Estamos a um dia do começo do 26º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo. E como acontece em todos os anos desde 2005, a oficina Crítica Curta convida estudantes de curso de de audiovisual em instituições da cidade a produzir reflexão em texto sobre os filmes exibidos no festival. A coordenação do projeto neste ano fica novamente a cargo do crítico de cinema, pesquisador e jornalista Heitor Augusto.
Assim como no ano passado, este blog volta a ser o espaço de publicação dos artigos, apostando que a publicação no ambiente virtual permite mas possibilidades de circulação dos textos e diálogos com os leitores – realizadores e público em geral. Os participantes da oficina terão a responsabilidade de assistir diversas sessões que compõem o cardápio do festival. Suas reflexões estarão concentradas nos curtas das mostras Brasil, Panorama Paulista, Cinema em Curso e Latino-americana.
O blog Crítica Curta terá posts diários, escritos pelos “calouros” (que participam da oficina pela primeira vez) e “veteranos” (que já compuseram o projeto no ano passado e são convidados). Você pode acompanhar as atualizações pelas redes sociais, seguindo o Twitter da Kinoforum [clique aqui] e curtindo a página do Facebook [clique aqui]. No topo de cada post no blog você encontrará um botão para compartilhar os textos.
A navegação é simples: na parte superior da home page estão os posts mais recentes. Do lado direito da metade inferior da home você poderá procurar por textos usando tags (nome do filme, nome do diretor, nome do autor, tema do curta etc). À direita de cada página há a nuvem de tags, que aponta os tópicos mais comentados nos textos.
Abaixo está a lista dos calouros que participam da oficina neste ano:
Adriana Gaeta
Armando Manoel Neto
Giovanni Rizzo
Janaina Garcia
Juliana Souza
Lígia Jalantonio Hsu
Mariana Moura Lima
Raphael Gomes
Rafael Dornellas
Rodrigo Sá
Mas não está claro que o problema está na terra? Essa aí com a letra minúscula que a gente pisa em cima e às vezes esfarela ou afunda, mas que começou a crescer e a engolir o Sol: febre do cimento, aço fálico.
Mudo. No quarto, um cigarro e o amanhecer: Não estamos sonhando. Ligou o gravador: o som das novas construções invade o filme, a febre é barulhenta, pede, além das palavras de um discurso de resignação, ação.
Vandalismo. São as pessoas que sempre estiveram ali com seu som e seus corpos reboliços que invadem a tela em Lagoa Remix. Parte da sessão Tomada Única, o filme superoitista traz a dança e as brincadeiras de quem frequenta a lagoa, a qual será também alvo futuro de reapropriação. Em volta da lagoa, carros de som com volume muito alto compõem a trilha do filme; o cenário, talvez pela proximidade das sessões, lembrou o de Céu sobre a água de Agrippino, revestindo-o da contemporaneidade da dança do bumbum, do período tão atual de manifestações e “datenismos” e explicitando o comum que se tornou a mediação. “Esse prefeito não presta, é eu que tô falando”, diz a moça pra câmera.
É eu que tô falando. “Pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora: fotografe, faça o seu! arquivo de filminhos, documente tudo o que pintar, invente, guarde. Mostre. Isso é possível”. Torquato Neto em 1971 bradava pelo que hoje é quase hábito, senão demanda. O olhar sobre o contemporâneo e sobre o referencial ao qual pertence o artista, fez a produção superoitista na década de 70 resistir ao que pregava instituições e a cultura oficial, enfatizando a experiência pessoal como espaço de crítica política, econômica, etc. É a partir de seu próprio chão que o funcionamento do espaço é reavaliado (maldito foi o dia em que Adão resolveu fazer um testamento), quase um happening na vizinhança, o registro de um ato performático que rompe com o comportamento socialmente aceito. Dentro dessa política, o corpo ganha espaço no filme Super-8, e é por aí que caminha a dança do bumbum de Lagoa remix ou a masturbação e transa em espaços públicos de Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu.
Risse de tanto cu. Com certeza, de todos os filmes, Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu foi o que mais risadas trouxe à sala de exibição. Não foi só pela atitude a la Jackass com suas máscaras e bichinhos masturbatórios que as bocas se encheram de risos, algo ali incomodou e, se incomodou, deve ser bom, deboche é isso (também). Três rapazes espalhando amor pela cidade onde uma nova Dubai vai crescer monumental acabam por se jogar nos campos cercados nas proximidades do “haver avencas” relembrando os planos finais de Toques.
Monumental. O desmaio diante do monumental falo de cimento, depois da trajetória que percorre estátuas e outras construções “postais” (em forma de poste) é sedução que mata em Falos e Badalos. Mata sim e pra não morrer é preciso merda. Como disse o professor Rubens Machado após a exibição: “O 35mm dedica-se a construir monumentos; o 16mm a questioná-los; o Super-8 vem jogar merda nos monumentos”. Merda em forma de efeito visual, em trepidação, a bitola não é Super-8, mas se faz necessário a ação, a ação imaginária ou o terrorismo imagético. Buscando construir “o mundo que queremos”, Não estamos sonhando joga bombas nos prédios ao redor, destrói a imagem deles.
Terrorismo, aí vêm as câmeras de segurança, de vigilância, uma violência contra os corpos em planos contra plongée. Mas a suspeita de bomba é outra, é a que está na caixa de Marcelo Pedroso em Câmara Escura e que entra pela porta ou pela caixa de correio em uma propriedade privada, que filma e é logo julgada e condenada, uma arma, claro, a caixa preta de Vilém Flusser é logo tratada como criminosa, então é hora de fazer o filme.
Filmes bulímicos. Sem generalizações didáticas, vão pras telas. Nem sempre muitas telas, infelizmente. A produção superoitista de 70 já não tinha o público como grande preocupação, sendo assistido por quase ninguém em sua própria época. Espero que festivais como o Curta Oito, Kinoforum, youtube, vimeo e outros canais possam fazer essa interface. O desbunde aparenta muitas vezes como atitude vazia ou apenas risível, mas febres precisam baixar antes do colapso, não se vomita ar.
Dentre as sessões especiais do 24º Festival Internacional de Curtas, a Tomada Única foi provavelmente a que mais instigou o público, lotando a sala de exibição do MIS no último sábado à noite. Feita em parceria com o Festival Curta 8 de Curitiba, ela se constituiu da seguinte forma: oito artistas, cineastas e artistas plásticos, receberam o convite para filmar um curta de três minutos cada um em formato Super-8. Mas se a liberdade artística foi total, os participantes encontraram a limitação de não editar o vídeo em pós-produção. Ou seja, os cortes precisavam ser feitos na própria câmera e não existia a possibilidade de voltar um plano. Se a descrição do exercício parece complicada, os variados resultados obtidos pelo grupo fazem parecer um passeio no parque. Ou melhor, parque não. Num jardim das delícias de dar inveja a Bosch.
Iniciamos a deliciosa jornada com Lagoa Remix, um bem-humorado manifesto dirigido por Leonardo Mouramateus. O vídeo mistura imagens de banhistas que dançam, brincam e fazem graça para a câmera numa lagoa ocupada em Fortaleza, enquanto o áudio, no melhor estilo “carro da pamonha”, nos presenteia com um ácido remix, indo do funk ao eletrônico, mas sem antes esquecer de passar pelo apresentador Datena que indaga “Isso é manifestante? Isso ai é vandalismo”.
A crítica política e a ocupação do espaço urbano também foram temas de Amor e Outras Construções ou Uma Boca/Que Abarcasse/Tanto Cu, de Gustavo Vinagre, no qual três homens invadem prédios em construção para fazer sexo. Com ares de pornô terrorista e uma divertida direção de arte (blusão com estampa de personagens Disney, máscaras de morte), a obra protesta contra a construção desses projetos arquitetônicos comerciais e as consequências que causam no espaço urbano.
A cidade e o sexo também se encontram em Falos e Badalos, de Anita Rocha da Silveira, que registra a cômica fixação de uma garota pelos monumentos fálicos da cidade do Rio de Janeiro. O Sangue de Jesus tem Dendê, de Daniel Lisboa, brinca com a iconoclastia de símbolos religiosos, mas com muita elegância e sublime beleza. A serena movimentação, tanto da câmera quanto dos personagens, causam um efeito hipnotizante no espectador, uma curiosa sensação de paz.
Paz que Karen Black busca em seu Delete Deleite. Cansada dos excessos tecnológicos do cotidiano, a artista se revolta e troca seu pequeno quadrado de concreto por uma praia paradisíaca, onde finalmente encontra sua vingança num catártico ritual, onde a agressividade dos gestos contrastam com a leveza de sua nudez. Nesse reencontro com raízes primitivas, surge a liberdade.
E é essa a questão que cria um ponto de intersecção entre os oito curtas: o que fazemos da nossa liberdade? Como ressalta a diretora do festival, Zita Carvalhosa, a escolha pelo formato Super-8 transcende a simples nostalgia e o inegável charme estético: “nos anos 70 o Super-8 representava a liberdade de ter uma câmera na mão e fazer o que você quisesse. Hoje em dia todo mundo tem um celular para a fazer o que quiser”. E no atual contexto político do país, após a onda de manifestações que ocorreu neste ano, essa reflexão se torna ainda mais necessária, tanto em relação à utilização desses aparelhos eletrônicos quanto nas maneiras de se exercer o próprio ato de protesto.
Um momento de Lagoa Remix resume o que o projeto apresenta de melhor. “Essa prefeita não presta, eu que tô falando” diz a voz em off que, momentos depois, volta para declarar “esse mergulho é pra você, prefeita!”. Esses oito artistas, a exemplo da personagem citada, mergulham, festejam e brincam pra demonstrar o seu descontentamento. É crítico e reflexivo, mas também é bem humorado e prazeroso, sem nunca perder a fé no poder poético e provocador da imagem. O que acontece na tela é assim… um desbunde!