Mamá, yo quiero mamá sobre Feiura Comovente, de Ultra Martini

por Luan Souza

Ouvindo o clamor por ajuda na voz de Ian Curtis, Mark Fisher percebe em suas letras uma inevitável descrença do futuro, o presente é uma desgraça, então não há nada o que esperar de melhor pela frente. No mundo desgraçado de Ultra Martini, anjos são alçados ao céu que não existe enquanto as ruas de São Paulo servem de fuga para lugar nenhum, o punk entorpece a tela e vive com o desgraçado ali. 

Pela voz de um narrador punk que vive em um precipício confuso quanto ao que é estar vivo, Feiura Comovente esbarra vários conceitos entre si: nada realmente é concreto. Da marra de um punk, que vai sendo quebrada ao compasso que ele admite o mundo para si, ao “quadro que não existe”, pois esse nunca acaba e percorre tudo o que seria fora dele. Nessas coisas mutáveis, vielas são abertas para que certa redenção pessoal tenha para onde ser escoada.

Os comentários e devaneios iniciais de revolta vão se tornando uma presença etérea, que cada vez mais conversa consigo mesma. Essa que se mostra ao que há e sem temor do que pode vir. Vamo tirar a prova de que sou eu mesmo então, conte-me aquela história, se ouve então uma respiração profunda e ali se demarca que não tinha nada a perder ou esconder, já havia acontecido tudo de ruim mesmo.

Daqui tudo soa como outro clamor, que alguém segure minhas mãos de encontro ao fim desse mundo. Mas o mundo não acabou ainda, os anjos são puxados aos céus, pois já não conseguem mais levantar asas e lamentam para uma figura santa sem nome, contam dos pecados da mãe e a morte do homem que esses trouxeram. Dentro desse caminho de transmutações do filme, algo que não se perde é o mundo desgraçado, que não acaba, apenas se torna menos insuportável.

Uma virtuosa homenagem ao cinema de David Lynch sobre Malmequer, de Maria Julia Gonçalves

por Lucas Detoni

David Lynch, um dos maiores diretores do cinema moderno, nos deixou em janeiro de 2025, mas o seu legado e estilo cinematográfico continuará existindo. Ora por imitadores baratos (sim, é possível), ora por homenagens e referências às suas mais belas obras.

Em “Malmequer”, curta-metragem dirigido e roteirizado por Maria Júlia Gonçalves, temos um exemplo recente da melhor forma de usar as referências Lynchinianas. Malmequer é um surto coletivo a partir de uma premissa simples, assim como todos os filmes de David Lynch.

Malmequer conta a história de Eva, uma jovem mulher que vai conhecer pela primeira vez os pais do seu namorado. Eva está tensa pela situação (ela aparece em cena jogando “bem-me-quer/ mal-me-quer com uma flor de cravo antes de sair do carro, e também está desesperada para ser aceita (ela leva uma garrafa de vinho, mas esquece de checar se seus sogros bebem). É um peso que Eva carrega em seus ombros, como se sua felicidade (e a do relacionamento) dependesse de passar uma boa impressão nesse primeiro encontro. Eva mal respira, mal fala, mal anda (a cena em que ela vê os sogros pela primeira vez é sublime). Mas o “mal” ainda estava por vir… E seguir contando o filme seria um erro imenso.

É um filme cheio de qualidades técnicas, que vão da direção de arte (de encher os olhos, ricas em detalhes e vida, concebida por Gabriel Perón e Julia Meirelles y Araújo) a direção de fotografia (estupenda, feita pela dupla Pedro Morales e Matheus Pires), passando pela montagem (também feita em dupla, Nalu Formagio e Douglas Dias – um viva para os cortes sutis) e o som e trilha (ambas magníficas feitas por Beto Buzzi). O filme ainda encontra força na interpretação angustiante e espetacular de Bella Camero (de “Marighella” e “Aumenta que é Rock´N´Roll”), que segura o filme com olhares penetrantes e segurando a respiração.

Malmequer é um belíssimo curta-metragem, dirigido com pulso firme e talento impressionantes, que prova que quando se bebe diretamente da fonte, o resultado pode ser tão bom quanto o seu criador.

Cinema com significativa importância cultural sobre Mostra Brasil 1 – Memórias e Metalinguagens

por Erick Aragão Pradela

Filmes ao mesmo tempo que entretém, reservam memórias. Cada filme guarda em si um gesto de preservação: de uma paisagem, de um rosto, local afetivo ou de uma inquietação coletiva. Ele organiza a memória cultural, transformando experiências particulares em herança comum. É por essa ligação entre criação e lembrança que esta mostra encontra sua alma.

Entre_LatidoseRuídos: Filmado em Super 8, faz da materialidade da película a evocação da memória. Em diálogo com Arlindo Machado, especula o valor que o cinema tem (ou não tem) em sua vida, refletindo a relevância da arte enquanto experiencia e legado.

Homenagem a Kiarostami: Adota a estética do cineasta iraniano para elevar a leveza do humor e o prazer de contar histórias de amigos. Nesse clima, Jean-Claude Bernadet transmite ternura ao falar de Eduardo Coutinho. Dois gigantes do nosso cinema, em uma amizade unida por afeto e lembrança.

Dois Nilos: Reflexão narrada pelo cineasta Afrânio Vital sobre a inexistência de seus filmes e a dissipação do cinema brasileiro. Com elementos performáticos descreve um cinema fantasma: em paralelo com a história oficial do cinema; e com aquilo que deveria existir e não existe mais. Com espaços de cinema ocupados, a mente intensa de Afrânio percorre as ruas sem nenhum reconhecimento, denunciando o esquecimento e a precariedade do patrimônio cinematográfico.

Video Connection: Contraponto à perda, registra a raridade de uma locadora nos dias de hoje. Em poucos planos estáticos, captura o deslumbramento e incredulidade de quem circula no espaço. Ao mostrar que um único filme pode marcar profundamente um indivíduo, reafirma o impacto cultural e afetivo do cinema

Desconstruindo Lene: Em uma brincadeira do ato de fazer filmes e abordagem temática, jovens filmam uma senhora, na presunção de educá-la e extrair excelência a partir disso. O humor surge especialmente pela montagem para revelar sua verdadeira mensagem. É divertido e cheio de energia.

Filme Sem Querer: Confirma o talento de Lincoln Péricles: é um filme bem polido dentro do contexto de sua obra, reiterando o tema da sua realidade presente: do cinema como ofício, paixão e esperança. Na realidade brasileira, onde não há propriamente uma indústria, os personagens negociam o acesso a um edital. Mas de forma metalinguística, Lincoln os filma imersos na experiência, expondo a paixão e o conceito do desenvolvimento de uma linguagem própria, irrevogável e desvinculada de qualquer outra estrutura. Celebra a inventividade e as novas formas de abordar o cinema, elementos essenciais para manter a arte viva.

A mostra cumpre sua proposta: cada curta é uma peça do mosaico onde a preservação e reflexão se entrelaçam. Entre nostalgia, crítica e invenção, constrói-se um cinema que se questiona, se reconhece e se projeta para o futuro.

A Mensagem Através da Estética sobre Ouça-a com seus Olhos, dirigido por Ting Chi-Wen

Por Thiago Barboza

Uma viagem atribulada entre Rio e São Paulo me trouxe a oportunidade de viajar para bem mais longe em menos tempo. Ouça-a com seus Olhos faz parte da mostra de curtas Taiwan – A Geração Pós-90, com o intuito mostrar a visão e os anseios desses novos realizadores pós-década de 90.

É importante entender a razão deste “Pós-90” ser destaque para a mostra de Taiwan. Durante a última década do século 20, a província testemunhou um movimento cinematográfico conhecido como a “Nouvelle Vague de Taiwan”. Este movimento se utiliza do termo em francês que significa “Nova Onda”, em referência ao cinema francês da década de 60. 

A Nouvelle Vague original e a de Taiwan possuem similaridades, principalmente na proposta de alterar a forma de se pensar o cinema produzido na região, trazendo identidade própria ao movimento. A realização taiwanesa foi fundamental para expressar as características e identidades de seus realizadores e da região, buscando fugir da hegemonia de um cinema chinês mais tradicional. Ele influenciou não só os filmes da época, como também alguns mais atuais.

Um dos filmes apresentados é Ouça-a com seus Olhos. A produção de 2023, dirigida por Ting Chi-Wen, bebe da fonte de seus antecessores, como Tsai Ming-Liang e Hou Hsiao-Hsien. Mesmo com pontos em comum como as tomadas longas e grande uso de cenas externas, a produção ainda assim traz atualidade em sua linguagem. Destaca-se a edição do curta, muitas vezes acelerada na pós-produção, com o intuito de traçar um paralelo entre a velocidade da sociedade contemporânea e a necessidade de debater o ponto principal do filme: em sua trama, acompanhamos um grupo de mulheres que buscam lidar com uma questão, infelizmente, cada vez mais comum em nossa sociedade: o assédio.

Tanto a Nouvelle Vague de Taiwan como o movimento pós-90 tem em seu âmago a crítica social, mudando apenas as formas de abordagem. A abordagem do curta vem de seu roteiro, com humor ácido e diálogos que parecem sair do dia-a-dia, assim adicionando um tom pertinente ao curta. Ainda que o roteiro dê momentos de humor para as personagens, o tom sério da abordagem temática não desvia o filme do acerto.

A obra também utiliza de uma linguagem visual híbrida, com planos bastante longos e abertos. Seja em cenários fechados como um escritório ou um parque, a escolha desses planos mais duradouros faz com que o espectador se sinta parte da história, quase como um observador dentro de cena. Com a câmera estática, o filme às vezes evoca a linguagem do teatro em sua direção de atores e reforça o papel de quem assiste como observador.

Na equação dessas ferramentas, o resultado é convidativo. O espectador é convidado a fazer parte da realidade taiwanesa, imerso entre paisagens vibrantes, diálogos frenéticos e questões contemporâneas.

Ouça-a com seus Olhos já nos traz a dica em seu título. À medida em que vamos desvendando suas escolhas criativas, o curta se torna uma reflexão pertinente sobre um tema universal, utilizando do cenário e da realidade da sociedade taiwanesa. Um recorte geográfico específico, mas que reverbera para todos que têm a sorte de assistir a este olhar, através da lupa de Ting Chi-Wen.

Biografia: Thiago Barboza, carioca de 29 anos, é estudante de cinema. Desde os meus quinze anos escrevo sobre filmes, e de um tempo para cá tomei a decisão de tornar meu hobby em algo mais sério. Entusiasta do cinema oriental com foco na China e Taiwan, este apaixonado por gostar de filmes tenta instigar seu leitor a enxergar o lado positivo do cinema.

Aquilo que constrói a protagonista sobre La Asistente, dirigido por Pierre Llanos 

Por Thamires Uchoa (Marginalia)

De que são feitos os personagens? De traumas, objetivos, querer e precisar? Qual é a essência de um personagem? Nas primeiras cenas de La Asistente (2024), o diretor e roteirista Pierre Llanos apresenta uma personagem que aparenta ser uma pessoa comum. Clara, interpretada por Lllari Pérez, é uma menina de 13 anos trabalhando como assistente na clínica informal de odontologia de seu pai. Em meio ao caos da cozinha de um restaurante peruano-chinês no horário de pico, conhecemos Clara. O breve diálogo entre os personagens nos mostra mais características: ela parece não se intimidar com o mundo ao seu redor. Em seguida, vemos o catalisador da narrativa, onde a protagonista é tirada do seu mundo comum. A paciente sem horário marcado, Antonia, está ali diante dela, pedindo informação. Não é sobre extração de dente e, sim, sobre o que o filme trata: a procura por um aborto clandestino. 

Clara tem a responsabilidade de marcar consultas, corrigir erros gramaticais do pai e organizar os instrumentos de trabalho. Só que não é nessa rotina que ocorre a sua evolução. Podemos pensar que trabalhar desde cedo pode ser transformador, mas não é o trabalho que transforma, e sim as condições impostas. Nesta história, a condição era a jovem de 20 anos, que estava preste a realizar um aborto. Os caminhos das duas não serão mais os mesmos, especialmente o de Clara. 

Poderíamos focar na temática do aborto, na condição da clandestinidade que muitas mulheres enfrentam. Mas a narrativa nos mostra a dimensão do aborto não pela perspectiva da paciente, mas sim pela de uma menina assistente. O que nos leva a pensar: em que momento a sociedade nos ensina as condições de ser mulher? 

A sua curiosidade e insistência em permanecer no consultório, mesmo com o seu pai pedindo para sair, foi o momento mais lúcido sobre a sua transição para uma nova perspectiva. Clara poderia se recusar a auxiliar diante do momento de complicação da operação, mas continuou — afinal, ela era assistente. E, ali, tentando ser rápida, por conta da urgência da situação, ela tenta extrair o porquê disso. Esse é o risco de ser mulher? A paciente carrega essa simbologia do mundo externo. Este lugar em que eu e você vivemos, o mundo em que levamos mulheres a sangrar, muitas das vezes até a morte, na clandestinidade.

O roteiro do curta-metragem chama atenção pela abordagem de não tornar o aborto um plot twist para trama, já explicitando desde o início o que vai ocorrer ao longo da narrativa. O que gera espaço para explorar a perspectiva de Clara diante desta situação. A fotografia compõe esse ponto de vista, posicionada sempre para acompanhar a protagonista. Ela nos indica o lugar para onde se deve olhar — para Clara. Os espectadores são guiados por uma direção sutil e respeitosa, que utiliza, sem qualquer dificuldade, a linguagem do drama. 

Com o peso de carregar o saco de lixo ao seu destino no ato final do filme, notamos que o barulho que antes habitava a cozinha agora está dentro de Clara. A sua inocência foi rompida. O escritor Kurt Vonnegut diz para fazer coisas terríveis com os personagens inocentes, para que os outros possam ver do que eles são feitos. Ao final do curta, me questiono. Este é o mundo que lhe espera? Amanhã terá outra paciente? Conseguimos sentir as emoções de Clara. Toda essa situação é maior do que ela pode imaginar. Mas essa urgência está na imensidão externa, para ela não é o momento de pensar nisso, mesmo que tente, pois o próximo paciente já está à espera. 

Biografia: Thamires Uchoa, conhecida como Marginalia, é Assistente de Roteiro e Desenvolvimento e Roteirista iniciante. Começou a sua carreira como fotógrafa do movimento Hip Hop e trabalhou como assistente de direção em séries brasileiras e publicidades. Atualmente, dedica a sua carreira às narrativas ficcionais e documentais. Escreveu e dirigiu os curtas-metragens “Daria um filme” (2018) e “Aos olhos de uma criança” (2020). Recentemente, desenvolveu uma série documental que aborda o tema da escravidão. 

O Cinema que Não Agoniza sobre Este Cinema tão Augusta, dirigido por Fábio Rogério

Por Renan Galcci

A sala de cinema é um espaço de encontros e parte essencial da experiência cinematográfica. Os cinemas de rua, com suas curadorias especiais pensadas fora do circuito comercial e por um espaço único, direcionado à sua própria atividade, são também possibilidades de se pensar o cinema e estimular nosso amor pelos filmes. Assim como o cinema vem se transformando desde sua criação, os cinemas de rua também se reinventam e lutam pelo direito de pertencimento na cidade.

Este Cinema tão Augusta nos convida a passar pelo último dia de funcionamento do anexo do antigo Espaço Itaú de Cinema (atual Espaço Augusta de Cinema), após uma longa batalha entre o espaço de exibição e a construtora Vila 11, dona do imóvel, que pretendia construir um prédio no local. A perspectiva do diretor Fábio Rogério é de mostrar o cinema como um espaço importante para o desenvolvimento cultural do centro de São Paulo, e evidenciar a importância do cinema de rua como parte da preservação do audiovisual brasileiro. 

A referência ao curta Esta rua tão Augusta (1968, Carlos Reichenbach), não se limita apenas ao título do filme; ela também se manifesta na perspectiva participativa do diretor em cada decisão artística. A ironia está presente na história do centro de São Paulo, caracterizada por suas inúmeras transformações, incluindo a especulação imobiliária, uma ameaça constante. A narrativa é estruturada a partir de entrevistas e imagens do último dia de funcionamento do local. O espaço de exibição divide o protagonismo da narrativa com alguns de seus funcionários, que compartilham histórias de dedicação ao espaço, e a escolha dos planos é pensada justamente para fazer essa conexão. Essas escolhas permitem um olhar íntimo para essa tentativa de apagamento, e a resistência surge exatamente dessa sensação de insegurança e da importância da preservação da memória do espaço.

A experiência torna-se ainda mais valiosa por sua exibição no atual Espaço Augusta de Cinema, durante a 35ª edição do Kinoforum – Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, após esse momento de incerteza retratado no curta. O filme foi apresentado na mostra “Fina Flor Marginália” que, assim como sugere o nome, celebra a arte independente nacional. Com uma sessão lotada, o espírito da força audiovisual brasileira se fez presente.

Biografia: Renan Galcci é  estudante de Produção Audiovisual e apaixonado pelo cinema. Ele acredita na arte como uma maneira de expressar seu interior através das imagens e sons. Desenvolve seu lado artístico entre a escrita de roteiros e direção, e pesquisa sobre cinema.

Imagens que recuperam a identidade sobre FLUXO – O filme dirigido por Filipe Barbosa

Por Nathália Ract da Silva

 Fluxo – o Filme começa com uma paisagem vista de cima dos prédios de habitação popular localizados na Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo, distrito conhecido como o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina. Dirigido por Filipe Barbosa, o  filme conta a história de Fábio, jovem negro de 22 anos, e resgata suas memórias entre os amigos Joel e Gabriel, que se conhecem desde a época da escola. É dia de baile da Sorte! São quase seis horas e Fábio está em seu quarto, deitado na cama, fumando cigarro. Na mesa de cabeceira está o cinzeiro e um porta-retrato que preserva uma fotografia com sua ex-namorada. 

Depois de ser convocado pelos amigos, Fábio se arruma para ir ao baile da Sorte: abre o guarda-roupa e veste sua camisa da Lacoste, estampada com a bandeira da África do Sul. No filme, a moda periférica é um tema importante, que valoriza a cena dos bailes funks enquanto referência de estilo, mesclando peças de roupa atuais e também peças antigas, que marcaram época. 

No caminho para o baile, Fábio enfrenta uma série de desafios que o levam a confrontar seus sentimentos após o término do relacionamento amoroso. A música assume papel fundamental, e  o som aumenta progressivamente no momento em que eles chegam no fluxo. Na tela, algumas fotografias captadas são sobrepostas aos efeitos visuais glitches e aos efeitos sonoros da música “Brota na Tiradentes” do Mc MN do DJ Biel Mix. Na sala do CineSesc, recebemos o som não somente com os ouvidos, mas com o corpo inteiro, no momento em que “É o fluxo” começa a tocar — música que carrega o nome e a presença especial do Mc Nego Blue na obra audiovisual. 

No filme, a dança é um recurso narrativo e expressivo da juventude. O filme nos lembra dos passinhos que marcaram o movimento funk e dominavam as batalhas de dança que aconteciam no horário do intervalo da escola — momento em que os estudantes formavam uma roda e dançavam livremente, muitas vezes sem música, apenas com os gritos e as palmas das mãos dos jovens reunidos. A câmera acompanha os movimentos e escolhe enquadrar  os pés em destaque, o que parece convidar o corpo do espectador para dentro da batalha de dança.  

Durante o baile, quando Fábio finalmente consegue ‘apaziguar a mente’, curtir a presença dos amigos e se aproximar de Daniele (uma garota da época da escola na qual está interessado), somos interrompidos com cenas de violência e terror. 

O filme conduz o espectador a um olhar crítico, a partir de imagens de arquivo que foram registradas no mês de Dezembro de 2019 em Paraisópolis, na periferia da Zona Sul da cidade de São Paulo. Somos impactados por imagens de uma câmera de celular que registra a intervenção da Polícia Militar no baile funk, ação que provocou a morte de nove jovens, dentre outros feridos. O caso ficou conhecido como o “Massacre de Paraisópolis”, e é considerado a mais letal intervenção policial na  cidade de São Paulo, segundo relatório do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Barbosa denuncia a violência policial contra os bailes funks e compartilha com o espectador uma homenagem aos familiares dos jovens Mateus dos Santos, Bruno Gabriel dos Santos, Luara Victoria, Marcos Paulo, Eduardo Silva, Denys Henrique Quirino, Dennys Guilherme dos Santos, Gustavo Xavier e Gabriel Rogério, mortos durante o massacre. 

Após a exibição do filme na Mostra Brasil intitulada “Somos Embarcação”, do Kinoforum – Festival Internacional de Curtas de São Paulo, o diretor conta que existiam poucos registros que tornassem possível retratar o baile funk e oferecer essa visibilidade negada historicamente. Fluxo – O filme é um espaço de disputa de narrativa a favor da cultura e memória do funk. Ao relacionar a imagem e o movimento funk à construção da identidade, Filipe Barbosa demonstra a importância que as imagens têm para a visibilidade da juventude negra e periférica.

Não foi possível estrear o filme no território que foi produzido, conforme conta o diretor. A equipe planejou o lançamento oficial do filme no dia 21 de abril de 2024, dia do aniversário da Cidade Tiradentes, para que seus habitantes pudessem assistir. No entanto, a exibição foi impedida pela Polícia Militar. A instituição acusou a equipe do filme da intenção de vender armas e drogas, e interrompeu o evento. A acusação foi espalhada, inclusive, no programa do Cidade Alerta e do Brasil Urgente. “Era só uma exibição do filme”, Filipe conta, expondo como mesmo quando a quebrada busca se apresentar por meio do cinema, atravessa a mesma questão de violência que procura denunciar.  

Biografia: Nathália Ract da Silva (Nara) é moradora da Zona Norte de São Paulo. Possui graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (2022). Atua como pesquisadora, roteirista e fotógrafa. Em 2019, produziu o documentário Chile de Olhos bem abertos via Lei Aldir Blanc/São Paulo. Seu primeiro roteiro de curta-metragem, Água Bonita de Maíra (2023), foi selecionado no programa Meu Olhar – Filmes curtos feitos pela Juventude Periférica de São Paulo. 

As palavras valem um escrito sobre Uma Promessa Para o Mar de Hend Sohail

por Michele Nadima

Quão longe estamos dispostos a ir para honrar as nossas palavras? Uma promessa para o mar nos leva diretamente a esse questionamento e mostra como cada jornada é singular e tem o seu próprio peso. 

Acompanhamos o protagonista do curta em uma missão que pode ser a mais importante de sua vida. A sinopse é sem rodeios: durante os preparativos do funeral de sua mãe, o jovem Zayn decide roubar o seu corpo. O que em um primeiro olhar pode soar estranho, percebemos ir além de um sequestro. É uma história introspectiva, que carrega as suas complexidades, mas que é apresentada de maneira sútil. Com seus encontros e desencontros, serve de reflexão sobre como fechamos o ciclo quando uma pessoa querida se vai. É uma trama envolta em detalhes que dizem muito sobre a jornada de Zayn e seu único companheiro – um cachorro caramelo que habita as cidades do Egito, que por um acaso é encontrado pelo caminho e acompanha o garoto até o fim.

Seguimos estrada afora com eles em uma caminhonete vermelha e percebemos que o plano de roubar o corpo da mãe, na verdade, é uma medida que busca ser sagrada. Zayn quer levar o corpo de sua mãe ao encontro do mar. E a ingenuidade do garoto é tocante, porque mesmo com a morte da mãe, ele ainda quer ter a chance de realizar seu desejo. Não é por acaso que podemos ver cartões-postais com imagens das pirâmides, girassóis e praias coladas timidamente na parede do quarto onde a mãe está sendo velada.

Na cultura árabe, o pedido das mães é sagrado e é este objetivo que o rapaz carrega, sem se distanciar do seu propósito. Como se fosse a última coisa que ele deve fazer em sua vida.

Em dado momento do filme, podemos ouvir a música Mawoud, na voz de Abdel Halim Hafez – um dos cantores mais populares dos anos 50 e 60 no Egito. Mawoud, em árabe, significa “prometido”, e na cena da loja de conveniências ouvimos o trecho que aborda “o caminho que ali está seguindo e onde vai dar”. É uma escolha muito bem feita da diretora Hend Sohail, que confirmou, após a sessão no Festival Kinoforum, o peso exercido pela música. Ela reforça que o propósito de Zayn é emocional, e nesse momento passamos a torcer por ele.

O filme carrega uma dualidade entre o objetivo de Zayn e as pessoas com quem nos deparamos no caminho, ao longo de nossas vidas. Não é à toa que o cachorro surge por meio de um desses encontros e o segue rumo ao oceano. Seja para o bem ou para o mal, o que está no nosso propósito não se desvia. Zayn se depara com assaltantes que, ao perceberem que ele carrega a sua mãe, recuam e dão passagem à sua jornada. A forma como o filme constrói o laço entre espectador e protagonista é divina, pois o enredo nos tira de um lugar estranho, para posteriormente nos cativar, à medida em que acompanhamos o garoto nas estradas da pequena cidade de Minya. 

Ao final, o cenário conclui o filme de forma sublime: Zayn contempla o mar ao lado do caixão e seu cachorro e a promessa é revelada em um cartão-postal que o jovem deu à mãe. Zayn finalmente fecha o ciclo do luto por sua mãe, cumprindo uma promessa antiga. Isso dialoga com o público quando olhamos para os nossos laços, tradições e promessas e refletimos sobre em que medida estamos dispostos a ir a fundo para realizá-las.

Certamente, essa é a grande sacada do curta, pois em uma mostra sobre histórias líquidas, na qual os filmes tratam da fluidez da vida, Uma promessa para o mar rouba a cena com uma história tocante e com tamanha força cultural. O filme nos convida a contemplar costumes e tradições que destoam da nossa realidade. As promessas foram feitas para serem cumpridas e Zayn vai até o fim sem muito contestar.

Biografia: Michele Nadima é roteirista, documentarista e produtora audiovisual. Bacharel em Rádio, Televisão e Internet, vem atuando no audiovisual desde 2013 em projetos publicitários e independentes, com o olhar apurado em diversas vertentes artísticas. Dirigiu o documentário Raízes, que fala sobre a produção do curta-metragem Brêu (2024) e os moradores locais da cidade de Lagoa Formosa – MG.

O Telhado da Elite sobre Dependências, de Luisa Arraes

Por Menato Relo

O curta-metragem Dependências (2023, de Luisa Arraes) é uma sátira bem-humorada que conta a história de uma família abastada de classe alta, com gosto brega, composta por uma mãe e seus dois filhos. Prestes a receber em sua casa colegas do escritório, incluindo o  novo presidente da empresa, em um jantar em que pretende reforçar sua candidatura à vice-presidência, tudo foge ao controle com a inesperada ausência de Dadá, a empregada da casa.

Na falta de conhecimentos básicos de sobrevivência, a narrativa se desenrola em meio à histeria dos personagens. A direção de atores é rica, teatral e altamente performática, com expressões exageradas que, no entanto, não provocam distanciamento do espectador, pois estão perfeitamente situadas no contexto da comédia do absurdo. A fotografia, assim como a direção de arte, é notavelmente bem construída, com uso em algumas cenas de luz natural e planos cuidadosamente elaborados, além de movimentações de câmera que acrescentam dinamismo à narrativa. A escolha de objetos na cena, como o quadro Colheita de Djanira da Motta e Silva, enriquece a mise-en-scène, acrescentando camadas de significado visual que complementam a atmosfera do filme, e resulta em uma experiência cinematográfica visualmente rica e com uma narrativa envolvente. Embora tenha uma proposta simples em sua execução, o filme é visivelmente bem estruturado.

A história diverte ao explorar a mediocridade dos personagens financeiramente privilegiados, cumprindo seu papel de crítica social, ao mesmo tempo em que mantém o público cativado do início ao fim da narrativa. Um dos momentos mais significativos em relação à ausência da empregada é quando a filha entra no quarto de Dadá e observa desenhos e fotos suas e do irmão colados na parede. A cena em que a filha se deita na cama, como um bebê à espera de consolo, revela muito sobre a dinâmica da família e sobre a importância da personagem ausente.

Trata-se de um filme tecnicamente refinado, e pensado com cuidado em sua execução, com uma construção sólida e rostos familiares, de modo que parece feito para ser um sucesso. O último quadro do filme é uma poesia pichada no muro, de autoria do dramaturgo Bertolt Brecht: “Perguntas de um trabalhador que lê; Em cada página, uma vitória, mas quem preparava o banquete? Tantas histórias, tantas questões”. Embora a escolha da frase seja quase perfeita ao contexto do filme, ao optar por uma referência estrangeira, o filme parece cair na armadilha de subestimar as vozes locais, que são igualmente, senão mais, capazes de capturar as complexidades e contradições do contexto nacional. Essa escolha, ainda que coerente dentro da proposta da obra, deixa uma sensação de que algo essencial foi deixado de lado, perdendo a oportunidade de se conectar de forma mais profunda com o público brasileiro.

Biografia: Menato, cineasta e multi-artista nascido e criado na periferia de São Paulo, descobriu sua paixão pelo audiovisual em 2013. Com uma formação robusta que abrange animação, fotografia e especializações em pós-produção, ele tem deixado sua marca em projetos significativos como a série “AFRONTA!” e os documentários “Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo” e “Motriz Roda de Afeto”. Atualmente, Menato atua na indústria audiovisual e publicitária, colaborando com marcas e projetos de prestígio, sempre com um olhar atento à representatividade e um compromisso inabalável com a qualidade.

Delicadeza Intimista sobre Vento Dourado, dirigido por André Saito

por Mel Emiliano

Os desafios da senilidade e a intimidade nas relações de um indivíduo que se encontra no limiar entre a vida e a morte são temas retratados no curta metragem Vento Dourado (2023). Dirigido por André Saito e produzido pela MyMama Entertainment, o filme é uma docuficção que revela a vida de Haruko Hirata, avó materna do diretor, e a sua relação com Sumiko, sua filha.

André Saito é um diretor e produtor nipo-brasileiro que tem buscado explorar sua ascendência japonesa. Saito encontrou no cinema uma forma de retratar suas descobertas, e realizou uma trilogia de curtas-metragens que conta com as obras De Coração a Coração (2022), Vento Dourado (2023) e Amarela (2024). Esses filmes, apesar de contarem histórias distintas, retratam relações interpessoais de pessoas de ascendência asiática vivendo no Brasil. O cineasta esteve recentemente no Festival de Cannes com seu último trabalho Amarela, onde afirmou estar contente por representar o Brasil e também feliz por ser um filme realizado majoritariamente por pessoas de origem asiática.

Vento Dourado é ambientado em volta do caseiro cotidiano de Haruko e Sumiko – mãe e filha que, apesar de viverem no Brasil, ainda possuem fortes laços com a cultura do país de origem. Sumiko é responsável por todas as tarefas domésticas, desde se encarregar pelos cuidados de Haruko até realizar funções para prover o alimento da família. Ao decorrer do curta, as personagens revivem fantasmas de seus passados, principalmente após a descoberta de que Haruko não tem muito tempo de vida.

O curta-metragem utiliza planos longos e delicados como forma de aproximação do espectador, fator que evidencia a fragilidade da família em um momento tão decisivo. Vento dourado cria um espaço de intimidade entre filme e público que é capaz de emocionar toda uma sala de cinema.

O filme é uma rara representação da cultura nipo-brasileira dentro do cinema nacional. É importante pontuar a força da ancestralidade japonesa presente nas personagens, que se evidencia principalmente no idioma e costumes dessas. Entretanto, Sumiko e Haruko não deixam de lado a brasilidade presente no seu dia a dia, visto que, na maior parte do curta, seus diálogos mesclam a língua japonesa com o português abrasileirado.

Assistir a Vento Dourado é como ser consolado diante de uma situação difícil. Apesar de propor um tema desconfortável e melancólico, o filme não se prende somente aos seus momentos tristes. Mesmo cientes da condição da avó, a família decide sair de casa e eles aproveitam uma tarde em conjunto, criando novas memórias com Haruko.

A leveza do filme revela uma vontade única do cineasta de registrar a vida ou, por outra, o fim da vida de alguém. Essa vontade fez com que André Saito criasse um documento cinematográfico íntimo sobre sua avó e sua ancestralidade, que é tocante do início ao fim, além de ser uma grande homenagem a Haruko Hirata — que veio a falecer pouco tempo depois da gravação da obra.

Biografia: Mel Emiliano tem 20 anos e é uma amante de filmes de longa data. Atualmente está cursando o segundo semestre do curso de Cinema na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), onde desenvolveu apego pela criação de filmes, curadoria e críticas de cinema.