“NEM DE NEON ELES ENXERGAM A GENTE” – Fantasma Neon, de Leonardo Martinelli
por Larissa Snege
Fantasma Neon, vencedor do prêmio de melhor curta-metragem no Festival de Locarno (Suíça) e de cinco prêmios no Festival de Gramado, retrata uma temática urgente, com um olhar sensível e uma abordagem única. Conta com uma trilha sonora e coreografia que unem os principais ritmos urbanos do Brasil como o funk e o samba, atualizando o gênero musical para atender as demandas da obra, além de uma montagem inteligente e carregada de significados. O musical é introduzido perfeitamente por um número musical que explora a temática e revela a abordagem da obra, apresentando a bela voz de João (Dennis Pinheiro) e emoldurada por uma bela fotografia.
A história do protagonista João retrata a invisibilidade dos entregadores de aplicativo como seres humanos perante a sociedade: seus sonhos, desejos, dificuldades e até mesmo a fome que sentem ao entregar comida para tantas pessoas, enquanto ironicamente estão vestidos com uniformes bem chamativos.
A escolha de figurino dos personagens ressalta esse olhar que se limita à sua ocupação; em grande parte do filme, os entregadores estão com as mochilas que utilizam para fazer entrega nas costas, ou bem próximas ao seu corpo. Os momentos em que João retira de fato sua mochila é quando está dançando, e essa dança transborda o seu ser, que precisa se desprender dessa condição que limita sua expressão artística.
Outra questão apresentada pela narrativa da obra é como a arte e a cultura são potências importantíssimas tanto para a expressão da individualidade quanto para a mudança social. E como essas expressões, quando consumidas ou produzidas por grupos com pouco poder monetário e social como os entregadores, são marginalizadas e vistas como atos subversivos pela sociedade. O uso de saxofones apoiados em posições em que se apoiam armas é um símbolo forte e impactante disso, e a montagem favorece essa relação para transmitir a impressão dos trompetes estarem apontados para João enquanto ele dança.
A montagem de todo o filme é muito inteligente, mas há um destaque para a segunda cena, que coloca um depoimento em voz over enquanto imagens de diferentes entregadores passam em tela. Essa montagem transmite coletividade: o depoimento é individual, mas evidencia que essa realidade de dificuldade e destrato é vivida por todo o grupo de entregadores. Ainda nesta cena há o cuidado e a sensibilidade com as demais pautas sociais através do depoimento de uma entregadora mulher, que passa dificuldades intensificadas pelo seu gênero.
O espectador é diretamente provocado a olhar nos olhos dos entregadores em planos onde os personagens são filmados olhando diretamente para a lente da câmera. Esses planos promovem um papel ativo do espectador, gerando sensações e reflexões acerca da temática do filme. Uma provocação final é realizada na montagem que compara a morte por atropelamento de um entregador com um copo que cai na mesa durante uma refeição. Ela alerta para a vulnerabilidade que tantas pessoas passam para que outras possuam o conforto de receber diversos tipos de produto em casa. Uma desigualdade amarga vivida por centenas de fantasmas neon.