Além das colinas sobre ‘As cinzas estão queimando’, dirigido por Lucas Leônidas

Por Beatriz Panico

Em As cinzas estão queimando (2024, de Lucas Leônidas), o espectador é transportado para Córdoba, Argentina, onde a vida de dois irmãos que entregam legumes serve como pano de fundo para uma história sobre amadurecimento, luto e conflitos familiares. Após a perda recente da mãe, Bruno, o irmão mais velho, está prestes a abandonar sua cidade natal e a vida com seu pai abusivo para buscar novas oportunidades, além das colinas que limitam seus horizontes. No entanto, a tensão entre ele e seu irmão mais novo parece ser o obstáculo final antes de sua partida. Por meio de uma narrativa visualmente evocativa, a trama se desenvolve em torno de um cigarro, que serve como metáfora para as dinâmicas familiares que moldam nossas decisões mais importantes.

O cigarro emerge como um poderoso símbolo multifacetado, representando não apenas uma ideia de masculinidade devido à sua forma fálica, mas também capturando a essência da complexa relação entre os dois irmãos. Para Bruno, ele serve como um mecanismo para fugir da dura realidade em que se encontra lhe oferecendo uma pausa das responsabilidades e do peso emocional associado à vida sob o controle de seu pai. 

O cigarro funciona como um emblema de sua autonomia inerente à maioridade, que lhe oferece a possibilidade de deixar Córdoba. Ao longo do curta, o irmão mais novo expressa um desejo crescente de acessar esse símbolo de controle, refletindo sua ambição por uma autonomia similar à de Bruno e realçando uma disparidade nas suas perspectivas de vida devido à diferença na independência dos dois irmãos. Dessa forma, o cigarro se torna um símbolo não apenas da busca por escape, mas também da dinâmica de poder e desejo que permeia o relacionamento dos protagonistas, unindo-os e afastando-os simultaneamente.

Em diversos momentos, o curta recorre a metáforas visuais que evidenciam a construção dos simbolismos presentes ao longo da história. Em determinado ponto, Bruno é retratado lavando sua caminhonete no quintal, enquanto seu irmão o observa pela janela no interior da casa. O enquadramento garante uma oposição entre duas realidades conflitantes: enquanto um irmão apresenta um futuro livre e distante do controle do pai, o outro ainda se encontra preso naquele mesmo local marcado por violência.

Apesar de o elemento feminino estar quase ausente durante a maior parte do curta, a trama recorre à lembrança da mãe simbolizada pelo fogo, que se faz presente também no título da obra. O fogo surge como signo que encapsula a memória e a influência ambígua da mãe falecida nos protagonistas. Representando tanto calor e segurança quanto o potencial para a destruição, as chamas refletem a relação contraditória dos meninos com a figura materna. Sua ausência, marcada pela falta de ação diante do abuso sofrido pelos filhos, deixa uma marca permanente na narrativa. A mãe, que deveria oferecer proteção, se torna um símbolo de abandono e falha. O fogo, portanto, não apenas evoca a memória dela, mas também os sentimentos conflituosos que os meninos nutrem.

Dessa forma, As cinzas estão queimando se configura não apenas como uma narrativa que gira em torno da relação entre dois irmãos, ou um retrato da luta pela autonomia em um cenário de adversidade, mas principalmente como um espelho que reflete as complexas interações entre memória, trauma e crescimento pessoal. 

Biografia: Beatriz Panico é uma estudante no segundo semestre do curso de cinema na FAAP. Apaixonada por leitura e escrita desde cedo, desenvolveu um interesse especial pelas áreas de história do cinema, roteiro e crítica.

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