CRÍTICA CURTA 2020 – ÍNDICE

MOSTRA COMPETITIVA BRASIL

A identidade como verbo, por Thaynara Brito

ENTRE NÓS E O MUNDO, de Fábio Rodrigo (SP)

Com amor, a um passado que não se repita, por Alexandre Ferraz

INABITÁVEIS, de Anderson Bardot (ES)

Antes arte do que nunca, por pedro a duArte

CONSTRUÇÃO, de Leonardo Santa Rosa (RS)

O Rio Grande das ausências, por Guilherme Novello

 

MOSTRA BRASIL 1: FABULAÇÕES DO AGORA

A fabulação como gesto, por Amanda Soares

LUGAR ALGUM, de Gabriel Amaral (BA)

A propriedade de si e a objetificação do sujeito, por Mariana Peixoto Alves

ALFAZEMA, de Sabrina Fidalgo (RJ)

Da culpa à purificação, por Natália Marques

 

MOSTRA BRASIL 6: IMAGENS DO MUNDO

A identidade e o tempo, por Angelo Pignaton

O TAMBOR ME CHAMOU, de Marcio Cruz (SP)

O tambor chamou muitas, por Nayla Guerra

AOS CUIDADOS DELA, de Marcos Yoshi (SP)

Retratos do presente, por Lira Kim

 

MOSTRA LATINO-AMERICANA

Os ásperos tempos na América Latina, por Jade Louisie Felippe

OS ANÉIS DA SERPENTE, de Edison Cajás (Chile)

Materializando possibilidades históricas, por Suete Souza da Silva

KINI, de Hernán Oliveira (Uruguai)

Nós, os humanos, por Lucival Almeida

 

MOSTRA NOVAS ÁFRICAS

Olhos abertos à África, por Cacá Espíndola

BABLINGA, de Fabien Dao (Burkina Faso)

O fantasma sedutor do passado, por Pedro Reis Guimarães Rosa

ZUMBIS, de Baloji (Congo)

Uma geração de zumbis digitais, por Lecco França

 

MOSTRA INTERNACIONAL 1 E 2

O nosso infame upgrade, por Alexande Diniz

UM MUNDO MAIS HUMANO, de Gavin Hipkins (Bélgica, Nova Zelândia)

Por um mundo menos humano, por Pedro Pimenta

CATIORROS, de Halima Ouardiri (Marrocos)

O esvaziamento da existência e a beleza da diversidade, por Gustavo Furtuoso

 

MOSTRA LIMITE 1: BRUTALISMO

A força bruta da matéria, por David Terao

A MAIOR MASSA DE GRANITO DO MUNDO, de Luis Felipe Labaki

São Paulo não contém o seu júbilo, por Douglas Manolo

FORMAS CONCRETAS DE RESISTÊNCIA, de Nick Jordan (Reino Unido)

Esperança em forma de concreto, por Renato Teixeira de Magalhães

 

PROGRAMA TERROR NA TELA

Panorama sobre medos solitários, por Murilo Morais

DESERTO ESTRANGEIRO, de Davi Pretto

O horror como ressignificação das brutalidades históricas, por Antonio Victor Cardozo

NA PRAÇA ESCURA, de Nicholás Schujman (Argentina)

Os mortos-vivos, por Demerson Souza

A IDENTIDADE COMO VERBO – Mostra Competitiva Brasil

por Thaynara Brito

Na Mostra Competitiva Brasil do 31º Festival Internacional de Curtas, não há destaque para a exotificação barata ou o tradicionalismo repetitivo de dramas burgueses afogados em irrelevância. Ao contrário, é aqui que narrativas relegadas à margem surgem com força em reflexão e reação à realidade política do momento nacional. “Não entenderam minha história!”, frase do menino protagonista de Jardim fantástico, é oriunda de uma brincadeira mas parece resposta direta a um momento de extrema efervescência política, quando um governo autoritário promove esquecimento histórico com o apagamento da memória brasileira preservada em seu cinema, rompantes de brutalismo que ameaçam a Cinemateca de São Paulo e a própria realização fílmica. Mas no filme de Fábio Baldo e Tico Dias acompanhamos uma visão indígena fantástica e sincera, que tensiona a realidade com a precisão técnica de sua forma e o estranhamento de suas atuações, da espera por não se sabe o quê e de sua direção de arte curiosa, que relaciona figuras mágicas da floresta a dispositivos tecnológicos.

Recorrente nesta edição da mostra e tradição latina em resposta a regimes autoritários, o gênero fantástico aparece como reflexo dos medos e anseios individuais e coletivos, usa do estranhamento e da realocação para reagir a uma realidade incompreensível em sua tendência retrógrada e assustadora. É o caso do pernambucano Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho. Partindo da busca por Roberta, somos deixados com um objeto misterioso e inexplicável que une as mulheres e indica uma rede de segurança afetiva e revolucionária que se opõe à violência do país que mais mata pessoas trans no mundo. Roberta retorna ao fim, como heroína intergaláctica, e na poética deste desfecho inesperado começa o paralelo com outro curta de nome parecido, Inabitáveis.

Se naquele um mundo intolerante é inabitável, neste quase ensaio é com grande sensibilidade que Anderson Bardot se inspira no espetáculo de mesmo título para questionar o lugar e a visão que diminuem os corpos e existências fora do padrão, no primeiro plano já revelando sua potência ao filmar uma coreografia em meio a um tenso jogo de luz e sonoridade pontuais. A conexão que o realizador faz entre afetividade e resistência pela existência é gradual. Está na leitura de arquivos do período escravagista; na dança que questiona presenças colonialistas na paisagem urbana da cidade de Vitória; e numa personagem que surge em tela vulnerável frente a seus agressores, mas que encerra o filme com uma performance ao som da chuva que é dor, liberdade e grito.

Similar afetividade identitária existe em Perifericu. Feito de maneira coletiva em São Paulo – direção e outras funções compartilhadas – por quem vive e sente as questões retratadas, carrega em si um trânsito acurado entre o ficcional e o documentário, talvez um irmão mais maduro de Bonde, filme também paulista exibido na 30ª edição do festival. Sobre estes dois e outros que têm se alinhado numa tendência a realizações vibrantes e relevantes: que respiro bem-vindo, e que os favela movies da burguesia não retornem nunca mais.

Com narrativa linear, Receita de caranguejo, de Issis Valenzuela, apresenta em longos planos estáticos uma mãe e sua filha lidando com perda e descoberta. No meio de grandes quadros abertos do céu cinzento e do mar da Baixada Santista, as duas se destacam da realidade, entre o desenho de som elaborado, esquisito e furtivo. A mãe é fala, a filha é silêncio. Um jogo de atuação que transborda afetividade compartilhada e aponta a grande presença de Preta Ferreira, atriz que é uma das lideranças do movimento de luta por moradia em São Paulo.

Numa potência das questões sociais que permeiam toda a curadoria, está a viagem angustiante proposta por A morte branca do feiticeiro negro. O filme constrói através de imagem de arquivo a ambientação para um relato que não se ouve, mas se lê na tela, e nessa obrigatoriedade do olhar em associar imagens e palavras se aprofunda o choque à medida em que a carta de Timóteo vai sendo exposta. O filme de Rodrigo Ribeiro possui qualquer coisa de indizível. Em paralelo com o conceito de punctum cunhado por Roland Barthes, atinge, transpassa, desperta e fere. A ele não se assiste, se experimenta.

Ao fim, a curadoria desta edição nos apresenta diversidade de realizações que dialogam principalmente na união identitária e afetiva como grande forma de reação política. Por um lado, assegura ruptura, com filmes poéticos e alguns processos de produção fora da curva; por outro, ainda mantém uma predominância viciada na metade mais chuvosa do eixo Rio-São Paulo, com sete dos 12 filmes selecionados sendo paulistas.

COM AMOR, A UM PASSADO QUE NÃO SE REPITA – Entre nós e o mundo, de Fábio Rodrigo (SP)

por Alexandre Ferraz

Entre nós e o mundo (2019), de Fábio Rodrigo, parte de um assunto pesado: a vida de uma mulher negra, grávida, após ter perdido o filho mais velho assassinado pela polícia durante uma revista. Mais do que um drama para a mãe, uma revoltante realidade sistêmica nas periferias do Brasil. Apesar de tudo isso, o tratamento dado pelo diretor ao tema desemboca em esperança, configurando uma sincera homenagem, sem perder a seriedade.

O diretor intercala em seu relato técnicas de documentário e ficção. O filme começa com um grupo de jovens cantando na escada de uma favela, cena filmada de maneira aparentemente bem ensaiada, dando a impressão de se tratar de uma ficção. Em seguida, vemos imagens da comunidade de Vila Ede enquanto ouvimos depoimentos de familiares sobre o assassinato do menino Theylor pela polícia. É aos poucos que o filme se assume mais como um documentário, ainda que não deixe de lado mecanismos típicos de um cinema ficcional, como uma postura às vezes encenada dos integrantes da história.

Tal linguagem não é novidade no trabalho do diretor, que aplicou essa ficcionalização do documental de forma até mais atuada em seu curta de estreia, Lúcida (2015), que discorre sobre a ausência da paternidade e os sofrimentos de uma mãe solteira na periferia. Nos dois trabalhos, Fábio traz o familiar e o pessoal para a tela. Em Entre nós e o mundo, notamos que a história em foco é a de sua prima, Erika, ao ouvirmos áudios de whatsapp trocados pelos dois enquanto vemos imagens de arquivo pessoal. Neste momento, o diretor explicita seu método de pesquisa, o que passa a impressão que o filme foi tomando forma enquanto era feito. Essa presença mostra a coragem do diretor e principalmente de Erika ao exporem seus íntimos para contar suas histórias.

No entanto, ao contrário de seu primeiro filme, o diretor traz aqui uma abordagem mais delicada sobre um tema real. É bem verdade que, ao descobrirmos o acontecimento, sente-se um peso e uma imensa tristeza. E há ainda a preocupação da mãe com a segurança de seu outro filho jovem. Mas o filme em si situa-se após os primeiros estágios de um luto e foca na atitude da mãe em deixar as recordações terríveis para trás e seguir vislumbrando o que há por vir – postura revelada pelo foco na gravidez e no nascimento de sua filha.

Fábio concretiza sua visão voltada a seguir em frente com uma sequência de imagens de crianças convivendo nas ruas da favela, ruas estas anteriormente vazias. Quem sabe algumas dessas crianças vão conseguir concretizar seus sonhos, diferente dos mais velhos. Quem sabe as ruas da favela serão ocupadas por seus moradores livremente, e não por uma violência racista e opressora. A trilha musical de fundo explicita a postura de Fábio e Erika de enxugar as lágrimas, lembrar as boas recordações e continuar, por mais melancólico que isso possa ser no início. É assim que o diretor conclui sua homenagem a todos os Theylors presentes por aí, com a esperança de que os mais jovens possam ter outros desfechos em suas histórias.

ANTES ARTE DO QUE NUNCA – Inabitáveis, de Anderson Bardot (ES)

por pedro a duArte

Inabitáveis acompanha uma companhia de dança contemporânea sediada em Vitória, Espírito Santo, durante seus ensaios para o próximo espetáculo. Enquanto os bailarinos principais parecem ter dificuldades para encontrar seus personagens, o coreógrafo conhece Pedro, uma jovem que não se identifica com o gênero masculino.

Dessa forma, o curta irá se valer de longas sequências de dança para refletir sobre a vivência negra e transgênera, principalmente no ponto em que elas se mostram semelhantes. Após um prólogo, somos apresentados ao coreógrafo enquanto ele faz uma pesquisa para seu segundo trabalho como guia de sítios históricos: ele lê sobre quanto custava um escravo no ciclo do café – em paralelo, vemos estátuas de padres e colonizadores. Depois, somos apresentados a Pedro enquanto ela é agredida por rapazes mais velhos que cospem em seu rosto. A violência se dá presumivelmente porque a garota não performa uma cisnormatividade – a cena é crua e nos aproxima da angústia da personagem.

A obra coloca os corpos negros e transgêneros como impossíveis de serem habitados, uma vez que em toda oportunidade a sociedade se prontifica para massacrá-los. Mas Pedro é incansável, capitã de sua alma: ao conhecer o coreógrafo, ela não se contenta com o desfecho sangrento de um evento histórico sobre uma revolta de escravos e tenta propor um novo final. Se por um lado a geração do coreógrafo parece ser mais resignada, a geração de Pedro se recusa a aceitar que as injustiças sociais continuem vigentes.

A jovem participa de uma oficina na companhia, e a narrativa do curta sugere que foi ela que inspirou os bailarinos para que finalmente encontrassem seus personagens. É aí que começa a maior sequência de dança do filme: após um dos bailarinos ser abençoado por uma “rainha das fadas” (interpretada pelo mesmo ator que faz Pedro), vemos os bailarinos realizando a sequência de dança de seu espetáculo em diversos pontos da cidade de Vitória, que vão desde a laje e ruelas de uma favela até prédios históricos – a edição parece teletransportar os bailarinos durante seus movimentos. Por muito tempo, a comunidade LGBT se viu obrigada a expressar seus afetos, mesmo que gestos de carinho singelos, em ambientes fechados por conta do medo e da opressão; agora, nós os vemos povoando a cidade, se beijando seminus em frente a igrejas ao mesmo tempo em que o corpo negro sai da favela para também ocupar prédios históricos e se ressignifica. A sequência se encerra no Teatro Carlos Gomes, inaugurado em 1927, onde os bailarinos são ovacionados, aplaudidos de pé pelo público – através deste evento tão significativo, os vemos habitando um espaço que durante muito tempo lhes foi negado.

Se na primeira vez que vemos Pedro ela está sofrendo uma agressão, na última vez que a encontramos ela está mais uma vez lutando pelo futuro que sonha ter enquanto bailarina. Dançando na chuva, a garota apresenta sua coreografia aos bailarinos e coreógrafo da companhia. É como se a chuva e a dança lavassem sua alma, renovando-a, deixando-a mais forte.

Através da dança, uma forma artística que trabalha em primeira instância com o corpo, Inabitáveis traz a Arte como uma maneira de tornar possível habitar estes corpos e ocupar espaços que foram negados. Quando direitos básicos nos são violentamente retirados e nossas vidas empurradas para a margem, a ação criativa é uma forma de resistência e revolta, uma forma de propor e conquistar um novo mundo.

O RIO GRANDE DAS AUSÊNCIAS – Construção, de Leonardo Santos Rosa (RS)

por Guilherme Novello

No que é difundido como a “cultura gaúcha” do sul do Brasil, ecoa sempre esse personagem patriarcal criado por Simões Lopes Neto no livro Contos gauchescos (1912); uma mistura do gaúcho argentino com o cowboy sul-americano, uma inegável celebração aos personagens da guerra separatista dos farrapos. Não é por acaso que, em Construção, é justamente essa figura que se ausenta. Pois muito além das lendas do gaúcho rancheiro, o Rio Grande do Sul é um lugar construído por mães solteiras – e isso tem a ver com diversos sintomas expostos pelo curta, e com o impulso cultural do estado em definir esse personagem paterno como figura central.

Falamos de um dos estados recordistas nos números da violência doméstica no Brasil, um dos lugares onde mais se comete feminicídio, seguido de suicídio, pela não aceitação do fim de um relacionamento, e outras razões similares; no tocante à paternidade ausente, os números estão na alarmante média brasileira. O fantasma desse personagem patriarcal popular, que gera identificação no rio-grandense médio, que o faz sonhar com a glória da guerra, acaba tornando-o incapaz de lidar com os dramas que envolvem a própria existência como pai, namorado, profissional, ou cidadão. Cria-se uma aflição, uma angústia que envolve a expectativa de uma performance do masculino rígida e irredutível, onde não cabem fragilidades e vulnerabilidades.

Este curta realizado na Universidade Federal de Pelotas coloca o tempo todo essa questão em cena. Esse personagem está presente através de sua ausência e de como esta ecoa sobre aqueles que a sofrem. Enquanto Andréia conta com a ajuda das vizinhas para construir uma nova casa para a família após o despejo, os filhos brincam com suas armas de brinquedo, montam em suas motos imaginárias, vivem numa realidade lúdica tomada pela performance desse gaúcho patriarcal, de maneira completamente alheia às feridas deixadas pelos episódios de violência doméstica que marcaram tão drasticamente o destino da família.

Andréia chega a explicitar que, após ser ameaçada pelo marido, ainda teve de “convencer” os filhos: “…vocês estão vendo?”; no que fica subentendido como uma extrema dificuldade em desconstruir a figura do pai no imaginário dos filhos, mesmo após um episódio que condensa anos de uma conduta abusiva e violenta no ambiente familiar. Aliás, é justamente nesse jogo semântico entre construção e desconstrução que o filme muitas vezes se apoia, e isso se evidencia quando o título aparece junto à uma imagem em que os personagens desmancham a antiga casa. Seu material será aproveitado; a partir da velha casa constrói-se um novo lar.

Temos o momento em que o garoto diz à mãe que quer ser policial quando crescer para defender a família, e recebe como resposta a última cena do curta, em que a movimentação das vizinhas no whatsapp é suficiente para conter a ameaça dos assaltantes que assustam a comunidade. Aos poucos, os garotos ajudam a mãe na cozinha, colhem algumas folhas de couve, e de repente toda uma cultura, uma literatura, um cinema que passou séculos na garupa desse gaúcho patriarcal agora encontra um lar nessa nova construção, onde sua ausência é uma espécie de pedra fundadora.

A IDENTIDADE E O TEMPO – Mostra Brasil 6: Imagens do Mundo

por Angelo Pignaton

“Os filmes de cinema são documentos de historiador para guardar em arquivos”, diz uma das notas sobre o cinematógrafo do cineasta francês Robert Bresson (1901-1999). Quem diz algo muito semelhante é o também francês Eric Rohmer (1920-2010), em sua célebre frase “todo bom filme é um documento de seu tempo”. Certamente, as obras da Mostra Brasil 6 – Imagens do Mundo apresentam debates e questões muito atuais, frutos de um tempo em que identidades historicamente invisibilizadas vêm lutando e conquistando espaços que anteriormente foram negados.

No entanto, mais que documentos de seu tempo, esses filmes tematizam o tempo. São olhares direcionados ao passado e ao futuro – muito além de simples arquivos – que proporcionam um lugar de encontro com o presente, numa postura ativa diante da história. Não apenas imagens do mundo, mas também imagens ao mundo, autoconscientes de seu vigor e potência.

Há uma clara consciência desses filmes sobre a importância de seus olhares direcionados à história. Para o passado, o resgate das histórias, símbolos e tradições formadores de uma identidade. Para o futuro, o registro e a preservação dessas identidades. Para o presente, a simples e potente afirmação delas. São quatro filmes que não precisam mostrar sua força – eles simplesmente são.

Nesse sentido, talvez O tambor me chamou (SP) seja o filme em que essa essência potente por si só seja mais evidente. Em vez das imagens em movimento, o filme opta por registrar o grupo Ilú Obá de Min por meio de fotografias still, eternizando as integrantes do Ilú numa série de instantes excepcionais. O filme parece acreditar na fotografia como a forma mais adequada de documentar a ontológica força do coletivo, visto que as tradicionalíssimas 24 fotos por segundo poderiam vulgarizar e banalizar o grupo injustamente. O instante fotográfico, ao contrário, singulariza as imagens, reitera a importância do grupo ao mostrar os rostos e corpos, e reforça o resgate dos elementos constituintes da identidade histórica – ao registrar as roupas, colares, miçangas e instrumentos. Seu conteúdo é potente em sua essência, e a forma age para fazer justiça a ele. Como diz uma das integrantes em seu relato: “uma mulher tocando tambor na avenida já é um ato político”.

Algo semelhante acontece em Agahü: O sal do Xingu (SC). A direção de Takumã Kuikuro, cineasta membro da aldeia indígena Kuikuro, toca na questão relativa à força do simplesmente “ser”. O microdocumentário de pouco mais de 1 minuto registra a relação que povos indígenas do Xingu estabeleceram com o sal e o fato de um cineasta indígena documentar os ritos, tradições e, sobretudo, a cultura de sua gente é notável por si só. Além disso, o filme também possui essa presença atuante diante da história, de alguém que não se satisfez em simplesmente ser objeto das imagens e agora quer modificá-las sob a lente do seu olhar. Nesse sentido, os planos finais do filme, em que as crianças posam e olham diretamente para a câmera, são significativos e autoconscientes de sua potência – olhares que cintilam e cintilarão pela história.

Esses olhares cintilantes encontram paralelos em outros planos posados da mostra, dessa vez em Aos cuidados dela (SP). Em vez de crianças indígenas, Marcos Yoshi enquadra senhorinhas japonesas, colegas de sua avó. Esses planos tensionam ainda mais o filme, e a dramatização de uma relação tão pessoal ganha progressivamente contornos documentais. Mais uma vez, a autoconsciência da relevância histórica revela-se, potencializando a busca pela afirmação e preservação da identidade dos nipobrasileiros presente no filme.

A preservação de uma identidade é também um dos temas do filme de Sylvio Lanna. Em meio a um mundo de imagens ora projetadas em tela, ora guardadas nas gigantescas pilhas de película, Lanna busca seu filme perdido, do qual escutamos apenas seu áudio – um filme sem imagens. In memorian – O roteiro do gravador (RJ) é uma obra que aponta para a materialidade da imagem e a importância de sua preservação no processo histórico, ecoando essa ideia na conduta do restante da mostra, repleta de visões direcionadas à nossa história. Preservar as imagens do passado e “aproximar o futuro do presente, um presente de cor e harmonia”.

O TAMBOR CHAMOU MUITAS – O tambor me chamou, de Marcio Cruz (SP)

por Nayla Guerra

“O tambor me chamou”. Assim Baby Amorim explica sua entrada para o Ilú Obá de Min. Ao lado de outras sete companheiras, ela traz o relato de sua relação com um dos blocos mais tradicionais do carnaval de São Paulo. Como uma colcha de retalhos, o curta dirigido por Márcio Cruz costura os depoimentos individuais para contar a história do coletivo.

Opta-se por fotografar as mulheres falando, tocando e dançando em vez de filmá-las. Assim, é na fragmentação visual que se constrói a fluidez da música e da dança. Para tanto, o movimento é evocado pelo som, responsável por tecer e sustentar a narrativa, colocando a textura das vozes, o relato e o batuque em primeiro plano, tal qual a proposta do Ilú Obá de Min, que recupera histórias silenciadas por meio da manifestação sonora da cultura afrobrasileira.

O bloco é um evento criado na relação entre a bateria e o público. Trata-se de uma experiência física, na qual os instrumentos tocam e a vibração do som é sentida na pele de quem assiste. Por isso, esta experiência não pode ser transposta para o audiovisual, que anula o aqui e agora, a presença física e material dos corpos. Pensando nisso, o uso de fotos, ao invés de vídeo, aparece como solução para a manutenção da relação entre a obra e o público. As imagens borradas e a montagem apenas sugerem o movimento, criado mentalmente pelas espectadoras. Desse modo, o curta consegue transpor não a experiência do evento, mas a dialética entre o bloco e as espectadoras.

A coletividade do Ilú Obá de Min é outro elemento ressaltado pela estrutura do filme. Em diversos momentos, há a transição da foto de uma mulher entrevistada sozinha para outra imagem com todas juntas. Isso é feito utilizando o recurso da sobreposição, que faz com que, por alguns segundos, vejamos as duas imagens simultaneamente, reforçando a ligação entre cada membra e o grupo. Além disso, a opção por fotos rompe com a sincronia entre imagem e som. Com isso, não sabemos se quem vemos é quem escutamos, o que retira os relatos do campo do sujeito único para a possibilidade da existência de múltiplas vivências correlatas.

Sem a pretensão de reproduzir e representar o Ilú Obá de Min em tela, o diretor opta por capturar um retrato e registrar relatos. Sabendo que alguns eventos não são os mesmos sem a presença física, é preciso criar outros tipos de relação, pois o bloco depende tanto da ligação entre público e bateria como da coletividade e da junção de fragmentos. É a partir do toque de cada instrumento que se forma a densidade sonora, a pulsão e a força do grupo. Assim, O tambor me chamou nos mostra que o tambor, na verdade, chamou muitas!

RETRATOS DO PRESENTE – Aos cuidados dela, de Marcos Yoshi (SP)

por Lira Kim 

O neto insiste em lavar a louça enquanto sua avó empurra-o para longe da pia da cozinha – e, para fora do quadro. Assim, começa Aos cuidados dela, em que contracenam o próprio diretor Marcos Yoshi e sua avó, Mitsua Furukawa.

São breves e pontuais os diálogos bilíngues entre neto e avó. As poucas palavras trocadas entre os dois – algumas sem tradução para o português – revelam apenas o suficiente para compreender o que está contido nos gestos e nos silêncios em torno dos quais o filme se constrói. Por meio de planos vazios que intercalam os jogos de cena, o tempo flui junto com a água da chuva torrencial. Além de demarcar o ritmo e o clima, esses planos também revelam outros elementos que nos contam mais sobre a casa nipobrasileira onde se passa a maior parte do filme, dando a oportunidade de nos aproximarmos mais da história que está sendo contada.

Diluídos entre as rendas e os crochês comuns nas casas brasileiras, estão presentes pinturas e um pequeno altar, que por sua vez remetem a tradições trazidas para cá, muito tempo atrás. Parte dessa história é representada pelo retrato do avô, mas transmitida pela comida preparada pela avó, cujas receitas Marcos tenta registrar. No entanto, o objetivo inicial da visita aos poucos é frustrado, sentimento que rebate nas bordas da tela reduzida e também atinge o espectador. No lugar, reparos domésticos e telefonemas de São Paulo acabam ocupando a estadia no interior. O caderno dedicado para a ocasião acaba esquecido – mas, ao ser deixado de lado, abre espaço a novas sensações.

Dessa forma, estabelecem-se novas tensões que movem a narrativa além daquelas entre diálogos e silêncios. O mesmo quadro reduzido que restringe a nossa visão do passado emoldura e singulariza o presente. Contidos nele, os momentos compartilhados entre avó e neto, dos quais emergem outras memórias e afetos. O limite do quadro também cria relações entre espaço da tela e espaço diegético e brinca com a percepção de quem assiste. O constante tensionamento dessas arestas da imagem nos leva ao mesmo questionamento do diretor: “Vó? É isso mesmo que eu devia lembrar?”  Assim, Aos cuidados dela, um híbrido de documentário e ficção, também reflete sobre o limiar entre a memória e a fabulação.

Por fim, a contraposição entre passado e presente se repete na recorrência dos retratos estáticos pendurados na parede e aqueles realizados durante o registro do filme, emoldurados pela própria tela ou pelos limites das superfícies que refletem os rostos das personagens. Então, sugere-se outro questionamento: quem conta a história e quem é lembrado por ela? Aos cuidados da avó, o neto-diretor se coloca em tela para falar de suas próprias raízes. Ele ressignifica seu próprio papel na transmissão da história da imigração japonesa, por meio deste documentário em que o essencial não está naquilo que é dito, mas no que é (ou não) mostrado.

OS ÁSPEROS TEMPOS NA AMÉRICA LATINA – Mostra Latino-Americana

por Jade Louisie Felippe

A América Latina sonha em ser livre. Este sentimento tem se tornado cada vez mais febril em nossos corpos cujas veias sempre correram sangue ardente. Estamos em busca das nossas identidades colonizadas e não acreditamos mais no perdão de nossos colonizadores, tamanhas são as desgraças sofridas pela nossa tão amada, rica e chuvosa América, que só pode contar com o seu povo e nada mais.

Como está o povo, enquanto o que podemos fazer é apenas sonhar com a real ideia de liberdade? O povo está mal, muito mal, e aí entram os homens maus. O povo latino sofre com a maldade humana, e nós ainda não acertamos as contas com os caras. Essa onda de movimentos, artísticos e políticos, que clama por justiça pelo que aconteceu no passado e permanece impune e sem explicações até hoje, ecoa por toda o continente, tanto na cena musical quanto no cinema. Pudemos sentir o impacto desta onda vanguardista em três filmes que questionam os diversos e brutais crimes cometidos pelas ditaturas militares, em diferentes formatos.

La Mamita, de Laura Donoso (Chile), nos avisa logo no início: nunca confie em alguém que achava que as coisas eram boas nos tempos da ditadura. Este engenhoso filme, feminino e feminista, conjuga a própria tortura, aquela praticada durante a ditadura de Pinochet, com a perversidade humana, transformando-as no seu elemento de terror. Afinal, o espectador sabe do que aquela enfermeira é capaz de fazer. Os anéis da serpente, de Edison Cájas (Chile), se passa em 1991, um ano após o término da ditadura, e inova ao mostrar um drama “do outro lado”, tomando cuidado para mostrar a visão humanizada que a personagem tem si de própria sem confundi-la com o pensamento do próprio filme. É um suspense que nos faz refletir sobre as fugas e os enfrentamentos deste passado que não pode ser apagado com uma mera borracha. Já o documentário HH, de Julian Setton (Argentina), é um reencontro com o que restou do passado: apenas memórias. No presente, sobram saudades e perguntas.

A maldade do homem é objeto nas suas mais variadas formas de expressão e de representação nas telas. Ultimamente, parece não haver senão somente uma visão pessimista sobre o futuro da humanidade. O latino ainda sonha, sabe que isso é ousadia, e mesmo assim segue. Nestas três sessões, fez-se valer o notável número de filmes de terror exibidos, que ganharam uma sessão especial, reafirmando a ótima qualidade dos filmes latinos de gênero.

El remanso, de Sebastián Valencia Muñoz (Colômbia), é um dos filmes que mais questiona a violência cometida pelo homem – este homem do sexo masculino, criador das armas, da bomba atômica, que mata por dinheiro. A fazenda não é mal assombrada por fantasmas; são os homens que a deixam assustadora e perigosa. A origem da violência cometida na nova moradia da família é o suspense que permeia aquele lugar. Apesar de indefinido, nós sabemos quem é o sujeito do crime. Todos os homens são capazes da maldade, inclusive o marido quando olha maliciosamente para a enteada adolescente. O homem é o próprio terror.

Apesar de todo o pessimismo, reflexo dos fantasmas do passado que ainda nos assombram e desse presente tão desesperançoso que vivemos, há quem ainda consiga enxergar poesia no ser humano. Afinal, precisamos de alguma beleza para continuarmos a sonhar. Mãe chuva, de Alberto Flores Vilca (Peru, Bolívia, Argentina), é a bonita e triste poética dos esquecidos. Uma homenagem a uma mulher que, segundo o filho, inexiste para o mundo, mas é a responsável por encher os rios com suas lágrimas. Solitária desde o dia do seu nascimento, acostumou-se à invisibilidade e às injustiças sociais. Onde encontrar a poesia quando na vida acumulam-se histórias tristes? Para isso, fez-se necessário ser antes filho que diretor.

Mãe chuva se junta aos filmes da primeira sessão e levanta uma reflexão sobre a questão da vida durante a terceira idade, tema que já vem sido discutido, aos poucos, pelos festivais. A principal reflexão se dá quanto à estrutura familiar após a velhice, e as diversas formas de abandono familiar do idoso, que acontece nas camas de hospitais, como em S.O.S., de Ángela Tobón Ospina (Colômbia), ou nos vazios de suas próprias casas, como no mais interessante Kini, de Hernán Olivera (Uruguai), comédia ácida que também critica a tradicional família uruguaia.

Mesmo com toda esta densidade dos filmes e das bandeiras defendidas, a Mostra Latina segue fluida. As sessões nos guiam sabiamente por esta América de gente criadora e inovadora, mas que também não se esquece e quer acertar as dívidas com o passado.

Os tempos são ásperos, mas o cinema latino continua a sonhar.

MATERIALIZANDO POSSIBILIDADES HISTÓRICAS – Os anéis da serpente, de Edison Cajás (Chile)

por Suete Souza da Silva

A imersão cinematográfica nas estruturas obscuras do passado pode ser operada de muitas formas, ainda mais quando se propõe buscar reparação pela denúncia. Ao posicionar seu curta Os anéis da serpente na abertura democrática do Chile, o cineasta e pesquisador Edison Cájas articula instigantes técnicas de gênero e linguagem para reescrever os fatos e as revelações assustadoras que sucederam o período ditatorial de seu país.

Circunscrita à alvura da clínica higiênica na qual se define, Ana é questionada sobre o que sente a respeito de sua presença. Sua resposta hesitante invoca a imagem de uma serpente que pode tanto estar envolvendo-a quanto abraçando-a, aprofundando-se invasivamente nos pensamentos que ela possui pelo intermédio do olhar, não no que ela sente. De sua sutil evasiva, uma cartela contextualiza a protagonista no tempo e no espaço de sua casa: Chile, 1991.

A inflexão ao ambiente doméstico, partindo da percepção imagética e psicanalítica sobre sua privacidade, discrimina os elementos e os cenários iniciais do curta como locais de retorno circular à tomada de consciência. Seja pelas ligações não atendidas pela sua servil empregada doméstica, seja pelo rádio onipresente de sua dependente Úrsula, seja pelas notícias na televisão ou pela carta aberta com uma intimação, os meios atuam como a mensagem: Ana apresenta-se, há muito tempo, em estado de negação.

Longe do altruísmo desempenhado em torno das vulnerabilidades de sua filha, é na vida pública que a protagonista interpretada pela formidável Paulina García se concatena às posições de poder e influência no magistério. Fazendo valer sua posição de superioridade no saber e na prática, a médica forense leciona métodos pouco dialógicos – da reveladora nostalgia pela perícia sem prévia averiguação dos corpos, os métodos da docente são postos sob suspeição apática pelos jovens estudantes chilenos que farão parte da futura geração de médicos do país.

Confrontada pelos dispositivos à sua disposição ou pelas confidências ameaçadoras entrevistas nos sussurros trocados com um ex-companheiro, para revisar o que foi pactuado sobre o passado, a médica forense recusa-se a reconhecer o que guarda sob sua redoma: um segredo insidioso que paulatinamente vem à tona, em público, na medida em que ela tenta proteger-se atrás das fragilidades que compõem a infraestrutura de sua vida privada.

Do plano-detalhe eisensteiniano lançado à comida repleta de larvas até a escandalosa revolta dos estudantes durante uma prova, Os anéis da serpente consegue transitar do suspense ao thriller psicológico com uma maestria técnica repleta de referências. Uma ficção que valoriza o potencial dos meios, e da arte, para conceber uma dialética material sobre a história: “você tem o direito de saber a verdade, e a verdade está nos fatos”.