Ponto de ruptura
Torquato Joel é um realizador de filmes raros, que comunicam sem utilizar a palavra escrita, que contam histórias somente por meio da imagem e do som. A sensação de assistir ao seu último filme na tela grande é indescritível. O realizador disse que Ikó-Eté é o primeiro de uma série de filmes-manifesto a serem produzidos nos próximos anos. Feito com baixíssimo orçamento, o que só engrandece seu feito, esse curta preserva traços comuns a outros filmes do realizador paraibano.
Como Passadouro (1999) e Aqui (2009), o novo filme de Torquato trabalha a linha narrativa por meio de imagens presentes no cotidiano de seus personagens. A televisão presente em Passadouro reaparece em Iko-Eté, mas desta vez ela não é mais objeto de fascínio e alienação. Não existe mais espaço para a televisão, assim como para os produtos da sociedade de consumo e até para a religião.
Iko-Eté marca um ponto de ruptura com os filmes anteriores de Torquato. O registro do passado, como em Aqui, e a narrativa que nos mostra a vida rudimentar no campo e a influência exercida pelo exterior, como em Passadouro, surpreendentemente integram Iko-Eté. Desta vez, no entanto, Torquato nos impulsiona a algo.
Os índios potiguaras, famosos pela bravura e pela resistência ao domínio português, habitam até hoje a Paraíba. E é num desses índios que um boia-fria se torna quando não suporta mais a religião, os meios de comunicação e o consumismo. Quando não suporta mais sua condição de vida e não vê outra alternativa de mudança.
Em uma região canavieira da Paraíba, nosso personagem bóia-fria se despe de suas vestes e parte para a mata, num transe em que surge sua essência indígena, potiguara, guerreira. A transformação do boia-fria em guerreiro-índio aponta um novo caminho no cinema desse talentoso cineasta e professor paraibano.
A revolta esteve presente em seus filmes; uma revolta velada, silenciosa, como se estivesse acumulada em anos e anos de sedimentação. O que Ikó-Eté realiza é a passagem para a ação. A ação contra o status quo, a usina de cana, a devastação da mata, a condição de pobreza, a vida alienada. Jesus não é a solução para o bóia-fria potiguara, muito menos o pastor e seu discurso transmitido pela televisão. A mensagem religiosa repetitiva e maçante surta o trabalhador ao invés de mantê-lo sob controle.
Se Torquato Joel pretende fazer mais filmes manifestos como Ikó-Eté, mal posso esperar pelo próximo. A transição do cinema de Torquato marcada por Iko-Eté deve levar a filmes ainda mais instigantes e que revelam muito sem “dizer” nada.
Renato Batata
Ikó-Eté está na Mostra Brasil 4. Clique aqui para ver a programação do filme
Ótimo destaque, Renato. É muito interessante como o diretor conseguiu transpor em imagens esta angústia e a solução, que vem por meio do retorno às origens indígenas. Um filme crítico e plasticamente muito bonito.