Um boneco desanimado

edificio tatuape mahal

por Samuel Mariani –

A vida de um boneco de maquetes pode ser muito interessante, não somente por conta da originalidade das suas locações, mas também pela construção de um personagem “estrangeiro” neste mesmo mundo.

Acompanhando o boneco argentino Javier Juarez Garcia pelos stands de venda de apartamentos em São Paulo, é interessante imaginar o que está sendo vendido se não um personagem, um estilo de vida, uma história, um curta-metragem.

Bem assimilado dentro de um arco narrativo, Edifício Tatuapé Mahal se justifica pelo seu conceito, assim como cria um universo narrativo que está sempre se legitimando dentro do contexto do filme. Elementos de quadro e ângulos de câmera temáticos tratam elegantemente da “vida de merda” do boneco Javier dentro de um universo no qual o próprio processo de animação é muito meticuloso: ele estuda o tipo de movimento (ou ausência do mesmo) desses mesmos bonecos, compondo um ritmo bem específico.

A sincronia desses elementos, além de não deixar de trabalhar (e expandir) a narrativa no primeiro plano, trabalha seu tempo para que muitos dos payoffs do roteiro sejam resolvidos com humor.

No final das contas, o curta de Carolina Markowics e Fernanda Salloum dedica-se a uma história de bonecos com motivações bem humanas, e sua característica metafísica e justificativas bem ao estilo Starevich (Cameraman’s Revenge, 1912) geram uma animação brasileira de linguagem universal e bem sucedida.

Edifício Tatuapé Mahal está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Master Blaster: descoberta de humor na Nebulosa 2907N

master blaster

por Amanda Martinez –

Um dos filmes com título mais comprido do festival e, ao mesmo tempo, não muito esclarecedor de início, com certeza está entre os que mais conseguiram entreter a plateia. O mistério a respeito do conteúdo de Master Blaster – Uma Aventura de Hans Lucas na Nebulosa 2907N, dirigido por Raul Arthuso, serve sem dúvida como elemento importante para impactar o público positivamente, quando se revela em meio a letreiros russos uma inesperada e divertidíssima comédia.

Em um misto de Eisenstein com ficção científica, a chamada Cidade-trabalho com dois sóis é apresentada sob o olhar sério e nórdico de Hans Lucas. O agente intergaláctico investiga o aparecimento de um novo sol vermelho que brilha constantemente, mudando o ritmo da metrópole, que passa a trabalhar sem descanso. Um ar de futuro distante engloba o discurso da narração, intrigada em compreender os seres do estranho lugar, enquanto a controversa estética de um preto e branco ruidoso lembra filmes da antiga União Soviética.

Sem fazer piadas diretas, os risos são rapidamente arrancados de quem assiste através de quebras entre a visão subjetiva do personagem e monólogos dos moradores da cidade, quase em uma espécie de reportagem realizada pelo agente. Isso se deve ao fato de a misteriosa e caótica cidade em muito se assemelhar a uma São Paulo contemporânea, local onde coincidentemente se dá a exibição do curta: há o ambulante que vende água, o vendedor de óculos escuros, os operários, todos dando seus depoimentos em bom português coloquial. A excessiva seriedade com que tal realidade tão familiar é encarada, repleta de suspense, se torna o trunfo humorístico em Master Blaster, criticando o ritmo frenético das metrópoles através de uma grande sátira.

A forma de humor empregada no curta é muito interessante e se destaca de comédias mais convencionais, onde a graça é o personagem atrapalhado. Hans Lucas, ao contrário, é um homem inteligente e dedicado, e é exatamente isso que o torna cômico. O filme conduz os espectadores através de piadas que não se focam em menosprezar ou expor, mostrando que a ironia na comédia pode ser tão eficaz quanto o famoso “rir da desgraça alheia”. Além disso, o timing dos acontecimentos é excelente, não tornando o filme arrastado e fazendo com que nem só uma risada seja falha.

Ao final da exibição, o primeiro filme na sessão Panorama Paulista 3 tem seu resultado claramente reconhecido pelo público. O final heroico de Hans Lucas é recebido com uma grande salva de palmas pelos verdadeiros habitantes da Nebulosa 2907N, espectadores de um filme leve, de bom entretenimento e criativo.

Master Blaster está na mostra Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Ameaçados: retrato de um povo perseguido

ameacados

por Pither Lopes –

Reinterpretar o novo mundo que à nossa frente se coloca, cada vez mais instável, hostil e inseguro, tornou-se como nunca essencial. A mídia globalizada, com seus crescentes processos de manipulação, não oferece as investigações, respostas e análises com a densidade necessária. A câmera jornalística, genérica e superficial, foi sequestrada pelos interesses dos conglomerados empresariais.

Nesse embate pelo novo front do olhar, o documentário, que se constitui a um só tempo escudo crítico e pausa reflexiva, vê-se como gênero eleito de primeira necessidade; uma linguagem que se revela inevitável à sobrevivência do espírito ético. Em Ameaçados, a diretora Julia Mariano se apropria com maestria dessa ferramenta cinematográfica para investigar a tragédia de um Brasil profundo, a história de sujeitos abandonados a própria sorte.

Figurando entre os favoritos do público na 25° Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, Ameaçados retrata o cotidiano de pequenos agricultores do sul e sudeste do Pará que lutam por um pedaço de terra para plantarem e garantirem sua subsistência. Lugar onde a lei está do lado dos poderosos, a luta pela sobrevivência e por um pedaço de terra virou questão de vida ou morte.

Para compor seu documentário, Julia optou por dar voz àqueles que não são ouvidos, aos marginalizados e perseguidos por um sistema opressor. A diretora construiu um retrato revelador e coerente do estado que registra 70% dos casos de trabalho escravo no Brasil e que possui o maior número de assassinatos no campo. O mesmo estado que em que foi assassinada a missionária Dorothy Stang, perseguida por fazendeiros porque defendia o uso sustentável da terra.

O documentário, que se utiliza de voz off e entrevistas, adquiriu uma estrutura certeira, abordando as questões mais caras ao tema. Além de trazer à tela a saga de trabalhadores vítimas de um sistema que controla pessoas e compromete a qualidade de vida de milhares de brasileiros, a cineasta parte para a denúncia das violaçãoes dos direitos humanos e da omissão do estado.

A intervenção do próprio poder público, tentando impor um modelo de desenvolvimento para essas regiões nas últimas décadas favoreceu grupos econômicos, pecuaristas, madeireiros e grandes mineradoras. Consequentemente, elimina e expulsa indígenas, quilombolas, trabalhadores e sem terras.

Para que o povo esteja presente nas telas, não basta que ele exista, é necessário que alguém faça documentários. E, mais que isso, estabeleça asserções sobre o mundo que é mostrado na tela. O cineasta alemão Wim Wenders gostava de dizer que “a política mais importante é aquela que fazemos com o olhar”. Em Ameaçados, Julia Mariano honra com esse compromisso, trazendo a tona uma história que permanece soterrada, fruto da alienação de boa parte dos brasileiros.

A exibição de Ameaçados na programação do festival acontece num ótimo momento para o Brasil. Em tempos de eleições, é preciso trazer para a pauta as discussões em relação ao equivocado modelo agrário do país, que concentra a maior parte da terra nas mãos de poucos. Para propor uma reforma agrária, é preciso contrariar os interesses do capital financeiro que cresce enquanto o cidadão comum perece.

Ameaçados está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Saturno: o trash que nos resta

saturno

por Thiago Zygband –

Se não está mal o curta-metragem brasileiro, é inegável: paira certa monotonia. “Cinema de Afeto”, mais do que nunca. Câmeras contemplativas, diálogos de poucas palavras, sensações, relações orgânicas; a ausência da trilha sonora, tantos e tantos finais abertos, o silêncio que emergiu junto com a percepção do tempo. Não há dúvidas, realizamos produções notáveis sob tais recursos – Sem Coração, por exemplo, de Tião e Nora Normande, acaba de arcar com o troféu da Semana de Realizadores de Cannes utilizando-se dessa forma; além de tantos outros bons títulos no festival deste ano. Talvez ainda esteja dando seus primeiro passos esse tipo de cinema, muito embora Bressane já o faça há tempos. Incomoda, então, é o clima de mesmice que parece ter se estabelecido no curta nacional, e em especial no de ficção, no qual certos maneirismos, temas e abordagens se repetem incansáveis ao longo das Mostras Brasil. Estaremos tão afetivos assim? Por que calam nossas personagens? Algo cheira estranho por estas bandas…

Fazendo troça de afetações desonestas, advogando a boçalidade-geral e o desbunde ético, Saturno, de Savio Leite e Clécius Rodrigues, é o único curta honestamente ruim da Mostra Brasil. Não é bom, nem se pretende: assume o trash e se diverte. Parte do pressuposto da digestão de certa mitologia helenística – retoma a história de Saturno, que come seus filhos por temer a concretização da profecia na qual um deles o destronaria. Mas Zeus se salva por sendeiros tortuosos, destrona o pai e assume o poder do Olimpo, onde reinará imortal. Torna-se ele, então, soberano dos gregos.

Diz-se que todo filho há de matar o pai, mas Zeus também revela-se tirano: o mito permeia as relações do filme. Homens explodem uns aos outros, bocas comem bocas, massinhas degringolam-se, mãos amassam homens. A barbárie é geral.

A enorme quantidade de tipos humanos, assim como dos formatos das animações e do próprio quadro, remete-nos às imagens de TV ou vídeos de YouTube. Colocados no cinema, em objetos toscamente animados, ressalta-se a banalidade da imagem de violência. Uma análise menos cuidadosa poderia reduzir o curta ao mero prazer gráfico da coisa – como há em Tom e Jerry, por exemplo – mas, por ali, não há nada de ingênuo: é um mundo de homens irracionais e deformados, vivenciando situações-limite, circundados por violência e reproduzindo-as sem narrativa sequer. A referência ao mundo grego não é à toa, portanto – aquilo é nefando, a impossibilidade de escapatória é o Trágico, cada qual um pequeno tirano.

Ri-se do absurdo das ações – são sádicos os diretores, também o somos. Jogam-nos materiais em colisões às mentes, a montagem é frenética, anti-contemplativa, a trilha sonora tosca e incansável. Talvez não haja nada para ser ver ali, afinal das contas. Qualquer filme de Transformers é muito mais violento, veloz e histriônico do que podemos realizar por aqui. Saturno é paródia burlesca, portanto, e zomba pela precariedade. Já que o ideário Eisensteiniano da justaposição dos fotogramas diferentes que, trazendo o conflito, sobrepujam o pensamento atávico, hoje soa como utopia velha, ao menos avacalhemos.

O filme de Savio Leite e Clécius Rodrigues reafirma a necessidade do experimentalismo como postura crítica e, em tom de deboche, algo crucial por estas bandas – que cinema não se faz só com adornos. Cinema é ato de resistência, desejo que pulsa, exercício de liberdade.

Saturno está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Sobre o altíssimo nível dos curtas de animação

padre

por Ricardo Corsetti –

Em primeiro lugar, confesso não ser um grande fã dos filmes de animação, mas o fato é que no decorrer do festival, tenho visto alguns trabalhos de tamanha qualidade, tanto em termos técnicos quanto de conteúdo, que acabei até revendo minha opinião sobre o gênero.

A começar pelo excelente curta argentino Padre (2013), dirigido por Santiago ‘Bou’ Grasso. Este lindo filme que tem como pano de fundo temático a ditadura Pinochet, possui um trabalho de direção de arte, no que se refere a composição dos objetos de cena e uso de cores como elemento narrativo, superior até a muitos filmes com cenários reais que eu já vi por aí ultimamente. A paleta de cores básica do filme é toda por composta por tons pastéis, provavelmente visando amenizar o tema pesado que aborda e, ao mesmo tempo, demonstrar o cotidiano de vazio e solidão sob o qual vive a protagonista do curta. Em resumo, um belíssimo trabalho!

Em seguida, eu destacaria o curta de animação francês Billie’s Blues (2013), dirigido por Louis Jean Gore. É no mínimo surpreendente verificar que, embora trate-se de uma animação francesa, este ótimo trabalho possui referências que vão desde o clássico cinema noir (devido ao constante clima de mistério e traição), até à saudosa Blaxploitation setentista, influência visível em algumas cenas que chegam a lembrar clássicos do gênero tais como Coffy e Cleópatra Jones. Merece também destaque a belíssima trilha sonora composta por pérolas do blues e do jazz norte-americanos.

Considero também digno de nota, o curta mexicano O Senhor dos Espelhos (2014), dirigido por Mara Soler Guitián. Ainda que aqui o nível de sofisticação visual não chegue ao mesmo patamar dos filmes anteriormente citados, o fato é que este criativo trabalho, apesar de seu traço rústico, aborda uma temática interessante e sempre presente em nosso cotidiano: o eterno embate entre o homem e a natureza. Destaque também para ótimo trabalho de montagem do curta.

Strange Fruit: respeito ao outro

strange fruit

por Eleonora Del Bianchi –

Southern trees bear a strange fruit/ árvores do sul produzem uma fruta estranha

Entre 1889 e 1940, mais de 2.700 negros foram linchados e assassinados no Sul dos  EUA […] os negros eram mortos e exibidos ao público: pendurados em galhos de árvores, como  ‘frutos estranhos’… (O Globo, 2012)

Em 1939 Billie Holiday fazia pela primeira vez a performance de Strange Fruit em um  café num porão da rua Sheridan Square numa Nova York ainda segregacionista. A música começava e terminava em completa escuridão. Essa foi considerada a primeira canção explícita contra o racismo, 16 ano antes dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos e contra os linchamentos que ainda ocorriam, escancarando a situação e aflorando reações controversas.

O curta de animação israelense Strange Fruit retoma a música com uma delicadeza imensa, trazendo em seus sete minutos de duração agoniantes a história da visão de uma criança sobre o diferente e o que ele aprende com seu avô. Sem falas, o curta é extremamente expressivo. Após o contato inicial em que o menino verde deixa uma mancha no outro e corre, o primeiro estende a mão e, com um aperto no coração, apesar de inexistente (porque o aperto no coração é do espectador e não da cena), é possível ouvir sua voz dizendo: “Espera, eu não me importo, mas por que você é diferente?”. Quando a criança mostra o lenço ao menino verde após empurrá-lo e fixa a mancha verde no blanço enquanto espera o outro aparecer parece implícita sua voz: “como você ousa me contaminar e ao mundo com sua tinta verde?”.

Além do sorriso de escárnio que aparece após sua demonstração de raiva e aprovação do avô. No final, após ser confundido com um menino verde, ao invés de se colocar no lugar do outro, ele guarda ainda mais raiva: “a culpa foi do menino verde, por ter existido”. Matá-lo parece pouco, ainda com seu sorriso, maior do que nunca, ele também quer derrubar a árvore. “Aqui está a fruta para os corvos arrancarem, para a chuva recolher, para o vento sugar, para o sol apodrecer, para as árvores deixarem cair”.

Por mais que a trilha seja minimalista e de tensão realmente espera- se, talvez, com uma mentalidade de Disney, que por ser uma animação, com crianças, algo de bom vá acontecer. Mas a História não é assim e o curta tambem não. O ódio só gera mais ódio. E a culpa por atos e consequências recaem sobre os mais fracos. A canção Strange Fruit, que pode se relacionar a diversos contextos e momentos históricos, foi escrita por Abel Meropol, um professor judeu, e readaptada agora com o patrocínio do Fundo para Filmes e Televisão de Jerusalém, durante um período delicado no Oriente Médio.

Não é necessário ir muito longe no tempo e espaço para encontrar um exemplo de preconceito ou racismo. Mas da mesma forma como um avô pode dar exemplo, um curta, uma canção e outras formas de arte também, podem. O que faz a diferença é o que e quanto da mensagem é absorvido.

Strange Fruit está na Mostra Internacional 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Para além do preto e branco

parque sovietico

por Lucas Navarro –

Comecemos por Parque Soviético. Um casal com encontro marcado dentro de um parque construído em homenagem aos sovietes discute a relação e sua inadiável separação. Na medida em que o diálogo vai tomando a forma prevista do desenlace, a escuta atenta-se para o eco fantasmático dos monumentos cuja reverberação equivale ao mistério da crise. A voz desses obeliscos mudos fala aquilo que o casal silencia. Ambas são, salvo as dimensões, guerras frias.
Há, porém, entre discussões e reconciliações, uma pista, contada somente nas imagens, da natureza misteriosa dessa relação. Ela sucede a abordagem do rapaz nas moças que se fotografam. Consiste em uma série de planos corriqueiros dos gestos retirados da cena que acabamos de ver, só que, agora, vista “de fora” pelos olhos da mulher que os individualiza em fragmentos: sorriso, carícia, olhar: signos que, convertidos pelo olhar ciumento em indícios da culpabilidade do parceiro, compõem o secreto idioma do qual ela não participa. Resta aquela conhecida violência em sua absoluta magnitude infringida contra si própria, decifradora – fracassada – de cenas. A sequência termina com uma segunda suspensão que poderíamos chamar de montagem dialética pouco ortodoxa ao princípio eisensteiniano. Refiro-me a interrupção do fluxo narrativo que des-cobre, em três quadros, o estado desses personagens que, destacados sobre batalhas opostas, convergem na síntese de um mesmo fundo. Entretanto, mal nos acostumamos à terceira via refletida no abraço, voltamos à afirmação da diferença.

Se existe uma lei que aproxima essas duas potências ela está na mútua seriedade com que não participam do encanto contido num mesmo corpo. Tanto isso é verdade que todos os defeitos são levantados até que não reste mais nada com que se possa ornamentar a matéria rochosa. A força contida na diferença cumpre o gesto de ferir lembranças encararando o rosto livre de códigos decifráveis.

O preto e branco conecta Parque Soviético e La Llamada. Não há a intensão de justapor os curtas apenas porque empregam esse efeito, mas sim lidar com as particularidades a partir desse ponto de contato. Enquanto que no primeiro caso essa opção funciona como um personagem norteador que acentua uma diferença primordial – ela veste branco; ele, preto – no segundo ela aparece como resistência à cor – tão cara a Cuba – contrastando o peso da memória ao vazio cotidiano. Ambos os filmes motivaram esse texto menos por suas relações exteriores do que pelo impacto que tiveram iniciando e concluindo uma mesma sessão. Reduzi-los em conceitos significaria ignorar a insolubilidade da experiência que provocaram.

Divididos por uma grade, o cineasta faz perguntas ao seu personagem até que esse assine o termo de contrato para instalação do telefone, o dispositivo que envolverá o filme. Já temos aqui um modo muito original de aproximação do assunto por meio de uma brincadeira metafórica que conecte o interior ao além-grades. A partir desse primeiro contato passaremos para o outro lado sem mais abandoná-lo. Ficamos então a observar pequenas cenas onde a intensão previamente organizada compete com o acaso circundante, gerando mais-valia nos termos do cinema.

Nos dois filmes lidamos com relacionamentos cuja crise pouco se sabe. Aqui as memórias de um filho, esposa, amigos e revolução são atenuadas via furacões. Já o advento do telefone pouco lhe altera o horizonte, pois a chance de ouvi-lo tocar é desacreditada meio que por antecipação, afinal ninguém possui seu número. A respiração das cenas parece, contudo, sugerir a chance de ouvir, a qualquer momento, a chamada.

O filme passa então a crescer sobre o abismo do seu personagem até o ponto em que esse, durante a simulada conversa com o filho, desvela o sadismo desse dispositivo, colocando em xeque todo um modo de olhar para si que escapa ao cineasta. A notória abertura dessa cena para autocrítica mostra como, por vezes, personagens diante do filme estão como bebês diante do canibal.

A resignação se revela potência. Isso por que Gustavo Vinagre parece ter plena consciência de que qualquer imagem quando projetada no quadro suscita questões que são, antes de tudo, questão de cinema. Pois é exatamente sobre uma tela autossuficiente que se exprime o ponto de chegada de La Llamada, sendo o seu valor documental meramente acessório. Resta, porém, a secreta vontade de conferir se o número revelado romperia as conhecidas grades que separam personagem e espectador.

Parque Soviético e La Llamada estão na Mostra Brasil 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

De Castigo: sobre se relacionar

de castigo

por Valéria Tedesco –

A sessão estava lotada para a exibição dos filmes do Panorama Paulista 1. Entre curiosos, admiradores, familiares e amigos, a jovem diretora Helena Ungaretti fez mais uma apresentação de seu curta-metragem De Castigo. Interessante observar como os espectadores fizeram parte da composição do clima apresentado pelo filme.

Lilian Blanc vive o papel de Guta, uma tia avó que vive sob o olhar vigilante da família, mas para sua sorte, essa família é apresentada na narrativa através de seu sobrinho Felipe, um tímido e tranquilo adolescente que vai passar um tempo em sua casa por estar, a princípio, de castigo.

Guta é apresentada em um cotidiano que escapa as convenções de uma senhora na terceira idade que mora sozinha. Ela bebe, fuma e vai muito bem, obrigada. Felipe, por outro lado, é um garoto quieto que claramente gostaria de estar em qualquer outro lugar. De maneiras distintas, cada um vive em seu universo particular.

A relação dos dois personagens começa de fato a se consolidar quando tia Guta, ao tomar banho, leva um tombo e chama Felipe para ajudá-la a levantar. A situação constrangedora se transforma em um importante marco para os dois que, a partir desse momento de intimidade e respeito, passam a mais do que simplesmente se dar bem, mas a tentar entender as motivações e limitações da vida do outro.

A estética bem construída é um grande elemento para que a narrativa mantenha seu ritmo e continuidade. O universo de Guta e Felipe prende a atenção com a bela composição da fotografia, juntamente com a direção de arte e cria ambientes que destacam as personalidades bem definidas para o espaço daquela historia e daquelas pessoas. Os objetos cuidadosamente posicionados e os móveis clássicos que compõem a casa de Guta criam uma duplicidade que também refletem na personagem.

De uma maneira leve, a história é um debate sobre personagens, e sobre personalidades. Tia e sobrinho são dois desajustados que levam a vida em seu próprio ritmo, e no final das contas encontram um no outro a maneira de manter sua identidades e encontrar novos caminhos.

De Castigo está na mostra Panorama Paulista 1 e na Infanto-juvenil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A Era de Ouro: o palco e a verdade

a era de ouro

por Bianca Elias –

A vida em torno de festas robotizadas pelas roupas pretas e o eletrônico tem grau de normalidade que vai dos paulistanos aos cearenses. Não cabe falar de uma pureza de raiz do paulistano que cresceu no coração do progresso econômico, pois quando não motorizada, a identidade mais miscigenada é a sua. Falamos aqui, ou falam Miguel Antunes Ramos e Leonardo Mouramateus, dos efeitos da cidade que perde suas convicções naturais e se transforma em impérios modulares de coqueiros e arranha céus de vidro; homens que se auto enclausuram com a identidade mantida no sotaque e mais nada.

A Era de Ouro aparenta um resultado final (ao menos até agora) de ensaios sobre a vida dentro dos muros invisíveis e sobre quatro rodas. Os realizadores em codireção sintetizam o que é brincar de atuar para a conquista do sucesso profissional e, hoje não desvinculado, pessoal. São tomadas diretrizes de duração de planos, escolhas de cores e palavras corporativas para a imersão no espectro burguês que não se discernem da presença preponderante desses elementos ermos na vida real: um incômodo invasivo toma conta do espectador que, mesmo não indo na contramão da ideologia mercadológica que se retrata, identifica um constrangimento ainda que não saiba qual é. O contato entre Simone e David, que se viram pela última vez no Ceará, acontece pela vitrine do viver em São Paulo e, por conta das tentativas vindas dele, de se resgatar o elo antes vivo e poético entre os dois. Um passado teatral que os conecta respinga apenas na teatralidade de Simone na vida real.

E e Salomão, ambos no festival deste ano e codirigidos por Miguel, em mesmo nível, mas em teor documental, resgatam pelo sarcasmo de suas imagens e silêncio a representação dos estacionamentos e do templo da Igreja Universal do Reino de Deus da mesma maneira em que se perpetua um papel para os personagens da ficção: ao alcance da aprovação em sociedade cria-se um discurso convincente sobre si mesmo e para si mesmo. O Completo Estranho (também em mostra) de Leonardo Mouramateus se situa dentro do mesmo universo em Fortaleza e cria o cenário para falar da sobrevivência conquistada através das máscaras, onde perucas e danças ensaiadas fazem parte de uma encenação pensada para ser verdadeira.

Relações esfriadas pela vida e outras esquentadas pela ideia de ser arte consagram-se e, sem força, acordam no dia seguinte sem esperança para ser. Numa descaracterização dos personagens, que vem sem informações adicionais que não seus nomes e vícios de entonação, poderíamos pensar no filme sendo realizado diegeticamente em qualquer lugar do Brasil, quiça do mundo.

Os dois diretores traçam caminhos que passam pelo entendimento da fraqueza relacional e/ou o fortalecimento inevitável das barreiras de concreto, para que juntos pudessem sintetizar um propósito, um fim em si: o alcance de consciência na retomada da atuação teatral. A Era de Ouro termina com Simone cedendo aos textos por ela conscientemente esquecidos e os declamando em voz alta, aos prantos, exterminando sua outra aparência e dando espaço ao riso por ferir David com seu cartão de visita de vidro – o papel dela o fere, e lhe invade o riso leviano do reconhecimento. Se atuar é estar em palco, então é o palco a única possibilidade da verdade.

A Era de Ouro está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Kyota e sua sabedoria precoce

kyota

por Letícia Fudissaku –

ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS

Em meio às intensas tramas presentes na Mostra Internacional 4, o curta Kyota – O Pequeno Entregador foi como uma brisa de ar fresco. Com uma trilha tipicamente japonesa, o curta já dita seu ritmo leve e agradável. Kyota é um garotinho sagaz e carismático em sua excentricidade. Por se tratar de uma sequência, não há muito tempo para apresentar o personagem – o que não chega a incomodar, porque assim o conhecemos melhor conforme a história se desenrola. Além disso, o incidente incitante da narrativa é novidade tanto pra nós quanto para Kyota: uma pequena recém-chegada em seu bairro.

Me impressiona a habilidade dos realizadores de curtas-metragens, como um todo, de transmitir o máximo de informações visualmente, dado o tempo reduzido. Só pelo chapeuzinho de Kyota, vemos que ele é diferente dos demais e, ao ver uma garotinha de macacão e máscara, seus olhos brilham em comemoração: “Achei alguém como eu!”. Por uma coincidência, sua mãe tem de entregar uma encomenda na casa dos novos moradores. E lá vai o pequeno Kyota cumprir essa missão – a visão de um garotinho tão jovem caminhando sozinho cheio de mercadorias é quase absurda aos olhos da brasileira que sou, de tão impraticável que seria em nossa realidade…

Quando o encontro acontece, a história toma um rumo bem diferente do habitual boy meets girl. Kyota descobre que as coisas que lhe chamaram atenção na menina eram apenas ordens vindas do pai. Num diálogo simples e ao mesmo tempo profundo, ela diz “Pensei que você era igual a mim, ia te chamar pra brincar comigo”, ao que Kyota responde algo como “Nós não precisamos ser iguais para brincarmos juntos” (talvez em forma de pergunta, não me lembro bem). Unidos, os dois se libertam de seus adereços – o chapéu dele e o macacão dela – e saem juntos para brincar.

O pai da garotinha, furioso, vai correndo ao seu encontro. É até divertida a postura de Kyota, nem um pouco intimidado pelo homem – pelo contrário, chega até a elogiar sua atitude. A fala inocente de Kyota desperta o pai de seu extremismo e este se ajoelha frente à filha, pedindo-lhe perdão. No que diz respeito ao núcleo familiar, a sociedade japonesa é vista como muito rígida e ligada à disciplina. Justamente por isso, essa inversão (pais abandonando sua autoridade pelo bem dos filhos) é válida e presente em outras produções japonesas – como o longa Pais e Filhos, de Hirokazu Koreeda.

É interessante reparar no dilema de Kyota, paralelo aos acontecimentos, de largar ou não seu chapeuzinho. Não me arrisco a identificar o que ele simboliza, pois ainda quero assistir o primeiro filme da sequência. Mas é seguro dizer que, assim como seu protagonista, o curta-metragem Kyota – O Pequeno Entregador é autêntico e envolvente, retratando temas complexos em situações simples.

Kyota – O Pequeno Entregador está na Mostra Internacional 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014