RETRATO DO BRASIL NAS ENTRELINHAS – Mostra Brasil 8: Fantasiando
por Nicole Namie
Aos olhos daqueles que todos os dias vivem a dificuldade da realidade brasileira, surpreendem-se aqueles que olham para o mundo com a inocência e esperança que existe na fantasia.
Com formatos diferentes de se contar histórias, a Mostra Brasil 8: Fantasiando apresenta curtas com abordagens em assuntos importantes e necessários. Contagiando sutilmente, pela sua maneira de contar as histórias, até aqueles que diariamente escolhem fechar os olhos aos preconceitos e violências estruturais presentes na sociedade brasileira.
A fantasia, em sua essência, existe para além da criação de uma realidade paralela desassociada das vivências cotidianas dos indivíduos. Os cinco filmes apresentados mostram em suas entrelinhas o Brasil que todos querem esquecer, mas que através da sensibilidade ao retratar os fatos, poderão abrir os olhos dos que permanecem desacordados.
Através do realismo fantástico, Blackout, de Rodrigo Grota, trata do esquecimento não só pessoal, mas de uma sociedade que se perdeu pela chegada de um meteorito. A história vai muito além de uma realidade inexistente perdida numa distopia; o meteorito serve como causalidade de uma vivência bastante presente na vida dos brasileiros. Retrata todos aqueles que tiveram suas vidas perdidas e esquecidas. Yuri busca sua mãe assim como muitos procuraram por seus parentes perdidos nas mãos da ditadura militar. O filme fala àqueles que procuram pelas memórias dos brutalmente assassinados apenas por existir – e não se encaixar no que a hegemônica parcela da sociedade espera. Fala sobre o sentimento perdido e, por caminhos experimentais, traz o espectador para a ansiedade da procura com um final incerto.
Ela Mora Logo Ali, de Fabiano Tertuliano de Barros e Rafael Rogante, faz a crítica à falta de acessibilidade e exclusão extrema dos que não se encaixam nos padrões esperados pela sociedade. Neste curta, a fantasia permanece viva dentro da vendedora ambulante que se preenche na oportunidade de conhecer e contar histórias diferentes, através do contato com uma desconhecida num ônibus, esta lhe apresenta pela primeira vez uma narrativa contada a partir de um livro. Tomada pela emoção da história, a vendedora consegue transportar o seu filho para um mundo diferente do que eles vivem. Enquanto pessoa com deficiência, o filho se vê preso às limitações criadas por uma sociedade inclusiva e facilitada apenas aos que se encontram dentro da tipicidade imposta socialmente. O analfabetismo impossibilita ainda mais o acesso dessas pessoas ao que todos deveriam ter direito. O curta traz um retrato do descaso social de uma sociedade que prioriza apenas aqueles que ocupam uma posição de poder e privilégio. As relações construídas entre os personagens tiram suas vivências do esquecimento diário político e social.
A Menina atrás do Espelho, de Iure Moreno, constrói uma narrativa de busca e encontro dentro e fora de si. Gustavo e Helena se encontram e compartilham os seus mundos, que no fundo são um só. Uma vivência que parece ser apenas pessoal revela os monstros enfrentados por todes aqueles que não se encaixam dentro dos padrões heteronormativos da sociedade. A linguagem sensibilizada permite identificação e o encontro daqueles que se sentem representados, e a aproximação dos que não querem entender, ou não enxergam vivências distantes das suas.
Inspirado nas obras do americano Edward Hopper, Selfie de Alex Sernambi traz para a discussão a solidão feminina e o encontro de uma em muitas. Usualmente acomodada na calmaria das vivências do campo, uma fotógrafa se encontra e se perde ao entrar em contato com a velocidade da cidade grande. Ela vê a si mesma numa outra. Um retrato social importante sobre reconhecimento e união feminina, mas que infelizmente não retrata as paisagens urbanas brasileiras. O formato diferenciado chama a atenção, mas a falta de conectividade com a realidade diária de histórias e espaços do Brasil distancia a identificação e criação de sentimentos compartilhados pelo ambiente.
Tamo Junto, de Pedro Conti, coloca em debate e valoriza a vivência do povo brasileiro. A animação traz consigo a história do dia-a-dia pandêmico dentro das comunidades, que por si só precisou lutar para resistir. O formato contagiante consegue levar com leveza os espectadores para perto da subjetividade da união de todos. Diante de uma situação de emergência, o descaso do governo colocou a população frente à necessidade natural do ser humano de existir coletivamente. Infelizmente não foram todos que quiseram entender e aprender com a extremidade e perigo sanitário-social causado pela pandemia. O curta consegue transportar os espectadores de fora para uma realidade que muita gente não viu.
Todos os curtas são unidos pela fantasia, conectando-se pela forma e pontualidade em não se desligar do ponto histórico-crítico presente na sociedade brasileira. Eles conectam os espectadores sem grandes impactos, e com uma construção empática contagiante. As histórias fantasiosas não existem paralelas às questões reais. São através delas que podemos visualizar de fora e compreender melhor as nossas e as outras realidades.