CONFLITOS HEREDITÁRIOSArarat, de Guto Gomes

por Rodrigo Saturnino

O que mais chama atenção na narrativa de Ararat é sua intimidade com o tema abordado. O filme conta a história de dois irmãos descendentes de armênios, herdeiros de uma confeitaria tradicional da cultura armênia. Estão encerrando os preparativos para o evento que relembra os 100 anos do genocídio do povo armênio, causado pelo império turco, quando um representante do evento vem até a confeitaria para tentar sabotar as entregas. O diretor Guto Gomes demonstra honestidade e um grande cuidado com o tema e a construção dos personagens de seu filme.

Pouco importa se o diretor é de descendência armênia; há um partido tomado pela narrativa que indica uma proximidade com essa cultura. É intrigante essa intimidade. Na história do curta, são os filhos, ou netos, do evento que protagonizam a luta centenária. Ou seja, o diretor usa do recurso da memória, com fotos de família penduradas nas paredes, os doces de receitas tradicionais e o filme caseiro que inicia o curta para construir sua ambientação.

A construção de tensão do filme é bem feita, mas pelo seu formato parece não haver muito espaço para dúvida. O representante do evento é logo apresentado como turco, sem deixar espaço para a especulação que elevaria a tensão do curta. Sabemos que há uma tentativa de sabotagem desde o início, quando Paulinho, o irmão mais novo, verbaliza suas suspeitas para seu irmão, Hagop. O final também deixa um pouco a desejar no que diz respeito a uma postura mais combativa e menos pacificadora. A revelação das anotações de Emin, o representante do evento, parece ser uma solução imatura.

Parece que os principais problemas narrativos do filme são causados pelo seu formato de curta-metragem. Isso é bom e ruim. Ruim por não contemplar todo o potencial que a história tinha, a sina de todo iniciante. Mas também é bom porque deixa no público uma vontade de ver mais. O que também ajuda na relação entre o filme e seu público é a escalação dos atores. Os dois protagonistas, Joaquim Muylaert e José Abujamra, são achados perfeitos para o filme. Ambos representam duas gerações distintas, algo que é possível perceber até pelos nomes: Paulinho, o mais novo, Hagop, o mais velho. E como todo bom filme, aqui há espaço para a contradição. O mais novo poderia ter sido o mais pacificador, enquanto o mais velho o mais tradicional e duro, mas há uma inversão de papéis que funciona muito bem na dinâmica dos dois. Hagop, por ser o mais velho e o mais responsável, tenta evitar o conflito, enquanto Paulinho carrega dentro de si uma raiva enorme.

Ararat é um filme de altos e baixos. Se por um lado a narrativa não contempla todo o seu potencial para tensão, por outro o curta tem um trabalho de direção, ambientação e atuação que dá uma credibilidade que o diferencia das outras produções vistas no festival, em especial nas produções de diretores iniciantes.

DESAJUSTE POÉTICO – Mostra Pelas Mãos de Pasolini

por Alex Brito

Um motor em movimento, centralizado no quadro. Esse motor é exibido poeticamente, ora em planos abertos, ora fechados. Em consonância ao que é visto, em voice over ouvimos Pier Paolo Pasolini narrar uma história, sobre o dia em que deu carona a um jovem de poucas palavras. Intencionando estabelecer um diálogo com o rapaz, Pasolini o questiona sobre seus interesses, descobrindo a paixão juvenil por motores. Nesse instante, as imagens do motor, até então enigmáticas, ganham um significado. Essa é a primeira cena de Il Ragazzo Motore, de Paola Fajola, curta que abre a sessão Pelas mãos de Pasolini, uma homenagem ao centenário do nascimento do realizador-poeta italiano.

O curta acerta ao associar elementos do documentário, como os registros dos jovens relatando suas experiências, a uma decupagem expressiva e uma montagem poética. Paola nos apresenta detalhes, como o toque das mãos no guidão da moto ou as reações dos jovens, capturadas por gestos e olhares. Porém, por não aprofundar o diálogo com nenhum dos entrevistados, Il Ragazzo Motore não atinge uma camada tão imersiva quanto o curta que o sucedeu, Stendalì (Ainda Soam), de Cecília Magini.

Stendalì, cujo roteiro tem colaboração de Pasolini, apresenta uma tradição fúnebre exercida por mulheres, que buscam homenagear seus entes queridos através do canto em coro. O curta tem escolhas estilísticas valiosas, que possibilitam uma experiência marcante. A montagem frenética atravessa diretamente a intensidade das vozes, os planos próximos das mulheres revelam suas emoções, marcadas pela angústia e pela perda. As posições da câmera ao longo da obra intensificam a nossa experiência, com destaque para o momento que imprime o ponto de vista do jovem falecido no caixão.

Além da imersão proporcionada pela junção imagem-som em Stendalì, o curta tece uma crítica à desigualdade social presente na Itália de seu tempo. Ele localiza essas mulheres em Salento, no sul do país, região marcada pelo abandono das lideranças governamentais, que priorizavam fomentar a industrialização no norte italiano. A obra provoca indagações, como: esse ritual fúnebre, além de uma tradição, seria um suporte diante do desamparo imposto pelo capitalismo?

A catarse suscitada por Stendalì ganha outra roupagem em Pierpaolo, de Ivan Claudio, única obra brasileira presente na sessão. O curta também se distingue pelo seu ano de lançamento, 2021, enquanto os demais foram lançados ao longo da década de 1960. Pierpaolo é uma obra intimista, que tece uma homenagem a Pasolini. Ela não se limita a uma estrutura clássica, possuindo um fio narrativo fragmentado e inserindo trechos com falas de Pasolini e imagens de arquivos. Ivan Claudio, que também assina roteiro e produção, inspira um olhar humano e poético em relação à trajetória do diretor, com destaque ao instante em que nos apresenta o local de nascimento de Pasolini.

Complementando essa abordagem mais intimista do filme anterior, O Cinema de Pasolini (notas para um Critofilme), de Maurizio Ponzi, é metalinguístico ao compartilhar a faceta artística do realizador-poeta a partir de um relato sobre o seu pensar cinematográfico. Ninetto Davoli, ator que esteve presente em muitos filmes do diretor italiano, ilustra com ações e gestualidades comentários pertinentes feitos por Pasolini, no que concerne à construção de personagem em camadas. Um ponto destacável do relato refere-se à comparação entre cinema de prosa e cinema de poesia, que ganha uma dimensão palpável ao ter como exemplos planos de um filme do diretor. Ponzi, que foi assistente de Pasolini, evidencia a proximidade dessa relação ao expor falas poéticas e descontraídas, que não passam desapercebidas ao público.

Fechando a sessão, temos um curta dirigido por Pier Paolo Pasolini, A Ricota, que assim como o seu antecessor, também reflete sobre o fazer cinematográfico. Tendo como ambientação um set de filmagem, um diretor marxista, vivido por Orson Welles, filma a Paixão de Cristo, um tema caro à burguesia católica italiana (que diegeticamente é retratada como financiadora do filme). Pasolini, que ao longo de sua carreira criticará em sua filmografia a hipocrisia cristã assentada em costumes, retrata em seu curta a ausência de humanidade naturalizada numa sociedade desigual. 

Essa posição é ilustrada nas situações vividas por Stracci, um figurante que atua como o ladrão bom, crucificado ao lado de Cristo. Na primeira aparição de Stracci, o vemos faminto e sendo zombado por seus colegas, situação recorrente. Sua humanização é destituída, condição reiterada ao se por em comparação a um cachorro no set, que tem mais respeito, além de comer a sua comida. Stracci é uma alegoria da população esquecida dessa Itália capitalista, que por meio de ações e subalternidades, busca ascender socialmente e, no mínimo, matar sua fome. De forma dramática, pecando com excesso de exposição, A Ricota exacerba a sua crítica com a morte de Stracci, “crucificado” em cena diante da burguesia que o oprimiu. Uma decisão narrativa ousada que serve de presságio à polêmica, mas virtuosa, filmografia de Pasolini.

QUERER, EXISTIR E AGIR! – Mostra O Efeito Queer Indígena

por Enzo Ruggeri

Quando damos nomes para determinados movimentos artísticos, assumimos que as obras pertencentes a eles possuem um fator em comum. No caso de um cinema dito como queer, são consideradas as representações ou narrativas que promovem uma ruptura com a normatividade nas questões de gênero e/ou sexualidade. Já em uma perspectiva cinematográfica classificada como indígena, está inclusa a assimilação e compreensão de uma expressão cultural, seja num resgate histórico em documentários, seja em ficções em que essas pessoas desempenham o protagonismo. E os dois juntos? Quais visões poderiam ser trabalhadas?

O desafio dessa sessão, na construção do Efeito Queer Indígena, foi criar uma seleção de filmes que conectam a memória e o existir dessas personagens dentro de ambos os contextos. Enquanto, na perspectiva cultural, essas pessoas lutam contra um processo de apagamento da sua própria identidade, no campo pessoal também precisam muitas vezes se manterem escondidas, pois existe uma conduta heteronormativa a ser seguida. Entretanto, essa visão separada é meramente analítica, afinal as personagens que protagonizam essas histórias não se dividem em dois: elas são indígenas e queers. Os pontos mais sensíveis, presentes em todas, são a busca e o orgulho da ancestralidade, que nas narrativas propostas funcionam como um mecanismo para florescer as sexualidades dos protagonistas.

Em geral, a proposta queer dentro do cinema está atrelada à estranheza como sensação para o espectador, devido ao seu caráter confrontador. Não se sente isso nesta sessão exatamente. Não digo, porém, que se ausenta de seu papel não-conformista, mas as representações de afetos estão normalmente cercadas pela própria expressão cultural, manifestada ora de forma simbólica como em Tuullik; ora físico, como o contraste entre a reserva e a cidade em Suave Noite; ou a moradia dos inuítes em Aviliaq: Entrelaçadas. Embora os filmes sejam disruptivos pela própria presença do existir e do manifestar, ainda assim há o trabalho do acolhimento, principalmente nas relações afetivas, tanto românticas quanto fraternais, contrastando muitas vezes com as parentais.

Os filmes abordam personagens que não estão passivas às suas condições, sendo o agir o combustível para o desencadeamento de todos os curtas. Jesse Jams, que leva em seu título o nome do seu protagonista, em sua montagem rítmica viciante, acompanha a jornada do músico trans indígena que está contemplando sua existência de maneira orgulhosa através da sua expressão musical do punk rock. De forma similar, Êmîcêtôcêt – Muitas Linhagens, o outro documentário da sessão, mostra o processo de um casal queer e interracial em seu processo de realizar a fertilização in vitro, e como é fundamental se atentar ao combate do apagamento indígena durante essa jornada. A cena do parto é uma das mais sensíveis da mostra, pois conecta a emancipação queer em dar a vida atrelada à manifestação da ancestralidade, com a criança representando o futuro da etnia.

Nas ficções, o conflito geracional é bem marcante. Em Tuullik, Tukummeq e Luna são levadas em uma bela representação não-narrativa que faz uma analogia da relação delas com o conto da lua e do corvo como um dispositivo discursivo para representar o nervosismo de ambas as partes ao conhecer a família uma da outra. Mostrando uma face mais violenta, em Fogo Selvagem, os jovens protagonistas literalmente fogem de seu pai opressivo, enquanto o mais velho acaba desenvolvendo uma relação sutil com outro menino, contemplados por planos que quase os fundem com a natureza, uma validação do próprio meio.

Já em Aviliaq: Entrelaçadas, se estabelece quase um paradoxo sobre a cultura inuíte, afinal as personagens buscam nela a justificativa para ficarem juntas, enquanto os pais de uma delas deliberadamente comandam a escolha de suas vidas também baseados nisso, operando como fator decisivo a heteronormatividade. Em Noite Suave, esse aspecto é colocado de forma dualista: a personagem pode explorar sua homossexualidade na reserva, colocada aqui como um lugar de refúgio, enquanto na cidade a normatividade a sufoca, mesmo que também haja uma troca com alguém indígena.

De forma geral, essas obras buscam emancipar a existência de suas personagens, em uma percepção singular do desdobrar de suas existências diversas. Assim, ilumina-se a vivência de pessoas LGBTQIA+ que são pertencentes à cultura dos povos originários, e que compartilham da luta contra a presença opressiva da normatividade. A mostra O Efeito Queer Indígena é um convite para provocar uma perspectiva diferente no espectador sobre o querer, existir e agir da dinâmica queer.

“NEM DE NEON ELES ENXERGAM A GENTE”Fantasma Neon, de Leonardo Martinelli

por Larissa Snege

Fantasma Neon, vencedor do prêmio de melhor curta-metragem no Festival de Locarno (Suíça) e de cinco prêmios no Festival de Gramado, retrata uma temática urgente, com um olhar sensível e uma abordagem única. Conta com uma trilha sonora e coreografia que unem os principais ritmos urbanos do Brasil como o funk e o samba, atualizando o gênero musical para atender as demandas da obra, além de uma montagem inteligente e carregada de significados. O musical é introduzido perfeitamente por um número musical que explora a temática e revela a abordagem da obra, apresentando a bela voz de João (Dennis Pinheiro) e emoldurada por uma bela fotografia.

A história do protagonista João retrata a invisibilidade dos entregadores de aplicativo como seres humanos perante a sociedade: seus sonhos, desejos, dificuldades e até mesmo a fome que sentem ao entregar comida para tantas pessoas, enquanto ironicamente estão vestidos com uniformes bem chamativos.

A escolha de figurino dos personagens ressalta esse olhar que se limita à sua ocupação; em grande parte do filme, os entregadores estão com as mochilas que utilizam para fazer entrega nas costas, ou bem próximas ao seu corpo. Os momentos em que João retira de fato sua mochila é quando está dançando, e essa dança transborda o seu ser, que precisa se desprender dessa condição que limita sua expressão artística.

Outra questão apresentada pela narrativa da obra é como a arte e a cultura são potências importantíssimas tanto para a expressão da individualidade quanto para a mudança social. E como essas expressões, quando consumidas ou produzidas por grupos com pouco poder monetário e social como os entregadores, são marginalizadas e vistas como atos subversivos pela sociedade. O uso de saxofones apoiados em posições em que se apoiam armas é um símbolo forte e impactante disso, e a montagem favorece essa relação para transmitir a impressão dos trompetes estarem apontados para João enquanto ele dança.

A montagem de todo o filme é muito inteligente, mas há um destaque para a segunda cena, que coloca um depoimento em voz over enquanto imagens de diferentes entregadores passam em tela. Essa montagem transmite coletividade: o depoimento é individual, mas evidencia que essa realidade de dificuldade e destrato é vivida por todo o grupo de entregadores. Ainda nesta cena há o cuidado e a sensibilidade com as demais pautas sociais através do depoimento de uma entregadora mulher, que passa dificuldades intensificadas pelo seu gênero.

O espectador é diretamente provocado a olhar nos olhos dos entregadores em planos onde os personagens são filmados olhando diretamente para a lente da câmera. Esses planos promovem um papel ativo do espectador, gerando sensações e reflexões acerca da temática do filme. Uma provocação final é realizada na montagem que compara a morte por atropelamento de um entregador com um copo que cai na mesa durante uma refeição. Ela alerta para a vulnerabilidade que tantas pessoas passam para que outras possuam o conforto de receber diversos tipos de produto em casa. Uma desigualdade amarga vivida por centenas de fantasmas neon.

POÉTICA DAS TRAVESSIASTerremoto, de Gabriel Martins

por Felipe Karnakis

A potência que a memória tem no redesenhar dos caminhos, na construção de novas possibilidades, é um dos eixos do documentário Terremoto. O filme é dirigido por Gabriel Martins da Filmes de Plástico, produtora mineira já reconhecida por dar à luz narrativas locais que historicamente não aparecem nas telas. O curta traz com muita sensibilidade o dia a dia da família Augustin em meio a pandemia de covid. Eles são do Haiti e tiveram que deixar o país devido ao intenso terremoto de 2010. O enredo parte de uma história essencialmente trágica. Contudo, a maneira como a costura é feita não bate apenas na tecla do sofrimento. Gabriel parece mais preocupado em dar voz às memórias.

São diversas as sequências em que essa preocupação atravessa a narrativa, mas em especial chama atenção o momento em que Nayla, a primeira filha da família, aparece pendurando fotografias antigas. Coladas na parede, estas formam uma grande tela que compõe uma linha do tempo. Vemos os rostos dessa família que já nos foram apresentados, só que jovens, em ambientes distintos, lugares distantes. Essa tela de memórias recorta o filme, aparecendo entre os relatos e enredando as informações. De alguma maneira, esse fio condutor ressalta a importância que o documentário dá em humanizar os personagens. O recorte não é sobre um fato isolado, uma tragédia, mas sim a história desses indivíduos e suas particularidades.

Nesse sentido, a película desconstrói uma narrativa muito reproduzida em filmes sobre desastres naturais, que sobressaltam sempre a visualidade da necropolítica. Na contramão da morte pela morte, o curta discorre sobre vida, educação e futuro. O símbolo do nascimento da nova filha na família, e a primeira cena em que os irmãos constroem o berço da pequena, marcam a essência de recomeço que o enredo carrega.

Essa investigação de construção a partir da autoimagem, de registros fotográficos e da autoestima de famílias pretas lembra tematicamente outro filme, Travessia (2017) de Safira Moreira. O curta aborda a busca pela memória fotográfica das famílias negras, estabelecendo um aspecto crítico quanto ao registro e o racismo estrutural. Em ambos os filmes, ao final vemos a produção de imagens afetivas dessas famílias. Há uma notabilização de que o registro é sinônimo de história, e que demarcar esse formato é um compromisso de criar repertório para as próximas gerações.

A maneira como o filme traz em imagens essa temática contribui para uma espécie de imersão poética. A fotografia do curta tem um tom onírico, as imagens parecem flutuar. O ambiente escuro e luzes direcionadas, contrastando com o tom terroso das paredes de tijolo, contribuem para sentirmos uma aura de flashback. Ainda que mantenha o norte nas recordações, o enredo também finca os pés na atualidade.  É estabelecido um fluir desse caminho-rio das memórias e seu redesenhar no tempo, que desemboca no futuro. Esse aspecto fica evidente quando Niky, Nick e Neyla relatam sobre suas escolas e a importância da educação em suas vidas. Nesse trecho, fica evidente o impacto que a pandemia teve no ensino – por exemplo, na falta de estrutura para as aulas online de Niky ou Nayla, que têm apenas os irmãos para recorrer às dúvidas de suas tarefas. Ainda assim, o filme enaltece a esperança que essa juventude tem de construir e semear a mudança no futuro.

DÁ-ME LICENÇAYabá, de Rodrigo Sena

por Gabriella Gonçalves

“Quem é que já viu a Rainha do Mar?

Quem é que já viu a Rainha do Mar?

Pescador e marinheiro

Que escuta a sereia cantar

é com o povo que é praiero

Que dona Yemanjá quer se casar”

– “Yemanjá Rainha do Mar”, de Paulo César Pinheiro e Pedro Amorim, cantada por Maria Bethânia

Yemanjá é conhecida como a mãe das cabeças. Nada mais certo do que ser considerada a mais conhecida das Yabás. Dentro de algumas religiões afrodescendentes, Yabás são orixás de vibração feminina, ou referentes apenas a Yemanjá e Oxum, que trazem estabilidade emocional.

Em cerca de treze minutos, Rodrigo Sena traz a saudação a Yemanjá. Transmitida a fé em Neide (Jari Nass), uma mulher séria, forte, centrada, que se vê em uma encruzilhada para conseguir salvar seu negócio de pesca local, com as vendas em queda por conta do derramamento de óleo. Vemos ela se apoiar na religião para conseguir se manter de pé. Sempre cuidando do seu altar, ela faz rituais que ajudam a entender seu relacionamento com o sagrado, como quando prepara uma oferenda para Exu. Traz em contraste o pescador que trabalha com ela, sua relação com a pescaria, seu pessimismo, seu hábito de falar mais do que Neide – um contraste de uma pessoa sem crença sobre a vida.

Conseguimos ver pela ambientação a calmaria do lugar, chegando até a angústia, entretanto logo somos tirados de tal estado por uma movimentação rápida da personagem, ao encontrar quase um milagre dentro de um peixe. E assim seguimos com ela até a oferta a Exu, que já havia sido preparada, esperando para ser dada. A paleta de cores ajuda a ambientar a predominância de Yemanjá. O filme segue o tempo do mar: às vezes calmo, às vezes revolto. Mas uma revolta pode trazer notícias boas?

O filme é um presente à cultura brasileira, pois é necessário entender o passado para construir o presente e mudar o futuro. Leva a uma reflexão sobre a saúde do mar, sobre a religião, sobre o que constitui o Brasil. Traz na mulher negra nordestina a força, a resistência, a continuidade.

Yabá é uma obra necessária, que aporta mais conhecimento sobre o candomblé e a umbanda, contribuindo para a desmistificação de tais religiões. Em suas obras, Rodrigo Sena costuma abordar a religião afrodescendente e as nativas. E o faz de um jeito natural, iluminando todo um universo ao redor do divino. Um filme para quem quer ter fé, pra quem quer saudar sua mãe Yemanjá, para quem sabe que pode.

NÃO HÁ MAIS QUEM GRITE GOL!Estrelas do Deserto (Chile), de Katherina Harder

por Gustavo Furtuoso

Não há gramado verde ou traves de futebol. Mas quando a bola marca um gol, as crianças que ainda restam vibram todas juntas

Na paisagem seca do deserto do Atacama, ao norte do Chile, filhos de moradores de um vilarejo são o último suspiro de vida numa terra prestes a ser esquecida, abandonada. O jovem Antay, por volta dos dez anos de idade, vive a angústia de perder seus amigos e companheiros de time, um a um, resultado da recusa de seus pais a continuarem vivendo numa região afetada pela seca.

O uso do futebol como metáfora para o engajamento social e político no vilarejo é rico pois, para além de ser um tema comum e popular em toda América Latina, é um esporte essencialmente coletivo, que exige uma coesão e sintonia entre seus jogadores. Sintonia essa que passa a deixar de existir entre os pais dessas crianças diante do abandono e da falta de recursos destinados a uma melhora na infraestrutura e, principalmente, no abastecimento de água da região. O descaso das autoridades com aquelas famílias acaba por provocar sua desmobilização, e o desmonte de uma resistência que lutava por sua permanência no local ao qual pertenciam.

Por mais que seja o dilema mais pungente no filme, todas as discussões políticas acontecem em segundo plano. São apenas cenário da vida de um garoto que passa a temer a solidão e a vivenciar o sentimento de perda, de desencontro. A situação toda é reflexo para um destino injusto das gerações mais jovens, que apenas têm que lidar com as consequências das decisões tomadas por adultos que vieram antes. Embora as crianças consigam se articular para comprar uma nova bola, por exemplo, são esforços que só podem remediar o problema do time, não solucioná-lo.

Quando uma terra é abandonada, as pessoas também desaparecem. Seus antepassados, suas tradições, suas referências. A memória se torna difusa, rarefeita. Como a imagem dos amigos de Antay que, numa partida simbólica, simplesmente desaparecem em pleno ar, diante de seus olhos. Tornam-se lembrança, miragem, saudade.

Sem futebol, resta a poeira e o calor do deserto.

O RISCO DE MORRER NÃO É MAIOR DO QUE SER QUEM SE ÉWarsha, de Dania Bdeir

por Lohan Lage

Warsha, da diretora Dania Bdeir, desfia-se em 15 minutos de louvor à liberdade. Mais do que isso, é um filme sobre como acessar a liberdade. Ser livre requer estratégia. Requer coragem. Não se é livre espontaneamente, embora essa ideia seja mais condizente com o conceito. Nesta produção franco-libanesa, o personagem Mohammad (Khansa) ilustra brilhantemente essa tese.

Mohammad é um operário envolvido em uma grandiosa obra urbana. Nesta construção, há uma temida grua, “A Besta”, que já vitimou mais de um par de operadores devido às más condições de segurança e, claro, ao perigo natural que um trabalho como esse oferece. Não há quem comande a Besta, e a obra precisa continuar. Eis que Mohammad se candidata a esta empreitada quase suicida, apesar da pouca experiência com o maquinário. E lá do alto do arranha-céu, o libanês encara a fera num misto de desejo ardente e medo. O olhar arregalado do homem reluz a adrenalina. É Teseu versus o Minotauro. Davi contra Golias. É um homem vislumbrando a possibilidade de, literalmente, mergulhar céu adentro e alcançar a glória eterna. Eterna enquanto durar, parafraseando Vinicius de Moraes.

E o que é um gigante metálico enfiado entre as nuvens perante uma sociedade tão baixa, que ao rés do chão apequena-se em mesquinharias, preconceitos, aprisionamentos, hostilidades. É no chão que alguém, do alto, nos manipula. É no chão que plantamos nossas esperanças e colhemos medo, violência. No chão duro de uma metrópole, no asfalto donde a flor drummondiana sequer ousa dar as caras, ou não seria as pétalas, de tanto que é o sufoco antes mesmo de brotar. Mohammad assume o risco de morrer para viver. Porque viver é ser quem de fato se é. Mohammad abre mão do risco de não viver. O risco de morrer brilha em seu olhar. Está tudo ali, naquele olhar de Mohammad. Naquele cigarro tragado, nos trejeitos que emulam a liberdade.

Veio à mente uma canção de Caetano Veloso, de seu álbum clássico Transa, em que ele diz: “eu já vivo aqui cansado de viver aqui na terra, minha mãe eu vou pra lua, eu mais minha mulher; minha mãe eu vou pra lua e seja o que Deus quiser”. Na canção Triste Bahia, Caetano transcreve o pensamento de Mohammad. De fato, ele leva consigo sua mulher – sua pessoa idolatrada, sua referência artística, de autenticidade. E lá do alto Mohammad pode se jogar sem se espatifar no chão. A fotografia belíssima potencializa o éon daqueles poucos minutos, com um dos mais poéticos pores-do-sol que já assisti na tela. A sensibilidade da direção é ímpar ao saber intercalar o auge do ser liberto com seu retorno à rotina de clausura da alma.

Pra fechar, outra canção da transa caetânica: “I’m alive, and I know that one day I must die; I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo”. A poesia na tela que transborda o estar vivo enquanto se pode. O estar nas alturas, no sobreviver vivendo. Com a bênção dos céus.

O PESO DE (AINDA) ESTAR AQUI – Mostra Internacional 5: Ainda Estou Aqui

por Gustavo Guilherme da Conceição

“[…] Estou bloqueado entre dois tempos, o tempo da referência e o tempo da alocução; você partiu (disso me queixo), você está aí (por isso me dirijo a você). Sei então o que é o presente, esse tempo difícil: um simples pedaço de angústia.”

(Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso)

Uma criança a caminho de uma praia pede ao pai um caranguejo de pelúcia como presente. Um barco navega em stop motion sobre um mar de cogumelos. Em uma noite de solidão, dois desconhecidos se percebem, trocam palavras, medos e outros afetos. Um projetista se lamenta de seu trabalho em um cinema pornô de Roma. Uma mulher negra trabalha, entre apagões e tarefas intermináveis, até sentir as consequências de seus gestos em seu próprio corpo.

Tais cenas são parte dos curtas-metragens da Mostra Internacional 5: Ainda Estamos Aqui, que, em sua configuração, reúne obras da Itália, França, Reino Unido e Quênia, em cinco filmes cujas imagens parece transitar entre o visto e o não visto, ou, talvez, entre o que se anseia mostrar e o que se prefere esconder, em jogos de cena que tensionam as linhas da causalidade narrativa, sensorial e fílmica.

Perdido (França), de Gaetan Vassart e Sabrina Kouroughli, vai da calmaria de uma tarde em família na praia – uma câmera estável que a tudo observa com atenção – a um frenesi causado pela busca não só do que será perdido, como já sugere o próprio título, mas também daquela primeira imagem de harmonia, de unidade familiar; agora, a câmera na mão estremece e desestabiliza o quadro, a cena, o filme. A forma fílmica é irremediavelmente alterada pela perda, pelo imprevisto, pela ausência não calculada.

Mas o homem que encara o mar ao final de Perdido provavelmente não é capaz de enxergar O Barco (Reino Unido), de David Robinson e Bryan Michael Mills, que navega no lirismo estético das ondas de stop motion em uma mise en scène que transita entre calmaria e caos, submergindo e depois retornando à superfície para seguir seu destino, até desaparecer no horizonte.

Talvez tal ressurgimento aponte para aquilo que a própria sessão, em seu título, não nos deixa esquecer: “Ainda estamos aqui”. Talvez o tema comum, por fim, não seja exatamente a ausência, a falta, mas o impacto irreparável das presenças no mundo — rastros, sombras, memórias, movimentos, sensações, sentimentos.

Dessa forma, portanto, é provável que o encontro que se dá em Bom dia Meia-noite (França), de Elisabeth Silveiro, movido por um diálogo que surge dotado de sintomas de desejo e afeição, mas também de medo e receio com o mundo, com a memória e com as interações, revele nos mínimos gestos o mais profundo desejo daqueles corpos desconhecidos. A solidão, por si só, não seria também uma presença?

Não por acaso, Ambasciatori (Itália), de Francesco Romano, se permite transitar livremente ao redor de encontros, e também de desencontros, entre corpos igualmente desconhecidos que buscam saciar suas pulsões motivadas pelo desejo carnal, numa espécie de santuário da pornografia. Esse lugar, cuja função se desdobra sobre o próprio filme (e na tela do cine pornô dentro da tela de cinema), condiciona a coexistência de todas as personagens a uma atmosfera de obscenidade, não no sentido moralista, mas imagético da palavra: tudo está posto, desvelado, visível, ao ponto em que até mesmo a insinuação de determinados gestos surge sem ar de mistério — a punheta filmada em determinado enquadramento, distante mas ainda guardando algum pudor, tem aqui o mesmo impacto narrativo de um pênis sendo acariciado em close.

Mas há em Ambasciatori um contraponto, presente em cena desde o primeiro plano: um corpo que trabalha. O projecionista do cine pornô é a única personagem que parece, até certo ponto, alheia àquela atmosfera. Apesar de também estar exposto às imagens explícitas dos filmes que exibe, elas implicam nele uma outra reação, a lembrança de uma presença exterior àquele contexto, um afeto fisicamente ausente.

Jua Kali (Quênia), de Joash Omondi, traduz essa lógica para uma espécie de crônica do cotidiano, onde a protagonista é um corpo negro, feminino, rodeado por outros corpos diversos que, aparentemente, não sofrem em si mesmos as consequências de seus gestos, tampouco parecem perceber as implicações de seus atos como motivo direto do movimento frenético daquele corpo, que só entra em cena enquanto corpo que trabalha. Se a câmera frenética investiga, incerta, a perda de Perdido, aqui a estrutura fílmica vai, entre um apagão elétrico e outro (leitmotiv que distancia o corpo-trabalhador dos demais corpos em cena), se condicionado ao ritmo de trabalho, como se trabalhasse junto, ainda que apenas observando — a imagem em movimento, o próprio cinema, é trabalho.

Por fim, quando a inquietação de Jua Kali é interrompida pelo que poderia ser, em outra história, a falha mecânica de um robô, o discurso parece querer retomar certa normalidade, como a da família na praia em Perdido. Mas um retorno incólume à superfície já não é mais possível, pois a norma(lidade) foi tensionada pelas presenças — conhecidas, desconhecidas, ignoradas, perdidas, reimaginadas, concretas, indecifráveis, reais, imaginárias — que aqui, finalmente, constituem o peso de ainda estarem aqui.

O AMOR NÃO É O BASTANTECorpo Celeste, de Renata Paschoal e André Sobral

por Hannah Sloboda

Corpo Celeste traz em seus 15 minutos todo o potente rebuliço sentimental do reencontro de uma relação amorosa que foi abruptamente interrompida. Com seu viés de cinema de guerrilha, o curta é direto no argumento, que toma dois terços de duração do filme. O que dizer, sentir e esperar da pessoa amada em um encontro furtivo de dez minutos com dez anos de separação? André Sobral e Renata Paschoal exploram o reencontro distanciado de um casal onde amar já não é mais o bastante para se estar junto.

A câmera de Letícia (Maria Ribeiro) é tida como uma personagem de várias faces, ansiando por quem será o próximo espectador. A protagonista explora a sensualidade através da sonoplastia com suas falas sussurradas, e paralelamente consumida em imagem por meio dos planos fechados. Porém, por trás da personagem sexual de Letícia há uma mulher comum e calejada pela vida. Isso fica claro por meio da montagem de choque que mescla imagens vibrantes da camgirl em seu show com inserts da vida cotidiana desbotada. Durante a contagem regressiva de dez segundos, a montagem tangibiliza o basta, a saturação acumulada de Letícia.

Porém, o surgimento de um novo e misterioso espectador quebra o modus operandi da protagonista. Sem revelar a sua imagem, o observador se comunica na esperança de ter a tão almejada identificação. Fernando (Fernando Alves Pinto) quebra a quarta parede e traz consigo os lamentos do abandono e do trauma do tempo. Letícia, tal qual a camgirl de Wim Wenders (Paris,Texas, 1984) finge a frieza e distância como escudo emocional da calejada vida.

O ressurgimento do passado na ânsia de um futuro, numa relação onde amar não é mais o suficiente. Corpo Celeste é uma pílula emocional para os amantes com relações frustradas pelo tempo.