CORPO: TRINCHEIRA ABERTA ENTRE O EU E O CAOS – Mostra Brasil 3: Estranhas Relações
por Adriana Gaeta
O corpo na modernidade ocidental é a marca do indivíduo, sendo o traço mais visível do sujeito. Em um mundo onde as relações sociais, econômicas e de produção são volúveis, o corpo se torna o limite entre o eu e o outro. Os filmes da Mostra Brasil 3 investigam, cada um à sua maneira, os tensionamentos criados a partir dessa percepção. A relação entre corpos fora dos padrões normativos e a nossa sociedade capacitista; o corpo fetiche como a interface entre
duas pessoas que já se amaram; o envenenamento do solo, que também nos mata; e o corpo que se desconectou das forças da natureza são alguns dos aspectos levantados pelos cineastas da mostra.
Possa Poder, de Márcio Picoli e Victor Di Marco. Victor, que também atua no filme, tem em sua trajetória trabalhos que trazem como elemento narrativo a sua própria vivência enquanto pessoa com deficiência. Esse tema é conduzido através da trajetória de três personagens, Lucas, Luiza e Bia, em busca de uma oportunidade de trabalho. As recusas que recebem são tão excludentes quanto a própria cidade, que embora inclua elementos de todas as formas geométricas possíveis em sua arquitetura, rejeita a diversidade de corpos e individualidades.
É no transbordamento dos desejos, da água que escorre do copo, dos afetos e do cotidiano compartilhado através da irmandade desses corpos dissonantes que as personagens encontram forças para resistir e se tornarem visíveis. E a beleza do filme, sua força maior, é a humanidade desses corpos, expostos além dos estigmas de heróis ou vítimas.
Corpo Celeste, de André Sobral e Renata Paschoal, tem como protagonistas Letícia e Fernando, que se reencontram em uma sala de sexo virtual, onde Letícia trabalha como camgirl. É a partir desse não lugar, onde o tempo é literalmente dinheiro, e que passa tão rápido quanto a aparição de um cometa, que eles têm em dez minutos o desafio de curarem as feridas de dez anos de um relacionamento mal resolvido. A fotografia transforma os espectadores em clientes da camgirl. Conhecemos Letícia, ou melhor, Natasha Hot, esse corpo objeto, ora fragmentado, ora superdimensionado, através de closes, sempre a contento do fetiche de quem paga. Aos poucos, Letícia emerge das lembranças, e o que sobra é o corpo memória, inteiro e tridimensional.
Nonna, de Maria Augusta V. Nunes, aborda o uso de agrotóxicos em uma pequena comunidade rural e as consequências para os moradores. A Nonna é ao mesmo tempo a avó e a menina, passado e futuro, comprometidas, em sua integridade física, pelos venenos lançados nas plantas e animais. Já adulta, Ana volta para a casa de sua infância, e para dentro de si mesma, para se reconectar a sua ancestralidade.
Os últimos dias de duas amigas, de Rodrigo Lavorato, é, de todos os filmes apresentados, o mais ousado em sua linguagem. Duas amigas decidem ir a um retiro espiritual para morrerem juntas. Lá, se reconectam às forças do feminino e se transmutam em água, árvore e ar, durante um ritual noturno. Através do realismo fantástico, e com uma sequência impactante, valorizada pela montagem, os corpos das duas amigas se metamorfoseiam diante dos nossos olhos, assumindo a dimensão de veículo do subconsciente, do imaginário e do cosmos ao (re)viver seu caráter sagrado.
O humano e o corpo são indissociáveis nas representações coletivas; os componentes da carne são misturados à natureza, ao cosmos e ao outro. Em sociedades que permanecem comunitárias, o corpo é a ligação da energia coletiva, e é através dele que cada pessoa é incluída no grupo. Por outro lado, em sociedades individualistas, o corpo é um elemento que interrompe, que marca os limites da pessoa, isto é, onde começa e acaba a presença do indivíduo. Cada um dos filmes nos leva a uma zona cinzenta, onde os corpos extrapolam o plano, onde os rostos encaram o espectador, rompendo a zona segura entre ele e a tela.
São filmes que nos obrigam a participar, a olhar para corpos que, assim como nós, procuram reafirmar sua identidade.