Olhar os ecos sobre Espectro restauración, dirigido por Felippe Mussel

por Barbara Bello

Quando falamos em metade de um bioma afetado por chamas, falamos em morte. Especificamente, a que pretende a desaparição. Lembro de Vital Farias cantando sobre a floresta: o que se corta em segundos gasta tempo pra vingar. Realizado em meio a um incêndio no Pantanal, Espectro Restauración (2022), de Felippe Mussel, intercepta a rapidez do fogo examinando-o a partir do som. Enquanto os passos do progresso avançam emudecendo, olhar para os ecos da floresta é colocar-se em posição de sentir e lembrar o que se perde.

Um espectrograma atravessa a tela ao meio deixando rastros de uma violência extrema. Sua audiovisualidade convoca no corpo imagens tão incapturáveis quanto inescapáveis. Um incêndio como esse é obliteração e, assim, procurar modos de registrá-lo é dificultar sua efetivação. Não há imagem que alcance, mas precisamos delas para pensar. No espectrograma, o azul sonoro de muitas vozes vai se tornando inteiramente amarelo conforme o incêndio se aproxima. O fogo se sobrepõe. Parece um trecho de película queimada, uma imagem cujo dado central é a ausência. Palavras-azuis são cravadas sobre o amarelo: la naturaleza tiene derecho a la restauratión. A partir daqui, opera uma inversão: o fogo cessa, voltamos à floresta vivente. Ouvi-la depois do fogo é aliviante e assustador. Tive medo diante do encontro entre a palavra restauración e a sensação de irreparabilidade. O que existe depois que o fogo passa?

A impossibilidade do silêncio absoluto faz do som, no limite, um dado incontornável. Enquanto a voz da floresta e as marcas da violência ressoam é preciso perguntar o que seria uma escuta sensível. Através de um movimento vai e volta, Espectro Restauración convoca isso. Em seu gesto de montagem, o registro se desdobra numa imagem que ecoa. Para imaginar novos possíveis, é preciso tomar dimensão das perdas e se entender ao lado dessas outras vidas.

 

Por dentro do desconforto sobre Nua por dentro do couro, dirigido por Lucas Sá

Por Larissa Armesto Snege

Com simbolismos e texturas, o curta provoca reflexão sobre sensações ambíguas. A fotografia é satisfatória ao olhar, pelos elementos alinhados e simétricos. Ideias sobre comida são ressignificadas: ora ligadas ao conforto e familiaridade, ora a imagens de faca, moscas e morte. O desconforto é gradualmente incitado, através do cenário desleixado.

Perguntando sobre inseticidas ao comprar carne, a protagonista de Gilda Nomacce revela que suas intenções e do curta não são óbvias. Cada vez mais
elementos estranhos são postos: mortes, facas e sujeira que, interpretados por uma fotografia com contrastes e de simetrias, transmitem um prazer estranho,
estimulando reflexão sobre a estranha atração e satisfação que o ser humano por vezes sente pelo grotesco.
A narrativa transita por essa ideia. A protagonista flerta com o esquisito: alimenta sua planta carnívora e limpa sujeiras sanguinárias sem repulsa. No clímax, ela sequestra uma garota através do bolinho, mutila-a e utiliza das partes para alimentar uma criatura misteriosa. Ela se delicia, esfregando-se no sangue e satisfazendo-se com os grunhidos da criatura, a sujeira, e a dor da vítima. Segundo a psicanálise, o ser humano tem um lado sombra que sente prazer com sofrimento. Mesmo que de modo inconsciente, submerso, e até negado, o prazer misto ao desconforto é parte da psicose humana.

O bolinho azul, cor escassa em alimentos na natureza, inspira a estranheza. Mas os confeitos remetem ao lúdico, trazendo inocência. E seu nome Céu Azul é quase um spoiler do final. Há humor de compensação sutil e brasileiro, um respiro em meio ao caos. “Você vende cupcake?” “Não, só bolinho”, falas que trouxeram risadas a
sala de cinema.

Um filme sensorialmente ambíguo: confortável e perturbador, como passar por um acidente e esticar o pescoço para ver mais. Leva o espectador à conexão com seu lado sombra e polêmico. Nua por dentro do couro nos provoca a despirmo-nos e entrarmos em contato com esse lado que nos torna humanos.