O REGISTRO FEMININO DAS ANCESTRALIDADES INDÍGENAS – Mostra Amotara 1

por Bernardo Bruno

Na Mostra Amotara 1, o registro cinematográfico se torna ferramenta de resistência das mulheres indígenas frente às reivindicações de causas como a inclusão social e política, a demarcação de terras e o fim da violência contra suas culturas e indivíduos. “No que você vai trabalhar com as comunidades quando crescer?”, pergunta o pai e diretor Yariato Juruna à sua filha em Mandayaki e Takino. Ela responde: “com isso (aponta para câmera)”. A câmera, o tripé e o microfone – ferramentas da contemporaneidade – são protagonistas fundamentais na preservação dos saberes e relações ancestrais. Cada gesto e ação em tela tem enorme valor e destaque – a tecelagem em Tecendo Nossos Caminhos, a produção com o cipó em Cipó Tupi, o idioma em Os espíritos só entendem nosso idioma  ou a relação de pais e filhos em Mandayaki e Takino e Pará Reté. Os cinco documentários foram dirigidos ou codirigidos por mulheres indígenas e foram selecionados do catálogo da Mostra Amotara – Olhares das Mulheres Indígenas, de 2021.

Apesar da urgência temática dos discursos, a forma dos cinco documentários não se deixa afetar completamente por essa indignação. Muito pelo contrário, as obras adotam o lírico, o contemplativo, o sublime ou até o lúdico e o infantil sem nenhuma pressa. Em Mandayaki e Takino, acompanhamos o cotidiano dos filhos de Yariato Juruna e Dadyma Juruna, casal de diretores do curta. A câmera de Yariato e Dadyma desce até a altura do olhar de Mandayaki, filha mais velha de três anos, e Takino, com apenas um ano de idade. Os diretores nos inserem no patamar infantil, e presenciamos cada brincadeira entre as duas crianças com a maior atenção possível. Se Mandayaki está brincando de peneirar alimentos com um ventilador quebrado ou ajudando sua mãe a moer um alimento com um pilão, a câmera se fixa praticamente no chão acompanhando cada gesto da criança, deixando os adultos em segundo plano. Quando vemos a sua mãe, a câmera registra de baixo para cima, nos situando no olhar daquelas crianças. O filme ludicamente nos transporta diretamente para a infância e lida com a questão geracional na passagem das práticas ancestrais para os mais novos.

Os filmes da Mostra Amotara nos transportam para dentro dos acontecimentos, sociedades e vivências. Nada é visto de fora para dentro, a essência de filmes que valorizam a diversidade e a importância da representatividade de povos com quase nenhuma voz no Brasil contemporâneo.

Se Mandayaki e Takino retrata o infantil no olhar da criança, Para Reté retrata a maternidade pelo olhar de duas mães: Elsa, mãe de Patrícia Ferreira Pará Yxapy, que também é mãe e diretora do filme. O filme expande o debate sobre ancestralidade, incorporando diversos elementos místicos nos diálogos e na forma. Para Reté revela-se o filme mais contemplativo do programa. Ferreira Pará Yxapy dilata o tempo dos planos, concedendo-lhes uma característica mística e poética, mesmo que ainda muito ancorada na realidade cotidiana. Numa das cenas, a cineasta explora a produção de artefatos tradicionais por Elsa, sua mãe; em outro momento, sua filha mexe no celular assistindo O Rei Leão. Logo depois, ela é vista andando de bicicleta vestida com uma camisa da seleção argentina, enquanto um reggaeton toca no fundo. O filme retrata esses contrastes geracionais e estéticos não com uma visão conservadora ou negativa, mas sim de aceitação, identificando tudo como parte do que é ser indígena em 2021. A cineasta lança assim um olhar contemplativo que encontra a beleza em todas as situações, das mais tradicionais às mais modernas.

De tantas ideias, fica a fala de Marta Tipuici em Tecendo Nossos Caminhos, de Cledson Kanunxi, Jackson Xinunxi e a própria Marta: “No início, o Nanã é frágil, vulnerável, desmancha nas mãos. Depois de colhido e penteado, é transformado em fio forte. Com muito trabalho, sua trama se torna rígida e resistente. Assim somos nós, povos indígenas. Tecer o nosso caminho é como tecer uma rede, fio por fio, para conseguirmos construir nossas vidas e nossa resistência.” O curta alterna cenas da vivência do povo Manoki, com foco nas interações de Marta Tipuici e sua avó tecendo uma rede. Enquanto se constrói a rede, fio a fio (ou plano a plano), se entrelaça um poderoso discurso político de resistência e valorização da tradição ancestral.

As obras desta seção mostram uma qualidade ensaística muito forte, sempre abordando temas políticos, fio a fio, através de um escopo micro do cotidiano de cada povo – entre o poético, o documental e o experimental – para compor um discurso macro, ou uma rede de discursos, que engloba causas nacionais. Que a Mostra Amotara contribua com a tecelagem de uma causa maior.

 

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