A intensidade como linguagem do cansaço sobre Zagêro, dirigido por Márcio Picoli e Victor Di Marco

por Giuli Gobbato

Quem conta a nossa história, se não pudermos nós mesmos? Também na primeira pessoa, assim começa o filme Zagêro (2024), que conta a história de Ian — ou melhor, ele conta sua própria história. Como a maioria das pessoas com deficiência (PCDs) antes dele, também foi internado numa clínica psiquiátrica pela própria família. Filho híbrido de autobiografia e mockumentary (sátira documental), o curta é protagonizado por Victor Di Marco, ator PCD, acompanhado pela verdadeira equipe de filmagem num documentário fictício gravado na instituição em que Ian está internado. Outras versões da sinopse incluem “Nesse filme, todas as cabeças de equipe são pessoas com deficiência. Sim, isso é uma sinopse.” e “É tão normal ser normal, não é?”, já estraçalhando a quarta parede antes mesmo de assistirmos ao filme.

O conforto autorizado pelo gênero da ficção se mostra frágil com a claquete em tela, registrando o filme “Doc aleatório” com “Diretor: padrão” e o “Câmera: 1 homem”. Tal generalização poderia causar distanciamento, ao ser parcialmente lúdica e demonstrar uma estrutura ficcional, com nomes e situação fictícios, que sugerem a ideia de que qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Porém, aqui não há acaso. Zagêro e sua claquete em tela apontam as mesmices dos documentários, comentando o cinema nacional e a cultura real do nosso país. E em meio a tantos profissionais, do audiovisual e da saúde, que estão dormentes no sistema engessado para tratar do assunto, Ian é o personagem mais lúcido ali, o mais verdadeiro, o mais desperto. A equipe registra com paciência sua voz exaltada, sua maquiagem colorida, a tinta verde espalhada pelo seu corpo e sua dança sensual ao som de funk alto. 

Todos exageros banais quando comparados à verdade escancarada das pessoas com deficiência no Brasil. Acompanhadas da perspectiva pessoal de Ian, números e taxas de exclusão são ditados por ele durante sua terapia de desestresse: uma “aula cu(linária) para fazer um bolinho”, como ele se refere. Já no uso de suas palavras ele reconhece a ironia da situação, e termina a sessão com um buraco socado no meio do bolo. É esse desabafo intenso que resulta da tentativa de interrupção do protagonista pelo diretor, manso e servo da narrativa falsa da vida com deficiência. Como já aponta o título e sua grafia extravagante, estão errados em censurá-lo: o protagonismo também é do exagero, já cansado de ser redatado.

O roteiro e nosso orador assumem a exposição literal para contrariar a ideia de que o cinema não pode tratar o espectador como burro, se ele não tem empatia. O exagero e a intensidade são revertidas por Ian em linguagem do cansaço e do desabafo. Como se a gravação fosse seu diário falado, ele fala com a câmera e conosco com frequência. Pergunta ao diretor: “Tu queria tá no meu corpo?”. O silêncio dele – e possivelmente do espectador, que em sua maioria, não é PCD – mostra a angústia de lidar com tudo isso de forma lúcida. O prédio da clínica se revela em ruínas. Tão fraco como a verdade que sempre contaram para nós e para Ian, de que a internação é para seu próprio bem. Diretor e personagem se misturam na saudação final, agradecendo pela atenção e interditando o prédio e a mentira. Doa a quem doer, a verdade sobre a realidade PCD não é demais para ninguém.

Por apresentar o paradoxo da normalidade do exagero, não surpreende Zagêro estar justamente na mostra nomeada como “Pane no Cis-tema” – Mostra Brasil 11 do Kinoforum. A escassez de filmes sobre deficiência no cenário de festivais nacionais também é um paradoxo – o exagero na ausência. Zagêro é o retorno da dupla de diretores gaúchos Márcio Picoli e Victor Di Marco ao Kinoforum, depois de realizarem “O que pode um corpo?” (2020), o primeiro filme da história da seleção oficial do Festival de Cinema de Gramado a ter uma pessoa com deficiência como produtor. Mais exagero ainda é perceber que a mesma dupla de diretores sentiu a necessidade de retornar pessoalmente a um festival para manter a temática viva e deixar bem claro: inclusão não é quando um representante da minoria conquista seu lugar dentre os “normais”; é quando existe tanta pluralidade que não dá mais para apontar a diferença e se torna demais ser normal.

Biografia: Giuli Gobbato é cineasta e escritora. Bacharel em Cinema pela FAAP-SP, foi montadora e diretora de som em diversos projetos, além de dirigir e roteirizar dois curtas independentes. Na escrita de ficção e crítica, busca discutir a acessibilidade no audiovisual, partindo da sua vivência com dor crônica e TEA. Também faz parte da equipe administrativa da plataforma literária Maratona.app, que pensa a leitura de forma acessível e emocional.

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