A publicidade venceu: sobre o Cinema em Curso
por Rafael Dornellas –
Serge Daney, crítico da Cahiers du cinéma, já na década de 1980 atentava seus leitores e escrevia sobre como a publicidade e suas práticas ganhavam força e se inseriam nos filmes de forma já naturalizada pelos novos cineastas. “A vizinhança já turva entre o cinema e publicidade já não era mais razão de ser”. Gerações de diretores se postavam inocentemente assimilados pela legitimação cultural e estética da publicidade. Daney alertava para como o cinema já não era mais uma “aventura do olhar”. Era claro para o crítico francês que entrávamos em uma fase em que a imagem era impressa através de inúmeros arquivos e spots televisivos de um mundo já visto e codificado: que não podia, ou não conseguia mais, ser redescoberto. As circunstâncias eram observadas de um patamar superior, de uma concepção pré-catalogada de centenas de anúncios destinados ao lucro e as imagens não mais resultavam de um exercício de olhar – de descobertas –, mas de conceitos pré-fabricados resultando em filmes que mais pareciam, a princípio, vender algum produto.
Destas primeiras análises às conjunturas contemporâneas entre publicidade e cinema pode-se perceber filmes produzidos a partir de práticas publicitárias de criação: apuro técnico impecável, um juízo específico e duvidoso daquilo que é considerado belo, uma “grande ideia” balizadora por trás de uma obra, abstrações frágeis e fuga do conflito para o etéreo “belo” porém vazio. O que se vê, portanto, são filmes carentes de uma história concreta, de um olhar frontal para o conflito e de um receio de se aproximar de suas personagens – de uma não-tomada de posição e uma recusa inconsciente de olhar para o mundo.
Ter as sessões de filmes universitários como um panorama é, primeiramente, a percepção de algo sintomático também presente no cinema brasileiro em geral – uma possível consequência do tecnicismo contemporâneo que procura, cada vez mais, formar técnicos capacitados para o mercado de trabalho. Procuro através deste texto levantar algumas questões a partir de filmes presentes nas sessões Cinema em curso – e um filme da Mostra Brasil 9 – e suas estratégias de linguagem, sob a ótica da publicidade, de práticas provenientes da comunicação: vídeos institucionais e internet, e de caminhos tomados pelo cinema, já a algum tempo, no ambiente contemporâneo.
A busca pelo belo, informativo e ágil
Look-fashion film, Mulheres desenhadas e Janelas imprimem a estética publicitária em suas belas imagens e afastam ainda mais o cinema de sua constituição. Look-fashion film carrega em seus planos a recusa pela progressão narrativa. Assume o sensorial e tece seus quadros buscando a sucessão de símbolos e a perfeição – publicitária – da imagem, que mais parece comercializar um produto do que desenvolver uma sensação.
Mulheres desenhadas contenta-se com a informação, como vídeos institucionais realizados dentro de empresas. Não há busca pela progressão em seus temas. Sua estética informativa e regressiva é freada na superfície e segue, até o final, na mesma baixa intensidade. Em Janelas, a internet, o vídeo sob a ótica do YouTube, o formato ágil, narração sagaz e bits que se distanciam muito do cômico e do experimental que o curta parece flertar. Vemos enfim a imposição da linguagem da internet, de vídeos publicitários e institucionais, sobre a lacuna dramatúrgica.
Vazio abstrato
A abstração como válvula de escape. As não-tramas etéreas que parecem possuir em sua concepção uma “grande ideia presente por trás do filme”, mas que carecem de conflitos reais e concretos, se fazem sentir em O asfalto e Debaixo das cerejeiras. Nesses filmes há a sugestão, o simbolismo, a metáfora, aquilo que não se vê mas deveria se sentir: a busca pela reflexão. Personagens melancólicos – também uma tendência – perdidos meio à contemporaneidade opressiva e turva. E uma câmera que olha seus objetos de modo ainda mais cauteloso e sub-reptício. O resultado é o vazio. Uma carência de concretude que catalise as abstrações e atinja o sentimento desejado no espectador. Não há materialidade o suficiente para a apreensão do público – sem algum amparo material, as tramas já nebulosas se dissolvem em um desguarnecido enigma impossível de se decifrar.
Debaixo das cerejeiras dedica sua quase totalidade para criar sua atmosfera, seu apreço pelo desconhecido no corpo do jovem protagonista, pelo mistério que a câmera parece querer descobrir junto dele. Pequenas pistas são lançadas apenas para aumentar a expectativa. Expectativa esta que se abandona antes mesmo de ser quebrada e revelado o cadáver no clímax. Temos uma sucessão de bem fotografados exercícios de sensações sem posicionamento.
O asfalto explora um acontecimento trágico e o suspense por sua repetição. A tentativa de hipertrofia do prenuncio do desastre, do momento do acidente, de composição da dúvida daquela personagem enigmática desfalecida, da progressão da descoberta do espectador para finalmente em seu final a revelação impactante. Mas mais uma vez, a assepsia da imagem frígida excessivamente bem tratada, o protagonista vazio e perdido meio à metrópole. A carência do choque, da tomada de posição e da exploração das intensidades nas interações. Não há conflito, não há suspense, não há sentimento.
A abjeção do YouTube
Vídeos filmados e postados na internet de atrocidades e aberrações, que dia-a-dia são manchetes e temas de programas de TV e agora estão nas telas de celulares, são apropriados e expostos pelo filme Este ambiente está sendo filmado?, curta universitário presente na Mostra Brasil 9.
A narração o carrega com tom sério e o coloca naquele patamar que observa o mundo de cima, pregando sobre as mazelas e os pensamentos humanos, distanciado, intensificando seu peso já excessivo. O exercício do olhar se revela uma seleção da violência cotidiana presente dentro de um grande catálogo de imagens que é a internet e uma realização de escolhas dentro dos próprios vídeos: congelamento da imagem, aproximação dos rostos, divisão de tela. O exercício de descoberta de mundo inexiste. Ao contrário, dá lugar a uma perversão fílmica cegada em meio a procedimentos de agressão a seu espectador.
Apesar da diferença de formato, Este ambiente está sendo filmado? remete a filmes contemporâneos como Relatos selvagens e diretores como Lars von Trier. Ou seja, um cinema perverso, sádico, que retrata a violência do ser humano acobertado por sua estética autoral, por um cinismo amparador da crueldade construída. Novamente: a carência do olhar, a observação vil do ser humano, de cima, confirmando a deformidade de um mundo já descoberto – a construção abjeta de um filme que se afunda em suas próprias imagens, banalizando-as ainda mais e tornando-se apenas mais uma janela sensacionalista além da internet e da TV.
Bem longe da alteridade
Por fim Mancha de sangue no porcelanato, um curta metragem resultado de uma tendência do cinema brasileiro contemporâneo de tentativa de discussão, contextualização e problematização da classe média/alta e seu papel social (O som ao redor, Casa grande e Brasil S/A, por exemplo). Partindo de um anseio de aprofundamento crítico sobre uma classe e exposição da mesma em observações de costumes, são desenvolvidas muitas vezes obras límpidas, higienizadas, em que a visão autoral do diretor suprime o objetivo primeiro. Terminamos pela anti-dialética. Pela exposição de excessos e caricaturas que prega para convertidos em salas de cinema constituintes, em sua grande parte, de uma classe média pronta para rir de si mesma.
Mancha de sangue no porcelanato explora o que já havia sido cena do filme de Kleber Mendonça. Uma assembleia de condomínio. Desta vez um condomínio residencial de alto padrão, fechado, cercado por muros. Não há um caminho a ser tomado pela discussão. Nem uma reflexão acerca das origens de tais comportamentos mesquinhos. Há, apenas, o riso fácil, o esgarçamento do que de pior pode haver nesse convívio social e a exposição de tais caricaturas para o público. Distanciamento irônico nefando: consequência também da publicidade – limpidez e brilho frente a uma ideia pré concebida de mundo. Higienização da linguagem. Não há contradição, alteridade e uma possibilidade de problematização de valores. Há somente o olhar debochado e cínico sobre um universo matematicamente construído para criticarmos suas interações com um riso no canto da boca.
Ausência de obstinação
Concluindo, é importante resgatar o texto de Luiz Carlos Oliveira Jr, publicado na revista Contracampo em 2008 com o título de A publicidade venceu, em que ele não somente retomava Daney, mas alertava que além da diluição perversa da estética publicitária no cinema, a crítica – e último refúgio de resistência a tal prática – parecia haver também perdido a capacidade de percepção: “A publicidade e suas práticas mais hediondas se naturalizaram no cinema (brasileiro, mas não só). Nessa visão de cinema, o ‘criar’ não é mais identificado a um trabalho dinâmico com a matéria; é um retrocesso simbólico, onde a ideia passeia livre, leve e solta – a ideia sobrevive à perda de vínculo com o pensamento e com o olhar.”
A crítica em Daney, assim como em Oliveira Jr, é diagnóstico de práticas naturalizadas dentro do cinema, mas que se distanciam dele próprio, e, se não são novidades no contexto contemporâneo – pelo contrário, estão presentes há algumas décadas no meio – se desenvolvem, progressivamente, despercebidas e perniciosas, tomando de assalto aqueles que seriam os últimos redutos de combate a elas.