DEMÔNIA – MELODRAMA EM 3 ATOS
Subversividade na família tradicional
O ousado roteiro de Fernanda Chicolet e a direção conjunta de Cainan Baladez trazem um humor escancarado. Exibido nos programas Humor 3 e Mostra Brasil 5, o curta paulista “Demônia – Melodrama em 3 Atos” é, provavelmente, a obra mais subversiva do festival. Tanto em técnica quanto em roteiro, o curta demonstra uma coragem e uma abordagem humorística que adentram o campo do discurso político-religioso, de sociedade e de establishment familiar.
No que concerne ao humor, há a abordagem escrachada mirando claramente um aproveitamento cômico do chamado “barraco na rua”, mas também há os pontos irônicos mais sutis que posicionam a tradição da família brasileira como canal de hipocrisia, montada pra ser algo que não se confirma na realidade diante das expectativas sociais e religiosas.
O curta-metragem ataca, pelo humor do subtexto, o modelo monogâmico e a própria noção vigente cristã de casamento. Mostra que as crises que afetam a traição de um marido que tem experiências homossexuais são, por vezes, menos traumáticas do que o discurso tradicional-religioso aponta. Uma vez que o peso individual para a traição se mostra apenas verbalizações de fundo falso, qualquer benefício não calculado oriundo dali resulta facilmente em passaporte para a aceitação plena do novo status a três.
A religiosidade cristã, inclusive, aparece bem fraca, uma vez que sua adaptação ao desfecho lucrativo e de fama é também muito fácil, contornável. Atos falam mais que palavras e, ainda que as palavras de proibição e repressão sejam muitas, o comportamento não as acompanha. Os paralelos com a realidade são todos cômicos e escrachados, mas não são absurdos: de fato, os comportamentos estão sob controle mais das suas consequências do que do discurso que os tenta gerenciar. A lei pela lei não significa controle, assim como nenhuma repressão pode funcionar quando a ação não é exposta. Isso explica contextos de traição e hipocrisia.
A técnica do filme é subversiva per si. Não é usual se utilizar de montagens e edições anticlássicas, que assumem o baixo custo de produção e que, ao invés de trabalhar com sutileza de transições de planos, fazem propositadamente uma passagem marcada, notada, explosiva. Apesar disso, o primeiro ato mostra maestria em decupar classicamente com um ótimo plano-sequência. Assim, temos a certeza de que subversividade técnica fora escolha de linguagem para acompanhar o estilo humorístico ímpar, tudo isso sem poder ser menosprezado por aqueles que pregam apenas uma normatividade para um cinema técnico.
Os atores também merecem menção. Eles conseguem uma naturalidade incrível no que fazem e seus personagens convencem até demais. Dá aquela impressão “problemática” e gostosa de achar que o ator é o personagem. Eles parecem bem humanizados em suas contradições pessoais e em seus pontos de ancoragem
ética. A performance disso tudo tem traços e expressões muito facilmente reconhecíveis sem necessitar de grandes esforços para encontrar paralelos na realidade. Até o policial (agente da lei) consegue arrancar risadas com o patético esforço em florear a sua “fala oficial”, para a imprensa (aquele que muda o comportamento quando está sendo olhado). Olha aí a lei e a ordem representadas com comportamento tosco, advinda pelo efeito do olhar do outro, novamente.
Essas características tornam o filme próximo do gosto popular; ele namora a linguagem dos memes de internet e consegue expressar muita coisa junto a um roteiro que tem algo próprio e importante a dizer em subtexto. Trata-se de uma comédia politizada que contrabandeia entre as risadas uma ideologia e uma posição, contra o discurso que normatiza relações sociais hipócritas tal como o casamento monogâmico heteronormativo e seu status quo.
(Rogério Henrique Gonçalves)