por Enzo Kruschewsky
Dizer que a pandemia apenas “afetou” nosso estado mental é um enorme eufemismo. De um momento para outro, fomos forçados a mudar todo o nosso comportamento, e estamos nessa situação há quase dois anos. Aqueles que podem ficar em casa se sentem presos, sufocados, com falta constante de contato humano, ansiosos pelo futuro. Aqueles que precisam continuar saindo têm que conviver com o medo constante da contaminação. Alguns tiveram que lidar com a morte de pessoas próximas, e todos fomos atingidos pelo estresse das milhares de mortes ao redor do mundo, muitas das quais poderiam ter sido evitadas. O vírus ainda é só mais um problema entre tantos outros que talham nossas mentes, como a crise climática, a crise da democracia, a crise econômica…
Os curtas da Mostra Internacional 2 – Surto exploram o estresse e a ansiedade, apelando para uma linguagem experimental e um caráter fantástico para melhor representar as partes sombrias da nossa psique. Quantas vezes ao longo do último ano não passou pela nossa cabeça, mesmo que rapidamente, que o mundo está acabando? Hospedeiros Naturais, de Nick Jordan, é uma representação dessa paranoia concentrada em dois minutos. A câmera passeia por um cenário pós-apocalíptico: uma casa abandonada, destruída, em preto-e-branco, habitada agora apenas por morcegos. Fotografias mostram um caçador expondo sua caça, orgulhoso. Um discurso falado atravessa o filme, tocando em assuntos como a pandemia, a crise climática e a pecuária intensiva, direcionando a causa de tudo isso à atitude predatória do ser humano com a natureza, que não se reconhece como parte dela e a vê apenas como uma presa de sua caça. Essa combinação dos conteúdos sonoros e imagéticos transmuta a casa pela qual passeamos na casa que nos abriga todos; e sua destruição, na destruição que causamos a nós mesmos.
Enquanto Hospedeiros Naturais se ocupa de representar o interior, nosso medo de um fim causado por nós mesmos, o outro filme britânico da mostra, Estrasburgo 1518, de Jonathan Glazer, externaliza esses pensamentos. Os personagens dançam ao longo de dias e noites, frenéticos. Por mais que estejam cansados, não conseguem parar de dançar. Também não são capazes de sair da mesma série de movimentos. Atormentados, convulsionando de forma repetitiva e padronizada, a dança começa a afetar como eles se relacionam com suas atividades. Algo obrigatório, como lavar as mãos, se torna uma rotina impregnada de um esforço sofrido, e aquilo que foge ao necessário, que fazemos apenas porque gostamos, como olhar os pássaros pela janela, se torna impossível pela instabilidade do movimento, pela falta de controle, de foco. O canto dos pássaros, que antes acalmava, também se mistura à batida que rege a dança, e a impossibilidade de aproveitar experiências se torna parte do problema. A ansiedade interior a essas personagens é tanta que se exterioriza, primeiro corporalmente, e depois no tecido do próprio filme através da montagem, com os cortes rápidos entre os diferentes dançarinos, numa mania geral. Uma representação não tão exagerada (por mais que pareça) da ansiedade coletiva que a pandemia causou.
Se, em Estrasburgo, a dança é convulsiva, ansiosa, compulsória e repetitiva, na terceira parte de Catin (uma coletânea de quatro curtas de mesmo nome dirigidos por diretores diferentes), a dança aparece como uma libertação solar da padronização noturna. Acompanhamos a rotina de uma prostituta: ela espera em uma esquina, entra em um carro, recebe o dinheiro, faz sexo, volta para a esquina, e repete os atos. Por mais que haja sexo, não há nada de sensual aqui, ao contrário de outros curtas que também compõem Catin. Para a personagem desta seção, o ato é vazio de significado; é apenas um procedimento necessário. Tem o mesmo valor da água que ela repetidamente gargareja e cospe para limpar sua boca. Seu rosto impassível ao fim de cada contato com o cliente reforça esse caráter. Mas, ao longo do curta, por mais que tente segurar, uma lágrima lentamente escorre por esse mesmo rosto, seu sofrimento contido vaza. Esse sofrimento fica bem claro na imagem em staccato que caracteriza o filme, em que o movimento se dá por fotos tiradas singularmente e depois justapostas, dando a sensação de que algo segura a imagem. Essa personagem tenta se segurar, conter seu sofrimento e consegue, pelo menos durante a noite, por mais doído que isso seja. Contudo, o dia chega, libertando-a da imagem staccato e permitindo que, por mais que relute num primeiro momento, ela possa liberar seus sentimentos através da dança, com lágrimas nos olhos.
Depois da exploração feita por esses curtas sobre nossa mente danificada, resta a pergunta: o que faremos sobre tudo isso? Catin nos oferece uma solução lírica e individual, mas que não resolve o problema de verdade – a prostituta terá que repetir o trabalho na noite seguinte, afinal, talvez sentindo a mesma angústia. Nadador, de Jonatan Etzler, nos mostra uma solução perfeita (por mais que seja impossível): fugir dos problemas ao regredir temporalmente. Primeiro à infância, quando Ola, como uma criança, se recusa comicamente a sair da piscina após os policiais pedirem para ele ir à delegacia. Depois, ao primeiro estágio da vida, o útero, representado pela piscina aquecida em que mergulha, se acolhe, se protege e, finalmente, some.
É frustrante, mas talvez a resposta seja, inevitavelmente, a falta de resposta. É isso que O Fim do Sofrimento (Uma Proposta), de Jacqueline Lentzou, sugere. Para acalmar uma garota sofrendo um ataque de pânico, o Universo conta que ela, na verdade, vem de Marte, e começa a descrever a utopia que é o planeta. A descrição, porém, é representada visualmente por imagens da Terra através de um filtro vermelho, mostrando que a Terra e Marte não são tão diferentes. A Terra até poderia se tornar esse paraíso se quiséssemos. Depois de mostrar essa fantasia que existe onde estamos, o Universo conclui, através de seus sopros cósmicos: “Ficando na Terra, você encontrará a razão pela qual você caiu do seu planeta.” Essa é a proposta do título, o que devemos fazer para acabarmos com o sofrimento: resistir. “Ficando na Terra”, eventualmente encontraremos as respostas e paz. Precisamos apenas viver.