Estamos a um dia do começo do 26º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo. E como acontece em todos os anos desde 2005, a oficina Crítica Curta convida estudantes de curso de de audiovisual em instituições da cidade a produzir reflexão em texto sobre os filmes exibidos no festival. A coordenação do projeto neste ano fica novamente a cargo do crítico de cinema, pesquisador e jornalista Heitor Augusto.
Assim como no ano passado, este blog volta a ser o espaço de publicação dos artigos, apostando que a publicação no ambiente virtual permite mas possibilidades de circulação dos textos e diálogos com os leitores – realizadores e público em geral. Os participantes da oficina terão a responsabilidade de assistir diversas sessões que compõem o cardápio do festival. Suas reflexões estarão concentradas nos curtas das mostras Brasil, Panorama Paulista, Cinema em Curso e Latino-americana.
O blog Crítica Curta terá posts diários, escritos pelos “calouros” (que participam da oficina pela primeira vez) e “veteranos” (que já compuseram o projeto no ano passado e são convidados). Você pode acompanhar as atualizações pelas redes sociais, seguindo o Twitter da Kinoforum [clique aqui] e curtindo a página do Facebook [clique aqui]. No topo de cada post no blog você encontrará um botão para compartilhar os textos.
A navegação é simples: na parte superior da home page estão os posts mais recentes. Do lado direito da metade inferior da home você poderá procurar por textos usando tags (nome do filme, nome do diretor, nome do autor, tema do curta etc). À direita de cada página há a nuvem de tags, que aponta os tópicos mais comentados nos textos.
Abaixo está a lista dos calouros que participam da oficina neste ano:
Adriana Gaeta
Armando Manoel Neto
Giovanni Rizzo
Janaina Garcia
Juliana Souza
Lígia Jalantonio Hsu
Mariana Moura Lima
Raphael Gomes
Rafael Dornellas
Rodrigo Sá
Dezessete estudantes de cinema e comunicação. Doze dias de cobertura de filmes espalhados pelas mostras Brasil, Internacional, Panorama Paulista, Latino-americana, Diversidade Sexual e Infanto-juvenil. Chega ao fim mais uma edição, a 10ª, do Crítica Curta, oficina de crítica de cinema que acontece durante o Festival Internacional de Curtas-metragens, cujos textos são publicados neste espaço.
Os textos produzidos neste ano continuarão disponíveis no blog, servindo como fonte de pesquisa para os próximos anos, ilustrando como esse ou aquele curta foi recebido no calor da hora. Para realizar uma consulta de um texto ou filme específico, basta usar o campo de busca na página inicial do blog (no topo, à direita, desta página), digitando o nome do filme. Se desejar navegar pelos assuntos que mais apareceram nos textos, basca fazer uma busca utilizando uma tag sob a qual as críticas foram marcadas (por exemplo: “adolescência”, “violência”, “política”, “animação”, etc).
É possível também efetuar buscas por meio da mostra em que os filmes foram exibidos. Lobo abaixo o campo de buscas, navegue por um dos itens tópico Filtro por Mostras.
Como coordenador do projeto, deixo aqui um agradecimento aos oficineiros que se comprometeram em realizar reflexões a respeito do curta-metragem, ao Festival de Curtas por manter a atividade, e aos leitores que acompanharam a cobertura por aqui.
Não são poucos os filmes exibidos no Kinoforum que falam sobre a dor da perda, mas Close é um dos únicos que encara a morte sem se debruçar sobre desdobramentos emocionais, talvez porque a morte aqui tenha um sentido não casual, mas simbólico.
Um menino vive sozinho com um pai solteiro, até o dia em que o menino acorda e o pai está morto. Na cena em que o menino encontra o corpo do pai – situação que prescinde de explicações a respeito das condições da morte –, seu único gesto é beber o copo de uísque que o pai havia deixado sobre a cômoda, mas ele não expressa nenhum tipo de descontentamento.
Pelo contrário, o menino assume um tom altivo depois do evento. Ele não avisa quem quer que seja a respeito da morte, conservando o cadáver (com o qual conversa) e passa a investigar os armários e gavetas, descobrindo pôsteres e músicas antigas e gravações de vídeo do pai e de si mesmo quando criança. É curioso perceber que essa morte não é entendida como perda, mesmo o menino tendo consciência de que o pai está, efetivamente, morto: ele evita sistematicamente a entrada de outras pessoas na casa. Que morte é essa, então, que não é perda?
Como dizia Machado de Assis, “agora que está morto, podemos falar bem dele”. O fim da existência material de uma pessoa preserva sua memória, moldada individualmente por cada um dos memoriosos. O pai falecido, o menino não precisa encarar suas contradições e ausências e pode se relacionar muito mais facilmente com a ideia de “pai” e com todo o universo simbólico a ele associado, universo esse de uma “mitologia masculina”: o tomar uísque, o fazer a barba, o ser um “homem grande”, vocativo que o pai endereça ao filho.
O filme se passa em torno da data do aniversário de treze anos do menino, a respeito da qual ouvimos pela primeira vez o pai dizer que seu filho é um “big man”. Da mesma forma, numa gravação antiga do nascimento do nosso protagonista vê-se o pai chamando o menino de “big man”. A morte do pai, então, assim como o aniversário é marca indelével da passagem do tempo, parte de um ritual de transição onde ele se torna um homem adulto. Essa morte, então, tem um sentido necessário e progressivo, porque permite ao rapaz acessar todo um universo material que a presença do pai impedia – quase uma cadeia sucessória.
E, no entanto, o menino não enterra esse cadáver, não se desapega dele, da mesma maneira que ainda se apega aos sentidos de uma masculinidade tradicional. Ele reconhece a fragilidade desses sentidos e dessa relação, e por isso preserva o espaço da casa da presença das duas mulheres, da mesma maneira que omite o acontecimento e interioriza a questão, preservando-a de questionamentos: ele prefere continuar a viver com o corpo morto do pai.
Desde o começo do filme vê-se o menino fazer questão de ir para casa cedo, deixando para trás sua amiga. Vê-se o pai sair, deixando o menino sozinho, entediado: a existência dele é condicionada pelo pai. Mas é só no fim do filme que entende-se que essa posição é voluntária, e que ele é quem mais deseja se tornar um “big man”, mantendo vivo o desejo do pai.
Close está na Mostra Internacional 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014
Em primeiro lugar, confesso não ser um grande fã dos filmes de animação, mas o fato é que no decorrer do festival, tenho visto alguns trabalhos de tamanha qualidade, tanto em termos técnicos quanto de conteúdo, que acabei até revendo minha opinião sobre o gênero.
A começar pelo excelente curta argentino Padre (2013), dirigido por Santiago ‘Bou’ Grasso. Este lindo filme que tem como pano de fundo temático a ditadura Pinochet, possui um trabalho de direção de arte, no que se refere a composição dos objetos de cena e uso de cores como elemento narrativo, superior até a muitos filmes com cenários reais que eu já vi por aí ultimamente. A paleta de cores básica do filme é toda por composta por tons pastéis, provavelmente visando amenizar o tema pesado que aborda e, ao mesmo tempo, demonstrar o cotidiano de vazio e solidão sob o qual vive a protagonista do curta. Em resumo, um belíssimo trabalho!
Em seguida, eu destacaria o curta de animação francês Billie’s Blues (2013), dirigido por Louis Jean Gore. É no mínimo surpreendente verificar que, embora trate-se de uma animação francesa, este ótimo trabalho possui referências que vão desde o clássico cinema noir (devido ao constante clima de mistério e traição), até à saudosa Blaxploitation setentista, influência visível em algumas cenas que chegam a lembrar clássicos do gênero tais como Coffy e Cleópatra Jones. Merece também destaque a belíssima trilha sonora composta por pérolas do blues e do jazz norte-americanos.
Considero também digno de nota, o curta mexicano O Senhor dos Espelhos (2014), dirigido por Mara Soler Guitián. Ainda que aqui o nível de sofisticação visual não chegue ao mesmo patamar dos filmes anteriormente citados, o fato é que este criativo trabalho, apesar de seu traço rústico, aborda uma temática interessante e sempre presente em nosso cotidiano: o eterno embate entre o homem e a natureza. Destaque também para ótimo trabalho de montagem do curta.
Southern trees bear a strange fruit/ árvores do sul produzem uma fruta estranha
Entre 1889 e 1940, mais de 2.700 negros foram linchados e assassinados no Sul dos EUA […] os negros eram mortos e exibidos ao público: pendurados em galhos de árvores, como ‘frutos estranhos’… (O Globo, 2012)
Em 1939 Billie Holiday fazia pela primeira vez a performance de Strange Fruit em um café num porão da rua Sheridan Square numa Nova York ainda segregacionista. A música começava e terminava em completa escuridão. Essa foi considerada a primeira canção explícita contra o racismo, 16 ano antes dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos e contra os linchamentos que ainda ocorriam, escancarando a situação e aflorando reações controversas.
O curta de animação israelense Strange Fruit retoma a música com uma delicadeza imensa, trazendo em seus sete minutos de duração agoniantes a história da visão de uma criança sobre o diferente e o que ele aprende com seu avô. Sem falas, o curta é extremamente expressivo. Após o contato inicial em que o menino verde deixa uma mancha no outro e corre, o primeiro estende a mão e, com um aperto no coração, apesar de inexistente (porque o aperto no coração é do espectador e não da cena), é possível ouvir sua voz dizendo: “Espera, eu não me importo, mas por que você é diferente?”. Quando a criança mostra o lenço ao menino verde após empurrá-lo e fixa a mancha verde no blanço enquanto espera o outro aparecer parece implícita sua voz: “como você ousa me contaminar e ao mundo com sua tinta verde?”.
Além do sorriso de escárnio que aparece após sua demonstração de raiva e aprovação do avô. No final, após ser confundido com um menino verde, ao invés de se colocar no lugar do outro, ele guarda ainda mais raiva: “a culpa foi do menino verde, por ter existido”. Matá-lo parece pouco, ainda com seu sorriso, maior do que nunca, ele também quer derrubar a árvore. “Aqui está a fruta para os corvos arrancarem, para a chuva recolher, para o vento sugar, para o sol apodrecer, para as árvores deixarem cair”.
Por mais que a trilha seja minimalista e de tensão realmente espera- se, talvez, com uma mentalidade de Disney, que por ser uma animação, com crianças, algo de bom vá acontecer. Mas a História não é assim e o curta tambem não. O ódio só gera mais ódio. E a culpa por atos e consequências recaem sobre os mais fracos. A canção Strange Fruit, que pode se relacionar a diversos contextos e momentos históricos, foi escrita por Abel Meropol, um professor judeu, e readaptada agora com o patrocínio do Fundo para Filmes e Televisão de Jerusalém, durante um período delicado no Oriente Médio.
Não é necessário ir muito longe no tempo e espaço para encontrar um exemplo de preconceito ou racismo. Mas da mesma forma como um avô pode dar exemplo, um curta, uma canção e outras formas de arte também, podem. O que faz a diferença é o que e quanto da mensagem é absorvido.
Em meio às intensas tramas presentes na Mostra Internacional 4, o curta Kyota – O Pequeno Entregador foi como uma brisa de ar fresco. Com uma trilha tipicamente japonesa, o curta já dita seu ritmo leve e agradável. Kyota é um garotinho sagaz e carismático em sua excentricidade. Por se tratar de uma sequência, não há muito tempo para apresentar o personagem – o que não chega a incomodar, porque assim o conhecemos melhor conforme a história se desenrola. Além disso, o incidente incitante da narrativa é novidade tanto pra nós quanto para Kyota: uma pequena recém-chegada em seu bairro.
Me impressiona a habilidade dos realizadores de curtas-metragens, como um todo, de transmitir o máximo de informações visualmente, dado o tempo reduzido. Só pelo chapeuzinho de Kyota, vemos que ele é diferente dos demais e, ao ver uma garotinha de macacão e máscara, seus olhos brilham em comemoração: “Achei alguém como eu!”. Por uma coincidência, sua mãe tem de entregar uma encomenda na casa dos novos moradores. E lá vai o pequeno Kyota cumprir essa missão – a visão de um garotinho tão jovem caminhando sozinho cheio de mercadorias é quase absurda aos olhos da brasileira que sou, de tão impraticável que seria em nossa realidade…
Quando o encontro acontece, a história toma um rumo bem diferente do habitual boy meets girl. Kyota descobre que as coisas que lhe chamaram atenção na menina eram apenas ordens vindas do pai. Num diálogo simples e ao mesmo tempo profundo, ela diz “Pensei que você era igual a mim, ia te chamar pra brincar comigo”, ao que Kyota responde algo como “Nós não precisamos ser iguais para brincarmos juntos” (talvez em forma de pergunta, não me lembro bem). Unidos, os dois se libertam de seus adereços – o chapéu dele e o macacão dela – e saem juntos para brincar.
O pai da garotinha, furioso, vai correndo ao seu encontro. É até divertida a postura de Kyota, nem um pouco intimidado pelo homem – pelo contrário, chega até a elogiar sua atitude. A fala inocente de Kyota desperta o pai de seu extremismo e este se ajoelha frente à filha, pedindo-lhe perdão. No que diz respeito ao núcleo familiar, a sociedade japonesa é vista como muito rígida e ligada à disciplina. Justamente por isso, essa inversão (pais abandonando sua autoridade pelo bem dos filhos) é válida e presente em outras produções japonesas – como o longa Pais e Filhos, de Hirokazu Koreeda.
É interessante reparar no dilema de Kyota, paralelo aos acontecimentos, de largar ou não seu chapeuzinho. Não me arrisco a identificar o que ele simboliza, pois ainda quero assistir o primeiro filme da sequência. Mas é seguro dizer que, assim como seu protagonista, o curta-metragem Kyota – O Pequeno Entregador é autêntico e envolvente, retratando temas complexos em situações simples.
Na Mostra Internacional 4, vemos cinco situações em que as personagens tem de lidar com elementos contrastantes em seu universo. Se em O Barulho e Reunião de Condomínio o conflito tem como base a moradia dos personagens, em Deserto e Cólera temos condições um tanto diferentes – mas que, ainda assim, aproximam-se em seu subtexto.
Em Deserto, acompanhamos a trajetória de uma soldado que perdeu seu rifle e recorre à ajuda de um beduíno. Se o espectador espera uma aproximação entre essas personagens, em contraponto à inimizade dos grupos a que pertencem – a exemplo de O Menino de Pijama Listrado ou filmes infantis como O Cão e a Raposa, muito se engana: no clímax da narrativa, a protagonista não hesita ao tomar uma atitude em benefício próprio, que leva também à morte do homem momentos depois.
Vale lembrar que a soldado possuía uma conduta exemplar, até cometer o deslize de perder sua arma às vésperas de sua “formatura”. Ainda assim, suas atitudes passam longe do bom senso: ela engana o beduíno para obter sua ajuda e descarta-o friamente assim que encontra seu rifle. Ele, mesmo ao perceber que foi enganado, diz que a ajudaria do mesmo jeito se ela tivesse dito a verdade. Logo, fica claro que os dois personagens não passam por mudança alguma de valores. Mais do que isso, evidencia-se a percepção da soldado de certo e errado, priorizando o dever e ignorando a humanidade os possíveis inimigos.
Já no sagaz e intenso Cólera, temos a mesma postura impiedosa e fria dos soldados aplicada aos membros de um vilarejo, que querem acabar com o “monstro” que passou a viver nos arredores. Em ambos os casos, a força se sobrepõe à empatia, transformando quem poderia ser visto como um semelhante numa mera presa. Mas, ao final, Cólera se mostra mais espirituoso: a aberração – que é na verdade um rapaz com um estágio avançado de cólera – é alvejada e cai na represa que fornece água ao vilarejo. Num brilhante uso do karma, é justamente a investida contra o doente que disseminará a doença entre eles.
Em seus poucos minutos, Cólera transmite seu recado de forma poderosa, condenando o pensamento extremista e violento daqueles que não praticam a empatia ao contato com aqueles que são, de alguma forma, diferentes. E, se em Cólera vemos os danos da ignorância coletiva, a trama de Deserto complementa a mensagem, evidenciando o comportamento egoísta de uma personagem aparentemente íntegra, quando afasta dos seus iguais.
A seleção de filmes que abriram a 25ª edição do Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo foi, sem a menor dúvida, bastante variada, indo desde um clássico absoluto do formato até uma animação feita a partir das mais modernas técnicas de computação gráfica.
O primeiro filme exibido foi Labirinto Eletrônico: THX 1138, feito em 1973, pelo hoje renomado e badalado diretor norte-americano George Lucas. O filme em questão tem seus méritos enquanto exemplo de cinema não-narrativo e esteticamente interessante por fazer uso dos recursos de transparência e opacidade (conceitos estes que aprendemos em aulas de comunicação visual nas faculdades de cinema atuais). Mas o fato é que a ideia de um futuro sombrio dominado pela frieza tecnológica, por já ter sido exaustivamente discutida e explorada tanto pela literatura quanto pelo cinema contemporâneo, acaba soando um tanto datada. Além disso, outros cineastas também fascinados pelo tema, assim como Stanley Kubrick em Laranja Mecânica ou David Cronenberg em Videodrome, conseguiram abordá-lo com mais profundidade e melhor fluência narrativa.
Em seguida, tivemos o curta colombiano Leidi (2014), dirigido por Simon Mesa Soto. Vale destacar o fato de que este filme foi, recentemente, vencedor na categoria de melhor curta-metragem no Festival de Cannes. É inegável que o filme conta com um ótimo trabalho de direção, possui boa fotografia, etc. Porém, em termos de roteiro, é bastante raso, e não foge ao já lugar-comum do cinema de caráter social praticado na grande maioria dos países latino-americanos. A propósito: é óbvio que tal comentário não significa que eu não reconheça a importância e necessidade de se retratrar a realidade de exclusão social e má distribuição de renda que caracteriza a quase totalidade dos paíse latino-americanos. Eu apenas gostaria de ver uma maior diversidade temática e de gêneros sendo praticada aqui fora do eixo norte-americano e europeu de produção cinematográfica. De qualquer modo, conforme já mencionei, do ponto de vista técnico, Leidi tem lá seus méritos.
Tivemos também o belíssimo Three stones for Jean Genet (2014), dirigido por Frieder Schlaich. O curta foi rodado em película 16mm, com linda fotografia em preto e branco e imagem granulada. Trata-se de uma grande homenagem ao dramaturgo e poeta marginal por excelência Jean Genet. E conta com narração e presença da eterna musa indie Patti Smith. Para aqueles individuos que, assim como eu, já passaram dos 30 anos e são fãs ardorosos de ambas as lendas citadas (Jean Genet e Patti Smith), a nostalgia com certeza bate forte e é preciso se segurar para não cair em lágrimas de emoção. Obrigado, Frieder Schlaich, por essa obra-prima incontestável!
Na sequência, vimos We Are Not Amused (2013), dirigido pela britânica Vicki Bennet. Trata-se de um bem-humorado curta de animação (que aparece utilizar a técnica conhecida como rotoscopia), retratando a influência das mitológicas musas gregas do conhecimento, nas artes em geral. A ideia é muito boa e divertida, apenas acho que a diretora poderia ter extendido um pouquinho mais a duração do filme para desenvolver melhor o tema.
Por fim, tivemos o ótimo Meu Amigo Nietzsche (2012), dirigido por Faustón da Silva. Em termos técnicos, o curta é bastante simples e até mesmo convencional. No entanto, a ideia central da trama: um garoto humilde que encontra jogado no lixão um exemplar de Assim Falou Zaratustra e, a partir daí, tem sua visão de mundo completamente transformada pelo livro, é simplesmente genial! Isso sem contar para quem ainda não o assistiu o igualmente hilário desfecho da trama. Em resumo, Meu Amigo Nietzsche é um ótimo exemplo de como bastam apenas uma câmera no tripé e uma ideia na cabeça (somada a um elenco amador) para se fazer um bom e extremamente criativo curta-metragem.
O que mais me prendeu a atenção nesses dias de festival foi a representação das mulheres nas diferentes culturas que o integraram.
Logo na minha primeira sessão, latino-americana, me deparei com Solecito, de Oscar Ruiz Navia, da Colômbia. Estrelado por dois jovens selecionados em um casting em um colégio público, o curta-metragem traz a história de um amor inocente. Uma garota marcante tanto pelos piercings e acessórios como pela sua forte personalidade; segura de si, corajosa e que, através de um ótimo diálogo, regado de doses certas de inocência e malícia de ambos os personagens, nos revela uma mulher que no fim, acredita e aposta no amor. Como todas nós. A fotografia é impecável, e as tremidas de uma câmera na mão podem parecer inexperiência de início mas, a mim, caíram como uma luva à inexperiência dos personagens que vivem pela primeira vez uma história de amor.
As mostras brasileiras também trouxeram mulheres que valêm ser lembradas. O que lembro, tenho de Rafhael Barbosa (Alagoas) traz a temática da doença de Alzheimer representada por duas mulheres de muita força. O ambiente é de uma família muito simples, que vivia no interior, uma mãe criando dois filhos sozinha. Com a idade, veio o Alzheimer e a filha é quem passa a cuidar da mãe por toda a sua vida. A fotografia e o modo como esse tema tão triste foi abordado são muito delicadas; as personagens, apesar do sofrimento, me passaram uma profunda paz interior e algo que poderia trazer uma carga emocional forte e pesada é retratado com extrema sutileza.
Da Suécia veio a história de uma mãe solteira e cheia de desejos. Game, de Ylva Forner, se passa na sala de estar de Elizabeth, uma mãe que volta de um encontro ruim e se depara com Adam, amigo de seu filho adolescente, jogando videogame na sala. O garoto não parece se constranger muito com a situação e convida Elisabeth para o jogo, que primeiramente recusa, mas se deixa levar pela inocência da situação e termina por aceitar. Os dois passam a se divertir, ao mesmo passo que o desejo nos olhos de cada um vai surgindo. O diálogo entre eles começa banal, evolui e os aproxima cada vez mais. Uma belíssima fotografia e ótimas atuações nos levam ao mundo de cada uma das personagens; Elizabeth vê em Adam um mundo onde suas preocupações não existem, a juventude. Adam projeta em Elizabeth a experiência, o amadurecimento.
Outro forte retrato cultural da mulher foi abordado em Mais de duas horas (Bishtar az do saat), de Ali Asgari, do Irã. Porém, essa que poderia ter sido uma narrativa forte e emocionalmente intensa, se perdeu nas linhas de um roteiro fraco. Um casal de namorados infringe as leis religiosas de sua sociedade e pratica o sexo antes do casamento. Por problemas de saúde, o casal passa a noite atrás de um hospital que aceite tratar da mulher sem que ela apresente certidão de casamento. Sem encontrar outra saída, a mulher aparentemente se suicida. O curta não me agradou, vi nele uma fotografia despreocupada, diálogos que não se aprofundam muito e uma abordagem muito vazia de um tema que traz tanta carga emocional na bagagem.
Do Uruguai veio um dos melhores curtas que assisti nesta edição do Festival. A Mulher Quebrada (La Mujer Rota), de Jeremias Segovia, combina tudo que uma boa ficção deve ter. De início uma mulher gravemente ferida chega a um prédio e pega o elevador. Todo em preto e branco, e trabalhando muito bem os elementos de luz e sombra que essa técnica proporciona, sua viagem até o sexto andar é o ponto de partida de um suspense conduzido pelo olhar da câmera, e que aos poucos revela detalhes dos seus ferimentos e direciona o espectador à decifrar o que pode ter acontecido com essa mulher.
Um senhor entra no elevador e, em um timing perfeito, revela-se que este, que aparentemente iria se deparar com uma mulher coberta de ferimentos, é cego. E daí começam a surgir os componentes cômicos da narrativa, em meio a todo o suspense. O desfecho segue os mesmos passos; a mulher entra em um apartamento e o olhar da câmera continua a nos conduzir à descoberta do que aconteceu alí, em meio a um ótimo jogo entre a direção de arte e a fotografia. O fim traz uma dose certa de comicidade e, para mim, uma metáfora à força, determinação e inocência da mulher.
O prazer de ver um quadro antigo, daqueles clássicos, com figuras humanas posadas, vestidas com roupas claras, que nos permitem – quando paramos para contemplá-las – imaginar uma história ou contexto para elas. Esta sensação, de nos perguntarmos de onde vem as figuras pintadas, onde estão, porque estariam ali, como viviam, do que gostavam ou tinham medo…É um prazer visual que conquista e sugere, sem ser autoexplicativo. Assim é Carrossel (Merry-go-round), de Esther Löwe.
Fotografia contrastante, muito claro e escuro, remete às telas de Caravaggio. Um quadro sem data nem país identificado. Um universo sombrio onde duas crianças vivem, sem explicação do onde ou por quê. Simplesmente estão e dominam o espaço, uma espécie de sótão escuro e cheio de objetos sinistros. São crianças aparentemente abandonadas e sozinhas, cheias de sujeira, arranhões sem curativos e roupas antigas.
Além da própria imagem, a relação fraternal entre os dois pequenos – da irmã mais velha que brinca e é protetora do irmão mais novo – desperta tanto a atenção quanto o cenário e o jogo de luzes. Curiosidade e um certo frio na barriga surgem com o suspense presente a todo momento: o que acontecerá a seguir? Do que ou de quem eles se escondem? Alguém ou algum ser vai aparecer? Mesmo sem compreender a situação e de pouco ser revelado, uma coisa é certa: os sentimentos vividos pelos dois irmãos podem ser facilmente assimilados. Ansiedade, alegria, entusiasmo, medo. O espectador é jogado no meio desse relacionamento fraterno e fantástico.
Ouvi algumas recepções negativas ao filme, principalmente pela falta de uma explicação ou pela sensação que ele cria de que algo está para acontecer, mas não acontece, o que é decepcionante. Eu já vejo de outro jeito. Tudo pode ter acontecido ou ainda irá acontecer, como se nós tivéssemos tido a oportunidade de espiar um universo paralelo, ao qual não pertencemos, rico em detalhes e perdido no tempo e espaço, cheio de coisas para serem observadas e sentidas. Um quadro com figuras que deixam de ser estáticas por alguns minutos e te conduzem para um além quadro ainda por se construir, longe de qualquer desapontamento.
Raquel Arriola
Carrossel está na Mostra Internacional 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas