Aquilo que constrói a protagonista sobre La Asistente, dirigido por Pierre Llanos
Por Thamires Uchoa (Marginalia)
De que são feitos os personagens? De traumas, objetivos, querer e precisar? Qual é a essência de um personagem? Nas primeiras cenas de La Asistente (2024), o diretor e roteirista Pierre Llanos apresenta uma personagem que aparenta ser uma pessoa comum. Clara, interpretada por Lllari Pérez, é uma menina de 13 anos trabalhando como assistente na clínica informal de odontologia de seu pai. Em meio ao caos da cozinha de um restaurante peruano-chinês no horário de pico, conhecemos Clara. O breve diálogo entre os personagens nos mostra mais características: ela parece não se intimidar com o mundo ao seu redor. Em seguida, vemos o catalisador da narrativa, onde a protagonista é tirada do seu mundo comum. A paciente sem horário marcado, Antonia, está ali diante dela, pedindo informação. Não é sobre extração de dente e, sim, sobre o que o filme trata: a procura por um aborto clandestino.
Clara tem a responsabilidade de marcar consultas, corrigir erros gramaticais do pai e organizar os instrumentos de trabalho. Só que não é nessa rotina que ocorre a sua evolução. Podemos pensar que trabalhar desde cedo pode ser transformador, mas não é o trabalho que transforma, e sim as condições impostas. Nesta história, a condição era a jovem de 20 anos, que estava preste a realizar um aborto. Os caminhos das duas não serão mais os mesmos, especialmente o de Clara.
Poderíamos focar na temática do aborto, na condição da clandestinidade que muitas mulheres enfrentam. Mas a narrativa nos mostra a dimensão do aborto não pela perspectiva da paciente, mas sim pela de uma menina assistente. O que nos leva a pensar: em que momento a sociedade nos ensina as condições de ser mulher?
A sua curiosidade e insistência em permanecer no consultório, mesmo com o seu pai pedindo para sair, foi o momento mais lúcido sobre a sua transição para uma nova perspectiva. Clara poderia se recusar a auxiliar diante do momento de complicação da operação, mas continuou — afinal, ela era assistente. E, ali, tentando ser rápida, por conta da urgência da situação, ela tenta extrair o porquê disso. Esse é o risco de ser mulher? A paciente carrega essa simbologia do mundo externo. Este lugar em que eu e você vivemos, o mundo em que levamos mulheres a sangrar, muitas das vezes até a morte, na clandestinidade.
O roteiro do curta-metragem chama atenção pela abordagem de não tornar o aborto um plot twist para trama, já explicitando desde o início o que vai ocorrer ao longo da narrativa. O que gera espaço para explorar a perspectiva de Clara diante desta situação. A fotografia compõe esse ponto de vista, posicionada sempre para acompanhar a protagonista. Ela nos indica o lugar para onde se deve olhar — para Clara. Os espectadores são guiados por uma direção sutil e respeitosa, que utiliza, sem qualquer dificuldade, a linguagem do drama.
Com o peso de carregar o saco de lixo ao seu destino no ato final do filme, notamos que o barulho que antes habitava a cozinha agora está dentro de Clara. A sua inocência foi rompida. O escritor Kurt Vonnegut diz para fazer coisas terríveis com os personagens inocentes, para que os outros possam ver do que eles são feitos. Ao final do curta, me questiono. Este é o mundo que lhe espera? Amanhã terá outra paciente? Conseguimos sentir as emoções de Clara. Toda essa situação é maior do que ela pode imaginar. Mas essa urgência está na imensidão externa, para ela não é o momento de pensar nisso, mesmo que tente, pois o próximo paciente já está à espera.
Biografia: Thamires Uchoa, conhecida como Marginalia, é Assistente de Roteiro e Desenvolvimento e Roteirista iniciante. Começou a sua carreira como fotógrafa do movimento Hip Hop e trabalhou como assistente de direção em séries brasileiras e publicidades. Atualmente, dedica a sua carreira às narrativas ficcionais e documentais. Escreveu e dirigiu os curtas-metragens “Daria um filme” (2018) e “Aos olhos de uma criança” (2020). Recentemente, desenvolveu uma série documental que aborda o tema da escravidão.