neste ponto, é necessário lembrar que a sociedade capitalista põe em ação seus modelos hegemônicos de subjetividade, reproduzem e internalizam, com seus aparelho sociais de reprodução, um sistema de repressão e limitações que inviabiliza o discurso do sujeito. Uma nova gramática do ser nasceu com a psiquiatria e moldou de maneira decisiva a percepção do sujeito contemporâneo, funcionando como uma peça importante para a consolidação dos modos de gestão social do capitalismo. O personagem “D” é analisado, descrito, codificado por uma psiquiatria que acredita possuir a verdade quanto à loucura; quando, na realidade, é a loucura que possui a verdade sobre a psiquiatria.

A família, por sua vez, opera uma reificação do indivíduo ilustrada tanto nas ordens que lhe fizeram de pronto quanto no distanciamento inscrito na própria fala do pai que, na presença do filho, fala com a mulher utilizando o pronome da terceira pessoa, evidenciando as formações insulares desenvolvidas no seio da estrutura familiar. Aparentemente acostumado a esse tratamento, o filho chega ao café de costas, como se assim pudesse passar despercebido, sem a necessidade de escutar os pronunciamentos dos “pais”.

Essa indeterminação pessoal terá como consequência uma despossessão de si mesmo, um esvaziamento do ser. O curta retrata essa decorrência quando o personagem, na presença dos pais, desaparece subitamente, deixando à vista apenas um quadro composto por uma infinitude de formas geométricas sem conexão entre si. A desconexão das figuras do quadro simbolizam a própria desconstrução a qual o sujeito está submetido na sociedade capitalista. A cena nos faz recordar Os Residentes (2010), outro filme da nova safra do cinema mineiro que guarda semelhança formais com o curta em questão.

A sequência seguinte, além de contar com uma beleza plástica exuberante, acentua ainda mais esse vazio. A cena transcorre aparentando que as pessoas que andam de patins estão deslizando sobre um nada flutuante. Destaca-se o plano-sequência do travelling lateral executado com uma matemática dos movimentos bastante preciso. O espectador fica sob o estase da experiência do voyeurismo.

Desde cedo, é possível perceber que o filme configura seus protocolos de organização de narrativa, planos, montagem, etc por intermédio das disposições psíquicas do personagem principal. O todo do filme é redefinido a partir do interior do sujeito. Em outras palavras: trata-se da construção de uma espécie de dramaturgia subjetiva centrada na figura elementar do personagem principal, o “D”. Ao adotar essa estratégia, o filme constrói sua diegese e mobiliza seu personagem cujas ações organizam um tempo fora do comum e variável em sua complexidade, mas mantendo uma conexão particular com a experiência social, isto é, com a sociedade permeada pelas estrutura hegemônicas de construção de subjetividade.

Buscando relacionar o filme ao contexto das produções nacionais, busquemos um fragmento do ensaio de Hernani Heffner, publicado na Cinética, intitulado “Sem Futuro”. Analisando o cinema brasileiro contemporâneo, o crítico e conservador da cinemateca do MAM-RJ escreveu: “Não interessa mais, porém, a denúncia da opressão político-econômica, do colonialismo, do autoritarismo, por exemplo. O eixo desloca-se da luta coletiva para a afirmação individual pelo desejo, pela sexualidade, pela criatividade.” A partir dessa conceituação, é facilmente assinalável que o filme de João Toledo, à sua maneira, se insere nessa tradição desse “Novíssimo Cinema Brasileiro”

Em seus desvelamentos, o curta assinala um conjunto de situações marcadas por uma repetitividade do gesto. O bonequinho do banheiro que executa um movimento eternamente igual, o telefone que toca indefinidamente, a chamada que ninguém atende, a bola de tênis que salta de um lado para o outro, as cigarras que entoam exaustivamente suas cantigas noturnas, o carro que insiste em não funcionar, as paisagens da cidade que se repetem avenidamente, o cabelo que teima em não obedecer ao movimento do pentear. A ausência de sentido acentua a ineficácia dos gestos, tão sem solidez como a própria materialidade do vazio. Tudo se passa como se a vida houvesse de ser repetida sempre a mesma assim como a piada dos mineirinhos contada várias vezes durante o filme. No limite, o ato mais rebelde parece consistir em contar uma piada até pulverizar a imaginação.

Numa cena fatídica, um amigo liga para “D” convidando-o para sair e ele responde mecanicamente: “não, não dá, tenho que trabalhar, não rola, não dá, não, não, não rola, não rola, não dá, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não dá, não rola, não rola, não rola”. A reiteração da fala é consoante ao mesmo ritmo de trabalho, atividade essa que impede-o de sair. O trabalho, enquanto atividade produtiva, requer uma uniformidade e repetição extenuante dos gestos. A relação profunda entre os regimes sociais de trabalho e a construção da subjetividade individual permite-nos compreender a associação entre trabalho e a repetição da fala. A instituição trabalho funciona como mais um elemento definidor do sujeito e, por consequência, de seus sofrimentos psíquicos.

A inadequação ao mundo do personagem é semelhante a do peixe que navega nas águas de uma privada, impedindo que o personagem urine, ainda que um mictório esteja posicionado ao seu lado. Até mesmo o estado orgiático da festa em que ele está não é capaz de retirá-lo de sua indiferença. A vida é revestida de uma inoperância como a fila de bebedor paralisada pela lentidão do personagem em beber água.

O final do filme permanece em aberto. O eclipse das circunstâncias – deambulação noturna e tanque de gasolina vazio – levam para um quarto de motel o personagem e um galão de gasolina. Não se chega a saber o que aconteceu. No entanto, tal indefinição não é nada mais que uma redundância. Afinal, o que é uma morte para quem parece já estar morto há muito tempo?

Como São Cruéis os Pássaros da Alvorada está na Mostra Brasil 8. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

USP 7% e Mater Dolorosa, filmes necessários

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por Armando Manoel –

USP 7%, de Daniel Mello e Bruno Bocchini, e Mater Dolorosa, de Daniel Caetano e Tamur Aimara, apresentados respectivamente no Panorama Paulista e na Mostra Brasil deste 26º Festival de Curtas Metragens de São Paulo, chegam em boa em hora aos circuitos nacionais de curtas-metragens em tela grande. Afinal, 2015 está ai e o Brasil ainda assiste dia após dia casos de racismo e preconceito de classe explícitos, mas até certo ponto inapontáveis (ou quando, discutidos em canais menores) em certas instituições sociais. USP 7% apresenta depoimentos sobre a implementação de cotas raciais na maior universidade da América Latina e Mater Dolorosa acompanha a mãe do dançarino DG, nos momentos que seguiram sua morte na comunidade Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro.

A Universidade de São Paulo, casa maior no que se refere a produção intelectual do país, ainda se vê imersa em vícios conservadores que a impedem de avançar na questão racial. Do universo de estudantes que ingressam anualmente em seus quadros, cerca de 7% são negros (dados de 2012). O curta parte justamente desta informação para abordar um debate até então pouco exercitado no ambiente universitário: cotas raciais.

USP 7% apresenta uma série de narrativas de pessoas que vivenciam plenamente a questão das cotas. Acompanhamos, por exemplo, a jovem Fernanda Moreira durante o processo de vestibular da Fuvest. Em seus depoimentos, a estudante, trabalhadora e militante do Núcleo de Consciência Negra da própria universidade aponta para a diferença entre a preparação de vestibulandos que vêm de camadas privilegiadas em relação a outros concorrentes, como ela mesmo, negra e oriunda de camadas populares. A emoção e o conhecimento de causa nas falas, bem como o nervosismo da jovem nos levam a uma visão muito próxima da questão – uma pena os diretores não terem dado mais tempo à produção do filme e nos revelado o desfecho da narrativa de Fernanda e o vestibular.

Afinal, por que a USP, uma das primeiras universidades a debater a questão racial, reluta tanto em aplicar artifícios que visam corrigir o racismo institucional em seus quadros? Se a USP é a maior em pesquisa, maior em numero de alunos, enfim, a maior em diversos aspectos, o racismo no campus também tem de ser maior? A força deste curta esta justamente em formular e apresentar, quase que na forma de denúncia, estes e outros questionamentos.

Mater Dolorosa é um filme intenso. Já de início nos vemos perdidos em meio a uma manifestação no Rio de Janeiro, tudo muito rápido, como o samba que preenche ao fundo as imagens. Maria de Fátima da Silva puxa uma manifestação tocando incessantemente um surdão pelas ruas até chegar às regiões centrais da cidade. Seu filho Douglas Silva, o dançarino DG, acabara de ser assassinado numa ação policial no Pavão-Pavãozinho.

Em meio a trechos de poemas de Eurípedes sobre crianças que são lançadas em um mundo em guerras (contexto da guerra entre Grécia e Esparta nos quais foram escritos), Mater Dolorosa nos leva a uma reflexão sobre a realidade de extrema violência que acompanha o cotidiano de diversas regiões do Rio de Janeiro. Muita gente segue o bonde que presta sua última homenagem a DG, as imagens de manifestação pelas ruas, mas principalmente de seu funeral, poderiam enganosamente sugerir uma festa de rua, se descontextualizadas. Mas a energia ali canalizada é clara e direta: os morros, as quebradas, as favelas não aguentam mais a violência instalada. Não aguentam mais inclusive ser vítimas do Estado e da sociedade que pelas mãos da polícia que cada dia mata mais nessas comunidades. Os principais alvos: jovens, negros e pobres, como DG. Justiça! Justiça! Justiça! Grita o povo na rua.

USP 7% e Mater Dolorosa, trabalham com a linguagem do documentário. Ambos fazem refletir sobre a questão do negro no Brasil. Trazem para as telas pontos nevrálgicos da questão do racismo, mostrando como este se manifesta na Educação em São Paulo e na Segurança Púbica no Rio. Os dois curtas são bastante diferentes em seus ritmos e cadências: USP 7% é capoeira Angola, resistência e luta; Mater Dolorosa é samba, combate direto, o morro descendo pro asfalto. Ambos sobre a condição do povo negro em duas das maiores cidades do Brasil em plena década de 10 dos anos 2000. E acima de tudo, filmes necessários, se quisermos mesmo acreditar numa sociedade mais justa e democrática para todos.

USP 7% está no Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015
Mater Dolorosa está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Cordilheira de Amora II: inventar para sobreviver

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por Adriana Gaeta –

Cordilheira de Amora II é um filme sobre a reinvenção. Na vila indígena de Amambai, no Mato Grosso do Sul, vive a menina Guarani Kaiowá Carine Martines. Menina brilhante, Carine, seu primo e seus amigos imaginários criam um mundo próprio que nos leva, além de qualquer possibilidade material, para um lugar mais interessante e melhor.

Quintal metáfora do mundo, Carine, a pequena inventora, faz da escassez de brinquedos sua riqueza. Munida de tijolos, de restos de móveis e lixo, a menina cria sua casa própria, motivo de tanto orgulho quanto o de nós adultos quando conseguimos realizar o sonho de ter um teto para chamar de nosso. Pequena brincante, Carine não vai para Marte ou faz alusão à universos estranhos. Ela debruça toda a sua capacidade criativa sobre o mundo real dos adultos. Replicando o seu mundo, ela nos conta um pouco mais sobre ele. E o mundo dos adultos visto por nossa indiazinha é o mundo urbano: salão de beleza, computador, shoppings e pontos de ônibus. O conto de fadas é o europeu: Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos. E é desse registro que o curta nos coloca nesta relação de identificação/estranhamento, dessa menina que vive dia a dia a perda de sua cultura original.

Para entendermos melhor a força do curta, temos que lembrar que os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul vivem um cotidiano de guerra civil. Nos últimos dez anos, as degradantes condições de vida e o confronto entre índios e grandes proprietários de terra se tornaram tão dramáticas que a taxa de assassinatos de Kaiowás, ultrapassa qualquer estatística de países em guerra e é 495% maior que a média brasileira. A cada seis dias, um jovem Kaiowá Guarani se suicida. E esse são dados oficiais.

A Cordilheira/ Xanadu é logo ali. A redenção possível também. Carine não precisa ir muito longe porque sabe intuitivamente que toda a riqueza que precisa está dentro de si. Uma criança/personagem de uma nobreza e força que nós espectadores torcemos para que nunca se perca. Seu “filme invisível” já está sendo feito, é este curta que assistimos. Sua mensagem está sendo dada e nós espectadores, também se tivermos sorte, teremos lugar em seu coração e seremos seus amigos invisíveis, torcendo para que o mundo lúdico de Carine jamais se perca na mediocridade da vida ordinária.

Em um lugar onde resta aos Guarani Kaiowá trabalhar na lavoura de cana ou ser mendigo, o futuro é um não ser aquilo que se é. Assim, dentro de uma realidade tão dura, o escapismo infantil de Carine talvez signifique mais que um brinquedo, talvez também seja uma estratégia de sobrevivência.

Cordilheira de Amora II está na Mostra Brasil Infantil e Infanto-Juvenil. Clique aqui para ver a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Sobre a impotência do ato de filmar

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Mariana Moura –

E se nossa realidade fosse televisionada? Junto com ela, todas as violências que sofremos diariamente? E se os maridos agressores filmassem os momentos “estressados” com suas mulheres? E se, a partir de agora, todo criminoso filmasse sua execução ou agressão? Como seria o mundo se tudo fosse filmado e postado no YouTube ou no Facebook?

É essa pergunta que fica na cabeça depois de sentir e é claro, assistir Este ambiente está sendo filmado?. E tudo foi filmado mesmo. O curta mostra a trajetória de três jovens, depois de um tempo de terem vivenciado um acidente em plena avenida de São Paulo: um homem morto assustou os três baladeiros, que viram o corpo no carro, antes de ir para uma balada, que não foi tão interessante naquela noite.

O curta começa com as lembranças de David e Sarah sobre o ocorrido na noite. Enquanto ouvimos os relatos dos dois, durante a própria gravação sabemos que o terceiro amigo presente na noite é quem está filmando o curta e, por mais que ele não apareça, está presente nas narrações e participa da história, mesmo sem vermos seu rosto ou ouvirmos seu depoimento.

Além da narração – algumas vezes exagerada, pois o narrador poderia falar menos que o público entenderia de qualquer forma a proposta do curta –, também vemos cenas fortes de violência, expostas em pequenos quadros espalhados pela tela, mas que já causam incômodo em alguns espectadores. A narração faz algumas relações das imagens “caseiras” com outras situações de guerra e outros vídeos disponíveis na internet. Sarah fala sobre a questão da impotência que temos diante de uma situação de perigo e logo depois desse depoimento, podemos pensar, ironicamente, sobre essa impotência, o vídeo mostra um homem sendo atacado por leões e logo em seguida, outro vídeo de uma mulher sendo atacada por um homem.

E por que continuamos nessa impotência? Parece que o fato de gravarmos um vídeo nos torna isentos da responsabilidade, já é uma denúncia. O curta fala de vários aspectos, mas um dos mais fortes é essa nossa indiferença diante de situações limite, onde apenas pegamos os celulares e filmamos. Dessa maneira, nos tornamos internautas passivos de um ato violento, porém achando que estamos fazendo um bem para a sociedade com esse registro. E se, ao invés de filmarmos, fossemos ajudar com nossas próprias mãos?

Os dois jovens que vivenciaram a história nos contam com câmera estática, o que faz com que nós, espectadores, mergulhemos em suas expressões, queremos saber o que esse acontecimento despertou em cada um. O filme investe em mostrar essas gravações caseiras: em determinados momentos estou completamente dentro do filme e, em outros momentos, me distancio por conta dos cortes que ele propõe. É como se minha mente fosse o olho da câmera que recebe o depoimento, daqui a pouco corta para o Youtube, volta a mergulhar na intensidade e sensações do David e Sarah, sai novamente e vai pra cima de um viaduto, onde um homem tenta se suicidar. Respiro, me mexo na cadeira, estou incomodada. Até que no final quero muito ver o vídeo narrado durante todo o curta e só vejo o começo dele, não vejo o corpo estirado no chão da grande avenida e isso é ótimo, a imagem fica no meu imaginário, na câmera da minha mente, em mim.

O filme nos arrebata e não apresenta nenhuma resposta ao problema, porque resposta não temos, por enquanto só temos um ponto de interrogação na testa, um aparelho que registra tudo o que não sabemos lidar, a violência, a morte, a impotência. Sempre estamos atrás do olho da câmera, filmando e registrando tudo, o tempo todo, postando e curtindo tudo, sem sentir nada.

Este Ambiente está Sendo Filmado está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

CICLO 7×1 e o legado da Copa

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por Lígia Hsu –

Este ano contamos com filmes produzidos durante a Copa do Mundo de 2014, uma oportunidade única para que cineastas apontassem suas câmeras para o olho do furacão: um evento de alcance mundial em terras tupiniquins. O diretor Gil Baroni soube aproveitar essa oportunidade através do documentário Ciclo 7×1.

Luana, carroceira, mãe de seis filhos, percorre as ruas de Curitiba durante o período da Copa do Mundo recolhendo material para reciclagem, seu ganha pão. A vida dessa mulher passa longe do maior evento do Brasil. Seus filhos estão de férias, ela não. A solução é carregar dois deles pelas ruas da cidade, enquanto a mais velha, uma pré-adolescente, dá conta dos outros três em casa.

A câmera ocupa diversos pontos de vistas: ora é Luana observando a euforia da Copa, ora observa o que Luana e seus filhos observam, ora se afasta e capta Luana interagindo com a cidade, ora se coloca dentro dos bares e mantém Luana à margem dos acontecimentos.

Existe também uma câmera instalada no interior do seu carrinho e essa proximidade revela algumas falas, na maioria corriqueiras, porém algumas bem relevantes, como por exemplo, dizer aos filhos que ninguém vai deixá-los entrar no estádio da Copa. Luana é uma mulher pé no chão e atravessa Curitiba de cabeça erguida fazendo seu trabalho. Observa os jogos nas televisões dos bares sem muito envolvimento, apenas deixa que seus filhos possam aproveitar um pouquinho da festa da qual claramente não foram convidados.

Para quem como eu não via sentido na realização de um evento desse porte frente às necessidades mais básicas e fundamentais do país, o filme vai de encontro a esse sentimento de que a Copa não foi para todos e que no dia seguinte ao fatídico 7×1, a vida e os problemas continuaram os mesmos, assim como Luana que na manhã seguinte sai com seu carrinho pelas ruas de Curitiba atrás do sustento da sua família.

Ciclo 7×1 está na Mostra Brasil 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Universo: Sob a luz do cinema

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por Rafael Dornellas –

Pensemos nas gerações de cineastas que nasceram da cinefilia, da construção de um olhar a partir de um passado sólido do cinema, dos primeiros formados em cursos de cinema de universidades, dos maneiristas pós-modernos, pós-Nouvelle Vague. Para eles a questão não era subverter o que havia sido cimentado até então, não era questionar a mise en scène classicista e desenvolver uma nova encenação. Não era o choque. Essa questão já fora desmembrada e posta à prova por Godard, Rivette e outros “jovens turcos” na França nos anos 60. Não somente o cinema clássico já estava estabelecido, como também o moderno, o novo.

Para as gerações pós modernas, então, antes de posicionar sua câmera era necessário realizar toda uma reflexão acerca do cinema e encarar de frente o peso do passado já estabelecido. A busca pelo segundo grau da imagem, pela ressignificação de um plano, sua hipertrofia e monumentalização, deu luz a um cinema compromissado com a cena, compromissado com o próprio cinema.

No curta metragem Universo, de Nicolas Thomé Zetune, presente no programa Cinema em Curso 2, destinado a curtas universitários, a história e seus conflitos é dada de maneira direta: um encontro entre um homem e uma mulher, suas lembranças, sua paixão, seus obstáculos e sua entrega. Aqui não há preocupação com virtuosismos narrativos, sacadas de roteiro, pistas, recompensas e elucubrações abstratas. A responsabilidade é com a encenação, com a materialidade das interações em quadro. Mais do que homenagem e citação, Universo parte de um passado sólido da história do cinema e se utiliza desses elementos para construir um olhar sobre o mundo e situação que se filma.

São Paulo é filmada sem grandes simbologias e deslumbramentos. Acompanhada por uma trilha sonora operística, a cidade intercala a interação que se dá frente à câmera: seca, rígida, resultado do estranhamento desse encontro abrupto registrado a partir de uma câmera fixa, que desloca o eixo central do quadro em momentos de aproximação do casal, descentralizando a ação e materializando o já citado estranhamento.

Há na interação do casal protagonista o afastamento de um naturalismo que buscaria alguma empatia sentimental com o espectador. A relação é exposta nas falas de forma dura e construída a partir de ações que residem nos gestos – como no momento de suspensão que precede o ato sexual no qual vemos a mão de uma das personagens lentamente se direcionando ao corpo de seu companheiro –, trazendo como pano de fundo a trilha musical intensa que produz um choque à imagem e a circunstância dada.

O rigor formal, o plano fixo e os choques construídos nas elipses apontam para um caminho sintetizador de uma reflexão necessária acerca do próprio cinema, para uma consciência de se encarar o peso de seu passado, lidar com a crise proveniente desse peso e resultar na síntese desses elementos. Um filme na contramão, realizado em um ambiente de cinema universitário que carece de tais reflexões, de um momento atual frágil em que não há compromisso algum com a linguagem utilizada, tomado por filmes vazios, “espertos” e formalmente invadidos por uma estética publicitária estéril em que a beleza imagética se justifica nela mesma e resulta em obras purificadas por um equilíbrio asséptico.

Poderíamos evocar diversos cineastas como possíveis referências para o desenvolvimento do curta em questão. Mas a força de Universo vem justamente da absorção de referências para o desenvolvimento de um objeto específico, da supressão de fetiches baratos e citações gratuitas a favor de um todo sintetizador consciente daquilo que se filma: é a colocação assumida de se realizar um filme que carregue em suas imagens o cinema em si. É saber que se filma carregando nos ombros o seu passado estabelecido. É o compromisso com o cinema.

Universo está na mostra Cinema em Curso 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Janelas sem paisagens: sobre o cinema universitário

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por Giovanni Rizzo –

Sempre é muito interessante para um estudante de cinema como eu acompanhar a mostra Cinema em Curso dentro do festival, ver o que jovens pensam e fazem do cinema. No programa 1, porém, penso que o resultado não foi dos mais satisfatórios e parto do filme Janelas para exemplificar o que concluí daquele conjunto de curtas e do cinema universitário ali representado.

Janelas é um curta-metragem experimental, no qual o protagonista, Marcello, comunica-se com o mundo através de sua janela. Todavia, quando ela apresenta um defeito desta fica sem saber o que fazer de sua vida. A metáfora é a mais clara possível e também opera apenas no plano superficial da obra: aqui o principal é mostrar toda sua “experimentação”. Embalado por uma trilha sonora constituída de Giuseppe Verdi, a voz do Google tradutor e Jorge Ben, a película de Raphael Calheiros está mais preocupada em mostrar seus exageros com a fotografia, utilizando uma iluminação verde e vermelha, um ritmo até certo ponto incomum, onde o eixo está sempre sendo quebrado, e uma direção que a todo instante tenta romper com o tradicional e o esperado.

E se coloco experimentação entre aspas é porque não se vê nada de novo neste curta. Pode-se encontrar este estilo de fotografia, edição e direção em um filme quase nada experimental, mas sim videoclípitico dos anos 90: Assassinos por Natureza, de Oliver Stone. Contudo, no longa americano as cores estranhas da luz e o estilo da mise-en-scène refletiam os sentimentos e anseios dos personagens; aqui, nem isso.

Janelas é um filme que de certa forma fetichiza sua técnica, o fim está nele mesmo e em todos os seus recursos gráficos e estéticos, e em nenhum momento leva em consideração a relação da obra com seu espectador, não esclarecendo as possíveis ideias que esses recursos poderiam conter. Dessa maneira, o filme encerra-se no seu próprio prazer em experimentar – uma masturbação técnica –, fechando-se em si apenas pelo prazer próprio.

De que adianta uma radicalização formal, ainda que tecnicamente correta, sem um embasamento teórico, e talvez aqui seja um dos grandes problemas. O filme não tem um conteúdo que sustente suas extravagâncias formais. A metáfora do mundo com uma experiência mediada é atual e necessária, mas mal abordada, pois o curta trata seu conteúdo com superficialidade: não inclui novos pontos na discussão e tece uma metáfora simples e de fácil compreensão, que se esgota rapidamente.

Aqui poderíamos falar dos demais filmes do Cinema em Curso 1: Look Fashion Filme, Banzo ou Debaixo das Cerejeiras: todos dizem muito pouco, não são filmes que o espectador sai instigado a respeito dos questionamentos levantados na sala de cinema, ainda que possa ficar espantado com a qualidade técnica dos filmes universitários. Mas será mesmo que isso basta?

E verdade seja dita, há um intrigante curta no programa: Pequeno Objeto A, mas de vez em quando deve-se escancarar o que não funciona tão bem, para que essa produção seja discutida e sempre melhorada, já que o cinema em curso é uma amostra do futuro do audiovisual brasileiro. O que parece é que nas escolas de cinema, principalmente em São Paulo (digo isso pois faço parte de uma), há várias câmeras nas mãos dos novatos diretores, mas poucas ideias na cabeça.

Janelas está na mostra Cinema em Curso 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Pequena Aldeia: A Praça Roosevelt em disputa

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por Adriana Gaeta Braga –

O começo do curta Pequena Aldeia já nos dá uma ideia do que será o filme: um argentino narra sua relação com a cidade e com o país. O “olhar do estrangeiro” é menos um estranhamento do que é visto e mais um saudável afastamento brestianiano das mazelas da cidade e de suas personagens.

Com imagens em plonglée (ou seja, sempre vistas de cima para baixo), enquadramento que também reforça o nosso olhar de espectador, aos poucos vamos nos (re)conhecendo nestas pessoas que passam anônimas pela nossa câmera/janela.

A praça Roosevelt talvez seja um dos símbolos mais representativos da “nova” cidade que está sendo almejada. Sua construção foi demorada e controversa, entrando em choque com diversos interesses econômicos, sociais e imobiliários. Antes, uma região desprezada, a Roosevelt se tornou símbolo da reinvenção urbana em uma cidade que empurra para fora de seus espaços públicos o cidadão comum.

Praça que em seu projeto original abrigaria uma floricultura e quiosques para uso comum, a Roosevelt tem, em vez disso, a estrutura ocupada pela Guarda Civil Metropolitana. No curta esses conflitos são expostos, escancarados pelo flagrante de uso do espaço público pelas diferentes tribos que ocupam a praça. Skatistas disputam lugar com os idosos. Coletores de papel são vigiados de perto pela polícia, além de “noias” pelos cantos e também os bêbados restantes da noitada nos bares do entorno.

De certa forma, a praça neste curta representa, em seu microcosmos, tudo o que São Paulo vive e é. A Rooselvelt se tornou um lugar único: praça sem árvores, praça sem sombras, praça ícone do mais árido e cimentado da cidade, a praça só pode realmente merecer este nome pela riqueza das personagens urbanas que nela desfilam e convivem, muitas vezes em pé de guerra. A Roosevelt é uma praça tão mutante como as fases da lua, onde fincar seu lugar “é um pequeno passo para o homem, mas um grande passo para a humanidade”. Espaço de repouso e luta, lugar de encontro e solidão. Lugar de eclipses diários e de supernovas possíveis.

Pequena Aldeia desperta esses sentimentos contraditórios em relação à nossa paisagem paulistana. Em um momento onde o “repensar” da ocupação e do uso do espaço público está tão em alta na cidade (ciclofaixas, fechamento da Paulista aos domingos, minhocão em festa), assistir a esse curta torna-se uma experiência mais que sociológica. Diria mesmo, que nesses tempos de extremismos de polaridades, se torna uma experiência necessária.

Pequena Aldeia está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

De Profundis: o chuvisco corrosivo das memórias

de profundis

por Rodrigo Sá –

“Vivo numa casa colonial na calçada de sol do parque de San Nicolás, onde passei todos os dias da minha vida sem mulher nem fortuna, onde viveram e morreram meus pais, e onde me propus morrer só, na mesma cama em que nasci e em um dia que desejo longínquo e sem dor.”

Memória de Minhas Putas Tristes, Gabriel Garcia Marquez

De certo modo, o curta De Profundis, de Isabela Cribari, parece dar continuidade a uma reflexão bastante comum no cinema pernambucano contemporâneo: a investigação das relações entre o sujeito e a cidade. Ao enfocar tal relação, a obra une-se a um conjunto extenso de filmes como O Som ao Redor (2012), Boa Sorte, Meu Amor (2012), Um Lugar ao Sol (2009), Praça Walt Disney (2011), Em Trânsito (2013) e Eiffel (2008), que confeccionaram sua narrativa com as agulhas da crítica à cidade e seus processos coercivos de urbanização.

No entanto, a peculiaridade do filme de Isabela deve-se ao fato de a abordagem seguir na contramão dos demais filmes citados acima. De Profundis não trata de um problema circunscrito aos limites metropolitanos da capital Recife, mas investiga algo que irrompeu na cidade interiorana de Itacuruba. Isabela – que além de cineasta é também psicanalista – estava incomodada com o fato de a cidade apresentar níveis de depressão dez vezes maiores que a média nacional. Alimentada por esse incômodo e pela crença de que o cinema é um instrumento propício para refletir sobre o tema, Isabela foi até Itacuruba e filmou De Profundis, obra que desponta como um dos destaques da Mostra Brasil do Festival Internacional de Curtas de São Paulo, assim como destacou-se em festivais anteriores como É Tudo Verdade e Mostra do Filme Livre (onde chegou a ser premiado).

De antemão, acentua-se a semelhança do modo da diretora proceder à do filósofo Bachelard (autor do memorável Poética do Espaço), isto é, tomando o espaço como instrumento de análise para a subjetividade. Isso se deve a constatação de que os casos de depressão foram deflagrados após a destruição de Itacuruba Velha para a construção da Barragem de Itaparica. Os vestígios do deslocamento dos moradores para a Nova Itacuruba foram atravessados por contornos psíquicos. Se antes, era exatamente a proximidade dos rios que atraíam os povos indígenas para a região (vide o exemplo dos Pankararus). Agora, a proximidade fluvial desencadeou o processo de migração forçada do povo. O caso torna-se ainda mais gritante quando lembramos das recentes expulsões de povos de suas terras em virtude de grandes eventos como a Copa do Mundo

Assolados pelo afogamento da antiga cidade, uma gama de moradores de Itacuruba passaram a sofrer com os sintomas psíquicos da depressão. Trata-se da densidade das memórias perpetuando o eterno retorno delas à superfície. E com elas, a dor profunda.

As lembranças resistem ao afogamento, pois não se deixam levar pelas correntezas aquáticas, transfigurando-se em correntezas áridas de lembranças indeléveis como aquelas apresentadas na primeira sequência do filme, onde o sertão aparece delineado pelo turbulento vagueio de uma correnteza. Uma grandes belezas do filme está justamente na maneira de metaforizar esse pairar das memórias sobre as águas. Belas imagens de corpos e fotografias flutuando no rio simbolizam isso e dotam o filme de uma beleza alegórica que incrementa a narrativa documental.

Para penetrar na vida íntima dos moradores, o filme faz uso das entrevistas, as quais são marcadas pela tristeza profunda decorrente das alterações do modo de vida ocorridas após a migração. Ademais, o curta rejeita as tradicionais cabeças falantes e investe, em vários momentos, nos planos longos, com a câmera fixa, para retratar o vazio que habita a nova cidade. Enquanto isso, a voz em off dos moradores narra os casos psíquicos e seus evidentes motivos. Os relatos são ressaltados pelos sons de águas submersas que misturam-se às vozes das personagens juntamente com os ruídos das ruas da cidade onde subsistem apenas o vazio e um (quase) silêncio ensurdecedor. Quando são as imagens da água que invadiu a cidade que emerge na tela, é o som estridente de um violino que ressalta o padecimento que boia incansavelmente sobre a água. Assim, o elemento sonoro configura-se como um aspecto de bastante relevância para proporcionar ao curta uma perene atmosfera sufocante, tal como a que ressoa coercivamente entre os habitantes do novo território.

Imagens de arquivos são apresentadas para ilustrar imagens antigas da cidade, ancorando o filme na historicidade dos fatos e solidificando o conhecimento do contexto dos acontecimentos. O fato das imagens terem sido gravadas pelos próprios moradores – ao menos uma parte delas, como percebe-se pela narração que as acompanha – potencializa ainda mais a dramaticidade das imagens e o valor afetivo relacionado a elas. Uma cena onde vibra uma alegria aparente, na qual os moradores dançavam em um baile da região, é acompanhada pelo violino angustiante. Com isso, somos remetidos à noção de que o processo de rememoração é sempre permeado pelo presente, ou seja, de onde se rememora. Logo, ainda que naquele momento os moradores esbanjassem alegria, é a situação sofrível do presente que determina a maneira delas ascenderem, via memória, no presente. Em vista disso, o violino atribui a cena uma temporalidade que coaduna com a do momento que os personagens estão a contar seus relatos.

Uma espécie de anseio pode ser visto no plano em que é apresentada uma casa cuja decoração é repleta de guarda-chuvas pendurados. Talvez, o que os moradores da cidade mais quisessem era uma proteção como essa para não serem atingidos pelo chuvisco uniforme e corrosivo das memórias. Ou então, no limite, fazer o mesmo que aquela moça no último plano do filme: seguir rio a dentro, caminhar para as águas profundas, como se lá no fundo houvesse de surgir um atalho para a cidade antiga, para um tempo que não existe mais.

O escoamento das imagens da cidade submersa com as vozes narrando os acontecimentos é dilacerante. O pouco que resta da parte superior da igreja sobre as águas é consoante ao pouco que resta daqueles moradores, já que uma parte deles ficou no antigo território. Num momento pungente do curta, uma moradora relata um caso de suicídio e afirma não ter explicação para o acontecimento. Todavia, as imagens da cidade submersa não mentem: o desaparecimento da cidade é a única explicação possível.

De Profundis, ao tratar de maneira poética com relances experimentais da especificidade da situação dos moradores de Itacuruba – marcada pelos vertiginosos e surpreendentes casos de depressão – eclode como uma obra que não apenas serve como instrumento de crítica aos processos de migrações forçados, mas também para captar o sentimento da depressão, o qual insiste em não submeter-se à linguagem – nem mesmo a da própria psiquiatria, como dizia Foucault: “A psicologia não tem a verdade sobre a loucura, a loucura tem a verdade sobre a psiquiatria –, mas que por vezes é tangenciado por uma obra de uma profundidade tal como De Profundis. Além disso, em um tempo onde casos de depressão e de violência contra povos nativos é cada vez mais frequente, é imprescindível a construção de uma linguagem que abarque o tema fugindo do convencional. Apenas assim, a obra assume uma magnitude capaz de exceder os limites do comum e tornar-se algo de uma pertinência irrefutável.