A questão do roteiro nos curtas brasileiros

feliz aniversario-ed

por Adriana Gaeta –

Acompanhei com muito interesse as mostras Brasil, Latinos e Panorama Paulista. E o fato é que neste apanhado de curtas que assisti, o cinema brasileiro está em atraso em pelo menos um aspecto: o do roteiro. Sim, nós brazucas somos extremamente criativos, inovadores, temos um ritmo de narrativa e de montagem que faz com que nossos filmes (em geral) sejam gostosos de assistir. Sim, temos uma gama de temas abordados absurda, personagens reais (no caso dos documentários) interessantíssimos, nosso país tem histórias incríveis para contar. Mas como diz Nelson Rodrigues em sua famosa frase “teatro não é bombom com cereja” está faltando algo mais também em nosso cinema.

Minha impressão é que os filmes estão aí para agradar, são de fácil assimilação. Está faltando roteirista. Roteirista que acredite não na grande ideia, mas em ir mais fundo nos temas. Roteirista que acredite na inteligência do espectador. Roteirista que me convide para dançar, mas não conduza a ação da dama. Por outro lado, os latinos veem com uma força e um grau de maturidade na abordagem das personagens impressionante. Os hermanos tem técnica cinematográfica, mas também tem uma narrativa madura, densa, complexa. Eles fogem do maniqueísmo que é tão caro a nós brasileiros e em filmes como Bezerra, Feliz aniversário e O passado partido as personagens são complexas, contraditórias e por isso mesmo extremamente vivas.

Verdade que essa escolha pelo paradoxal faz de mim uma espectadora menos “emocional”. Não torço pelo final feliz. Aliás, algo me diz dentro da sala de cinema, que não haverá final e muito menos feliz. E essa libertação me aproxima de maneira muito diferente dos filmes latinos. A construção da personagem é mais ampla e por isso, elas não ficam restritas à situações simplistas. Não há o som de berimbau para ilustrar um documentário sobre a situação dos negros (USP 7%) ou a valorização passional da personagem feminina (Ciclo 7X1). O que quero dizer é que a abordagem da personagem não é única nem reta.

O curta O rapaz se masturba com raiva e ousadia é um exemplo disso. Filme sobre um bailarino que faz programas para sobreviver, não há na construção do filme trilhas, enquadramentos ou qualquer outro catalizador de minha emoção. Jonathan não é bom, nem mau, nem o que ele faz é certo ou errado. É a luta pela sobrevivência e ponto. Sem indução do espectador. O que posso concluir é isso: o que falta no cinema brasileiro é mais maturidade e menos mimimi.

Breves anotações sobre o Panorama Paulista

chaplin sp

por Lígia Hsu –

O estado de São Paulo é a mola propulsora do país, correto? Essa visão simplista de um Brasil dependente de apenas um estado felizmente/infelizmente não se aplica à produção audiovisual.
A sessão Panorama Paulista 3, um pequeno recorte do que vem sendo produzido no estado de São Paulo, me fez levantar duas questões:

– Por que somos tão corretos?
– Por que temos medo de ousar?

Os sete filmes possuem ótimas premissas, vê-se claramente um cuidado na forma, na decupagem, nos enquadramentos, na fotografia, no geral são tecnicamente muito bons, mas queria ver mais, muito mais.

Barqueiro, de José Menezes e Lucas Justiniano, fotografado em PB, possui um rigor nos enquadramentos e boa técnica. Tem uma das melhores premissas de roteiro desta seleção de filmes: uma noite na vida de um motorista do serviço funerário especializado na remoção de crianças. O filme avança lentamente até chegar no cerne da questão e apenas nos minutos finais consegue provocar alguma emoção. Recentemente fui uma das “clientes” do Serviço Funerário Municipal de São Paulo e consegui identificar o vazio que aquele espaço provoca através dos planos do filme, a solidão, a frieza do lugar. Tudo isso é mostrado de maneira muito correta e em boa parte do filme minha expectativa era por alguma coisa que desestruturasse esse rigor.

Pequena Aldeia, de Priscilla Pomerantzeff e Luciana Nanci, fala sobre a Praça Roosevelt e começa bem através do olhar de um argentino que vive num grande apartamento da praça. Depois o filme se mantém afastado de seus personagens e a câmera os observa do alto, como se estivéssemos vendo através das janelas. O filme cumpre bem essa visão, através do enquadramento em plongée, seguindo de longe as vidas que povoam a praça.

Tempo é Morfina, de Kamilli Semenov e Rafael Queija, trabalho de conclusão de curso do projeto Instituto Querô de Santos, cumpre com rigor as diversas técnicas aprendidas no curso, mas acaba sendo apenas isso.

USP 7%, de Daniel Mello e Bruno Bocchini, documentário sobre o racismo na maior universidade do Brasil, consegue trazer a essência jornalística de seus realizadores para a linguagem cinematográfica. Mas a discussão, importantíssima diga-se de passagem, sobre o tema acaba sendo unilateral.

Chapa, de Fábio Montanari, é o mais correto de todos e com uma ótima premissa de roteiro: dois funcionários de uma lanchonete são despedidos e resolvem assaltar o estabelecimento no dia do primeiro jogo do Brasil na Copa do Mundo. Uma comédia leve, com ótimos atores. Existe a tentativa da crítica ao novo substituindo o antigo, mas tudo é superficial. Cumpre bem o papel de comédia. Sempre me questiono o porquê de não nos aproximarmos do modelo clássico de cinema norte-americano, afinal, tem funcionado para eles por tanto tempo. O filme se aproxima bem desse modelo e aí vejo a armadilha do negócio: o filme é redondinho, seria assimilado tranquilamente pelo nosso público “sessão da tarde”, mas por se tratar de um filme nacional eu fiquei na expectativa do improviso, da malemolência, do jeitinho brasileiro. Engraçado isso, ainda mais se tratando do filme com mais referências ao Brasil.

As exceções são Conversa, de Luciano Arturo Glavina, que em 8 minutos mostra o encontro de um homem e uma mulher através da poesia do uruguaio Mario Benedetti. Uma única locação, dois personagens, fotografia impecável de Walter Carvalho. E Chaplin SP, de Matias Vellutini, um divertido stop motion que transforma o eterno Chaplin em um personagem tipicamente paulistano. Esses dois filmes tecnicamente tão bons quanto os demais, ousaram na narrativa e assim, aos meus olhos, se destacaram nessa programação.

Todos os filmes de alguma maneira me instigaram a querer ver mais. Mais dessa técnica correta sendo subvertida, mais dos roteiros sendo aprofundados e principalmente mais ousadia em contar histórias do nosso estado de São Paulo.

Clique aqui e veja a programação da mostra Panorama Paulista 3

USP 7% e Mater Dolorosa, filmes necessários

mater dolorosa

por Armando Manoel –

USP 7%, de Daniel Mello e Bruno Bocchini, e Mater Dolorosa, de Daniel Caetano e Tamur Aimara, apresentados respectivamente no Panorama Paulista e na Mostra Brasil deste 26º Festival de Curtas Metragens de São Paulo, chegam em boa em hora aos circuitos nacionais de curtas-metragens em tela grande. Afinal, 2015 está ai e o Brasil ainda assiste dia após dia casos de racismo e preconceito de classe explícitos, mas até certo ponto inapontáveis (ou quando, discutidos em canais menores) em certas instituições sociais. USP 7% apresenta depoimentos sobre a implementação de cotas raciais na maior universidade da América Latina e Mater Dolorosa acompanha a mãe do dançarino DG, nos momentos que seguiram sua morte na comunidade Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro.

A Universidade de São Paulo, casa maior no que se refere a produção intelectual do país, ainda se vê imersa em vícios conservadores que a impedem de avançar na questão racial. Do universo de estudantes que ingressam anualmente em seus quadros, cerca de 7% são negros (dados de 2012). O curta parte justamente desta informação para abordar um debate até então pouco exercitado no ambiente universitário: cotas raciais.

USP 7% apresenta uma série de narrativas de pessoas que vivenciam plenamente a questão das cotas. Acompanhamos, por exemplo, a jovem Fernanda Moreira durante o processo de vestibular da Fuvest. Em seus depoimentos, a estudante, trabalhadora e militante do Núcleo de Consciência Negra da própria universidade aponta para a diferença entre a preparação de vestibulandos que vêm de camadas privilegiadas em relação a outros concorrentes, como ela mesmo, negra e oriunda de camadas populares. A emoção e o conhecimento de causa nas falas, bem como o nervosismo da jovem nos levam a uma visão muito próxima da questão – uma pena os diretores não terem dado mais tempo à produção do filme e nos revelado o desfecho da narrativa de Fernanda e o vestibular.

Afinal, por que a USP, uma das primeiras universidades a debater a questão racial, reluta tanto em aplicar artifícios que visam corrigir o racismo institucional em seus quadros? Se a USP é a maior em pesquisa, maior em numero de alunos, enfim, a maior em diversos aspectos, o racismo no campus também tem de ser maior? A força deste curta esta justamente em formular e apresentar, quase que na forma de denúncia, estes e outros questionamentos.

Mater Dolorosa é um filme intenso. Já de início nos vemos perdidos em meio a uma manifestação no Rio de Janeiro, tudo muito rápido, como o samba que preenche ao fundo as imagens. Maria de Fátima da Silva puxa uma manifestação tocando incessantemente um surdão pelas ruas até chegar às regiões centrais da cidade. Seu filho Douglas Silva, o dançarino DG, acabara de ser assassinado numa ação policial no Pavão-Pavãozinho.

Em meio a trechos de poemas de Eurípedes sobre crianças que são lançadas em um mundo em guerras (contexto da guerra entre Grécia e Esparta nos quais foram escritos), Mater Dolorosa nos leva a uma reflexão sobre a realidade de extrema violência que acompanha o cotidiano de diversas regiões do Rio de Janeiro. Muita gente segue o bonde que presta sua última homenagem a DG, as imagens de manifestação pelas ruas, mas principalmente de seu funeral, poderiam enganosamente sugerir uma festa de rua, se descontextualizadas. Mas a energia ali canalizada é clara e direta: os morros, as quebradas, as favelas não aguentam mais a violência instalada. Não aguentam mais inclusive ser vítimas do Estado e da sociedade que pelas mãos da polícia que cada dia mata mais nessas comunidades. Os principais alvos: jovens, negros e pobres, como DG. Justiça! Justiça! Justiça! Grita o povo na rua.

USP 7% e Mater Dolorosa, trabalham com a linguagem do documentário. Ambos fazem refletir sobre a questão do negro no Brasil. Trazem para as telas pontos nevrálgicos da questão do racismo, mostrando como este se manifesta na Educação em São Paulo e na Segurança Púbica no Rio. Os dois curtas são bastante diferentes em seus ritmos e cadências: USP 7% é capoeira Angola, resistência e luta; Mater Dolorosa é samba, combate direto, o morro descendo pro asfalto. Ambos sobre a condição do povo negro em duas das maiores cidades do Brasil em plena década de 10 dos anos 2000. E acima de tudo, filmes necessários, se quisermos mesmo acreditar numa sociedade mais justa e democrática para todos.

USP 7% está no Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015
Mater Dolorosa está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Pequena Aldeia: A Praça Roosevelt em disputa

pequena aldeia

por Adriana Gaeta Braga –

O começo do curta Pequena Aldeia já nos dá uma ideia do que será o filme: um argentino narra sua relação com a cidade e com o país. O “olhar do estrangeiro” é menos um estranhamento do que é visto e mais um saudável afastamento brestianiano das mazelas da cidade e de suas personagens.

Com imagens em plonglée (ou seja, sempre vistas de cima para baixo), enquadramento que também reforça o nosso olhar de espectador, aos poucos vamos nos (re)conhecendo nestas pessoas que passam anônimas pela nossa câmera/janela.

A praça Roosevelt talvez seja um dos símbolos mais representativos da “nova” cidade que está sendo almejada. Sua construção foi demorada e controversa, entrando em choque com diversos interesses econômicos, sociais e imobiliários. Antes, uma região desprezada, a Roosevelt se tornou símbolo da reinvenção urbana em uma cidade que empurra para fora de seus espaços públicos o cidadão comum.

Praça que em seu projeto original abrigaria uma floricultura e quiosques para uso comum, a Roosevelt tem, em vez disso, a estrutura ocupada pela Guarda Civil Metropolitana. No curta esses conflitos são expostos, escancarados pelo flagrante de uso do espaço público pelas diferentes tribos que ocupam a praça. Skatistas disputam lugar com os idosos. Coletores de papel são vigiados de perto pela polícia, além de “noias” pelos cantos e também os bêbados restantes da noitada nos bares do entorno.

De certa forma, a praça neste curta representa, em seu microcosmos, tudo o que São Paulo vive e é. A Rooselvelt se tornou um lugar único: praça sem árvores, praça sem sombras, praça ícone do mais árido e cimentado da cidade, a praça só pode realmente merecer este nome pela riqueza das personagens urbanas que nela desfilam e convivem, muitas vezes em pé de guerra. A Roosevelt é uma praça tão mutante como as fases da lua, onde fincar seu lugar “é um pequeno passo para o homem, mas um grande passo para a humanidade”. Espaço de repouso e luta, lugar de encontro e solidão. Lugar de eclipses diários e de supernovas possíveis.

Pequena Aldeia desperta esses sentimentos contraditórios em relação à nossa paisagem paulistana. Em um momento onde o “repensar” da ocupação e do uso do espaço público está tão em alta na cidade (ciclofaixas, fechamento da Paulista aos domingos, minhocão em festa), assistir a esse curta torna-se uma experiência mais que sociológica. Diria mesmo, que nesses tempos de extremismos de polaridades, se torna uma experiência necessária.

Pequena Aldeia está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Começou o Crítica Curta 2015

26º festival internacional de curtas metragens de são paulo curta kinoforum

Estamos a um dia do começo do 26º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo. E como acontece em todos os anos desde 2005, a oficina Crítica Curta convida estudantes de curso de de audiovisual em instituições da cidade a produzir reflexão em texto sobre os filmes exibidos no festival. A coordenação do projeto neste ano fica novamente a cargo do crítico de cinema, pesquisador e jornalista Heitor Augusto.

Assim como no ano passado, este blog volta a ser o espaço de publicação dos artigos, apostando que a publicação no ambiente virtual permite mas possibilidades de circulação dos textos e diálogos com os leitores – realizadores e público em geral. Os participantes da oficina terão a responsabilidade de assistir diversas sessões que compõem o cardápio do festival. Suas reflexões estarão concentradas nos curtas das mostras Brasil, Panorama Paulista, Cinema em Curso e Latino-americana.

O blog Crítica Curta terá posts diários, escritos pelos “calouros” (que participam da oficina pela primeira vez) e “veteranos” (que já compuseram o projeto no ano passado e são convidados). Você pode acompanhar as atualizações pelas redes sociais, seguindo o Twitter da Kinoforum [clique aqui] e curtindo a página do Facebook [clique aqui]. No topo de cada post no blog você encontrará um botão para compartilhar os textos.

A navegação é simples: na parte superior da home page estão os posts mais recentes. Do lado direito da metade inferior da home você poderá procurar por textos usando tags (nome do filme, nome do diretor, nome do autor, tema do curta etc). À direita de cada página há a nuvem de tags, que aponta os tópicos mais comentados nos textos.

Abaixo está a lista dos calouros que participam da oficina neste ano:

Adriana Gaeta
Armando Manoel Neto
Giovanni Rizzo
Janaina Garcia
Juliana Souza
Lígia Jalantonio Hsu
Mariana Moura Lima
Raphael Gomes
Rafael Dornellas
Rodrigo Sá

Sejam bem-vindos e boa leitura!

Termina mais um Crítica Curta

audiencia de cinema

Dezessete estudantes de cinema e comunicação. Doze dias de cobertura de filmes espalhados pelas mostras Brasil, Internacional, Panorama Paulista, Latino-americana, Diversidade Sexual e Infanto-juvenil. Chega ao fim mais uma edição, a 10ª, do Crítica Curta, oficina de crítica de cinema que acontece durante o Festival Internacional de Curtas-metragens, cujos textos são publicados neste espaço.

Os textos produzidos neste ano continuarão disponíveis no blog, servindo como fonte de pesquisa para os próximos anos, ilustrando como esse ou aquele curta foi recebido no calor da hora. Para realizar uma consulta de um texto ou filme específico, basta usar o campo de busca na página inicial do blog (no topo, à direita, desta página), digitando o nome do filme. Se desejar navegar pelos assuntos que mais apareceram nos textos, basca fazer uma busca utilizando uma tag sob a qual as críticas foram marcadas (por exemplo: “adolescência”, “violência”, “política”, “animação”, etc).

É possível também efetuar buscas por meio da mostra em que os filmes foram exibidos. Lobo abaixo o campo de buscas, navegue por um dos itens tópico Filtro por Mostras.

Como coordenador do projeto, deixo aqui um agradecimento aos oficineiros que se comprometeram em realizar reflexões a respeito do curta-metragem, ao Festival de Curtas por manter a atividade, e aos leitores que acompanharam a cobertura por aqui.

Heitor Augusto

Ciclo: tecnologia recarregada

ciclo

por Mylena Santos Dantas –

Sons e ruídos de aparelhos eletrônicos. Movimentos e ações repetitivas e contínuas. O universo tecnológico imerso em quatro paredes. Ciclo, de Raquel Sancinetti, é uma animação que revela a solidão das relações humanas em uma sociedade extremamente tecnológica e consumista.

A construção e a estética do cenário – aparentemente uma sala de um apartamento ou de uma casa – é composta de uma colorização em tons escuros e por um ponto de luz que vai de encontro às personagens, sendo atribuída à luz de um aparelho de televisão. Esta estética mais “escura” evidencia o modo de viver vazio e monótono das personagens. Seus figurinos são sóbrios, acompanhando as características do ambiente.

Um homem e uma mulher; um casal. Separados a dois palmos de distância no sofá de sua sala, não exercem nem ao menos algum contato físico. Personagens que convivem no mesmo ambiente, separados por barreiras que os transformam, praticamente, em desconhecidos. Estas barreiras estão espalhadas por todo o ambiente: diversos aparelhos eletrônicos estão dispostos pelo cenário e constituem também o papel de personagens da narrativa.

Homem e mulher vivem em mundos paralelos, em sua rotina diária, cada qual interagindo com seus gadgets, que são trocados em algumas mudanças de cenas, revelando a diversidade de possibilidades que existem no universo tecnológico. A feição do homem é neutra, demonstrando frieza e indiferença à sua realidade, desempenhando suas ações de forma automática. A mulher tenta, em vão, chamar a atenção de seu parceiro; não sendo correspondida, se junta a ele às suas atividades rotineiras. São seres robotizados em função da tecnologia.

Assim como os eletrônicos, eles precisam que sua “bateria” (oxigênio) seja reposta e esse procedimento é feito da mesma forma que em seus aparelhos eletrônicos. A metáfora da “bateria” pode estar relacionada a nós, seres humanos, personagens do mundo real contemporâneo que também precisamos que nossa “bateria seja recarregada”, recarregada pelas novas tendências tecnológicas, estando sempre atualizados nas redes sociais e nos últimos lançamentos do mercado capitalista. Outro fator importante na composição do curta é o som, fundamental e responsável por fazer a ambientação dos aparelhos eletrônicos nas cenas, atribuindo-lhes características, além de evidenciar as ações contínuas das personagens.

Fazendo um paralelo ao tema abordado em Ciclo cito aqui a animação IDiots produzida pela Big Lazy Robot. Nela há características da metalinguagem: os personagens principais são robôs (ou seja, frutos da criação tecnológica) que são viciados em tecnologia, mais propriamente, nos gadgets. Os robôs podem ser comparados aos dois personagens da história aqui analisada, pois ambos usam a tecnologia como uma necessidade vital. Esta, por sua vez em Ciclo, é notada nas personagens sendo “recarregadas”, ligadas à tomada; em IDiots, quando os robôs começam a perder a conexão com seus aparelhos, e acabam voltando às suas atividades, abatidos, como se tivessem perdido sua “força”. Outro paralelo que pode ser estabelecido é a característica “robotizada” das personagens, ambos com a mesma simbologia de seres automatizados, mecânicos, programados.

Ciclo e IDiots possuem o mesmo caráter discursivo: a crítica ao consumo exacerbado da tecnologia, a maneira como ela está totalmente presente e inserida em nosso cotidiano, se tornando um costume, uma necessidade. Raquel Sancinetti, em uma produção inteiramente sua, exerce uma crítica ao mundo consumista e a decadência das relações interpessoais, do diálogo, do contato físico e visual. O elemento “robotizado” é mais uma crítica, que nos assemelha a um objeto, a uma máquina que desempenha funções totalmente automatizadas e mecânicas, necessitando ser sempre “recarregada” através da tecnologia.

Ciclo está na mostra Panorama Paulista 3 e Infanto-Juvenil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Laio: danos e projeções

laio

por Letícia Fudissaku –

De todos os curtas que vi neste festival, Laio foi o que deixou em mim uma impressão mais duradoura. Talvez pela temática, talvez por ser baseado em fatos reais, o curta passa uma forte mensagem, que transcende o âmbito da orientação sexual. A cena inicial já é bastante ousada, e causa um incômodo no espectador – menos pela situação representada do que pela trilha, que gera uma ambientação quase sinistra.

Essa sensação, como um mau pressentimento, me acompanhou durante todo o curta. Pensava o tempo todo “Tem alguma coisa errada, vai acontecer alguma coisa ruim”. Por isso, reconheço que a trilha é o elemento mais marcante do curta. Mas mesmo em cenas que a trilha é mais branda, alguma coisa – uma fala, um gesto, um enquadramento – mantém esse clima um tanto estranho, dando coesão à montagem.

A estrutura em crescente do curta não deixa a desejar quando chega em seu clímax: sem dar muitos detalhes, digo apenas que a cena é perturbadora, a ponto do espectador se sentir impotente em relação ao que vê. Pode ser uma visão um pouco exagerada da minha parte, mas foi o que senti. O que mais incomoda é a atitude de projetar todo os seus piores sentimentos em outras pessoas, que em nada contribuíram para tanto – e pensar que isso de fato acontece frequentemente.

O curta se torna ainda mais significativo, aliás, quando se tem a informação de que Laio é um dos poucos personagens bissexuais da mitologia grega. Apesar de ter utilizado termos de conotação negativa, Laio muito me agradou pela reflexão que ele propõe, ressignificando crimes de ódio – no sentido de que, às vezes, o problema não é o que o agressor sente pelo agredido, mas o que sente sobre si mesmo. Ao se sentir fraco, o protagonista arranca a força de dentro de si de forma brusca e egoísta. Laio é o retrato dessa injustiça, causada nada mais, nada menos que pela frustração.

Laio está na mostra Panorama Paulista 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Das origens das criaturas

the masters voice caveirao

por Samuel Mariani –

The Master’s Voice: Caveirão é um curta que se relaciona com as temáticas dos filmes anteriores de Guilherme Marcondes. As técnicas de animação diferenciadas como a manipulação direta em vídeo, light writting e o pixilation ilustram bem a liberdade de criação do curta-metragem e a referência ao trabalho anterior de Marcondes, como em Tyger (2006).

A partir de uma locação real bem específica paulistana e uma premissa simples, o curta se desenrola usufruindo de uma boa direção de imagens animadas, ótimo tracking e ritmo. Assim, os espíritos noturnos da cidade ganham espaço para sua atuação temática e burlesca, além de esbanjar seu design lúgubre e bem elaborado.

Desse trabalho com o cômico e o sinistro, Caveirão também destaca uma figura policial autoritária quase humana e sua perseguição aos fantasmas boêmios. Porém, a razão desta caçada se enrola à existência deste personagem vigilante de uma maneira em que a narrativa em primeiro plano parece se justificar retroativamente, o que, ao meu ver, perde para a liberdade expressiva das animações do curta, que me parece muito mais atraente.

Dada esta narrativa justificada ao curta, parece-me pouco comparado à carga folclórica e de herança simbólica das animações, mesmo porque ela ganha mais importância em termos de montagem, pois a exposição do universo “animado” possui mais tempo de tela e é feita de maneira muito apurada.

De qualquer maneira, a locação poluída e a iluminação escassa contribuem para legitimar as animações que dançam em um cenário real, com referências refinadas e transições bem planejadas entre segmentos.

Para além da ideia do vigilante, me encanta no trabalho de Guilherme a sobrevida que o curta-metragem tem quando deixa livre para a imaginação a causa/origem dessas criaturas noturnas paulistanas, mistério e abertura que marca seu trabalho e que o expande para infinitas possibilidades.

The Master’s Voice: Caveirão está na mostra Panorama Paulista 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Estranhamente interessante

dia estranho

por Letícia Fudissaku –

Quando um recurso simples é bem explorado, fica clara a habilidade de seus realizadores. Em seus primeiros minutos, Dia Estranho já me chamou a atenção pelo uso acertado do voice over, geralmente usado em demasia – ou, citando informações que funcionariam melhor em imagem. A locução que inicia o curta, por outro lado, é mais convidativa que explicativa, estabelecendo um vínculo protagonista-espectador.

O jeito informal e meio desleixado do personagem falar me lembrou um pouco o começo do icônico Clube da Luta e logo me despertou interesse na história – que, por si só, já é bem atrativa. A premissa de um entregador de mercadorias “misteriosas” abre um leque de possibilidades – poderia até, quem sabe, originar uma série. Mas, dados os acontecimentos que se seguem – alguns até um pouco fantasiosos, mas ainda assim intrigantes –, a escolha do formato de curta-metragem foi mais um acerto.

Os aspectos estéticos também acrescem ao enredo, em especial os visuais: a fotografia meio sépia e contrastada evidenciam uma atmosfera de submundo e a montagem acelerada e os jump cuts condizem com a instabilidade emocional em que se encontra o personagem. As sequências repetitivas aumentam a sensação de agonia e o anseio para saber o que acontece a seguir. Depois desse redemoinho, a história se encerra em um final arrebatador.

Sem muitas abstrações, a narrativa de Dia Estranho é instigante e muito bem construída, com momentos de tensão de tirar o fôlego. O próprio título é uma bela síntese do curta, que contém ainda uma impactante trilha na sequência de créditos (iniciais e finais). É um dos poucos curtas em que consegui analisar seus diferentes aspectos individualmente, sem me perder ou perder o interesse na história em si. Estranho ou não, me diverti assistindo!

Dia Estranho está na mostra Panorama Paulista 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014