O ANIMAL PREFERIDO DE DEUS

Injustiça e impunidade

O animal preferido de Deus tem o mundo feito pra ele e nada contra. Todos a servi-lo e a perdoá-lo pelas suas próprias misérias, o melhor de dois mundos. Esse suspense uruguaio, dirigido por Marco Betancor e Alejandro Rocchi, está na Mostra Latino-Americana 3, e tem no clímax final a grande sensação de injustiça e impunidade como consequência de uma situação extrema, mesmo quando a almejada sensação de justiça para o espectador acompanharia a consolidação de um crime de vingança pessoal.

O filme começa com um plot de suspense em uma casa isolada. Retornando para casa à noite, uma das protagonistas encontra uma chave na porta. Desconfiada, ela volta para o carro e liga para o marido/namorado. Esse início pré-título serve bem ao propósito de inserir o gênero suspense.

Apesar disso, o filme tem uma linha editorial que logo reconstrói o plot inicial. Deixamos de ter a sensação de invasão na casa para sermos conduzidos a uma possível traição do protagonista junto à estranha que entra para tomar um chá. A presença da estranha o deixa acuado e as mensagens no celular, ainda durante o chá, atestam que algo aconteceu.

Nesse momento, a personagem estranha, partindo de uma análise dramatúrgica, está com status superior, pois tem clareza do que está fazendo e possui informações que, além de desorientarem o espectador, ameaçam e acuam o único homem da trama, que passa a ser personagem de status inferior, acuado, impotente.

O desfecho é uma ação planejada, de catarse pessoal da moça. O animal preferido de Deus novamente se livra de consequências mais sérias para si, mas mostra bastante covardia e impotência logo aos 4 minutos, depois de o título anunciá-lo. Ele é o verdadeiro protagonista do curta.

Um protagonista em violência, covardia, impotência, fraqueza, machismo. A continuidade de sua vida é lamentada pelo espectador e a continuidade de sua existência na nossa memória nos agride. Pior de tudo: é uma situação extremamente real, vivida e revivida todos os dias por mulheres no mundo.

Para um suspense, há uma ambientação sonora muito competente de Gabriel Guerrero que precisa ser destacada: todas as nuances, crises, foleys e sons diegéticos estão, ora com realismo, ora com expressividade, brilhantemente bem adaptadas. Não há nenhum bom suspense que não tenha trilha sonora excelente.

Não é só técnica; é narratividade utilizar som diegético e não-diegético, e saber quando e onde utilizá-los. Gabriel Guerrero desfilou suas habilidades sonoras nesse curta que utiliza um meio não usual de fazer suspense, que não é

sobrenatural e sim real, e que projeta o debate em torno de questões muito atuais e urgentes.

(Rogério Henrique Gonçalves)

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