DA SUPERFÍCIE ÀS PROFUNDEZAS, E DE VOLTA – O Túmulo da Terra, de Yhuri Cruz
por André Quevedo Pacheco
“Descia ao túmulo mais profundo
Reunia os farelos de mim
E você me erguia:
– Sim, eu!”
Assim termina o poema de Yhuri Cruz O Túmulo da Terra (Pretusi), que o poeta-diretor utiliza de base para criar seu filme homônimo, em que ainda atua como protagonista. Nele, uma figura preta é perseguida por quatro outras, até que cada uma encontra uma máscara de granito, sendo a da personagem principal sem rosto.
Nas ruínas da atualidade: segundo o realizador, o curta seria uma tradução audiovisual do seu poema, que buscaria encenar um processo de subjetivação, em que a personagem principal encontra um rosto na ausência de rosto. Essa busca se associa a uma tentativa de retrabalhar os traumas da subjetivação e racialização de pessoas pretas, diretamente associadas a sistemas de violência social. Segundo texto de Castiel Vitorino Brasileiro, O Túmulo da Terra abriria um questionamento sobre esse processo: o que, na subjetivação preta, vale ser enterrado? E o que, como as máscaras, vale ser desenterrado?
Pedreira abaixo no ontem: pode-se encontrar na década de 70 um antecessor direto do filme – Alma no Olho, do ator e diretor Zózimo Bulbul. Zózimo atua e dirige um curta que retrabalha a racialização através da performatização da diáspora. Além de terem como único som peças inquietas de músicos pretos americanos, ambos os filmes usam da comunicação gestual e do contraste entre preto e branco para criarem alegorias visuais que questionam a posição da pessoa preta e apresentam alguma saída. Zózimo ao fim quebra as correntes da colonização e tapa a câmera com seu corpo preto. Mas no caso de Yhuri, qual o sentido de tapar a o próprio rosto com a superfície preta, afirmando uma não identidade?
Escavando o túmulo do antigo: fazer um “filme de início do cinema” com pessoas pretas parece ser uma das motivações do curta. A narrativa esgarçada e o tema da perseguição sem motivo aparente lembram filmes dadaístas e surrealistas. As maquiagens intensas marcando as linhas de expressão dos rostos e a atuação gestual e antinaturalista remetem a filmes expressionistas. As trucagens de desaparecimento e reaparecimento são claras referências aos truques de mágica cinematográficos de Georges Méliès. Como o próprio nome do projeto em que o curta se insere diz: pretofagia. Mas se essas referências ao cinema europeu coabitam a geleia geral do filme, onde estão as tensões entre esses movimentos, e mais importante, as tensões entre o cinema branco de países colonizadores e o cinema preto de país colonizado? Quem comeu quem?
Sob o sol do agora: no poema, o protagonista é oprimido até encontrar, solitário, “a inconsciência geológica daquilo que não detém medo”. Porém, no curta, Pretusi Sem Rosto é sempre conduzido pelos outros Pretusis. Eles agem sobre ele, que reluta assustado, mas depois se identifica a eles, esfregando seu rosto assim como esfregam o seu, levando ao progressivo encontro de sua máscara. Em seguida, porém, deixamos de acompanhá-lo, pois a máscara retirada da terra é a de Pretusi II. Se o poema encena a trajetória do Sem Rosto, qual é o sentido dessa elipse no filme? Apesar de não ter razão aparente, ela chama atenção para o encontro de máscaras pelas outras facetas da identidade de Pretusi, que ao fim são colocadas em posição de equivalência em planos iguais em que ostentam suas máscaras. Assim, a subjetivação de Sem Rosto acaba sendo retratada como semelhante à dos outros Pretusis, que se identificam com imagens de si, sendo a máscara aqui não um simulacro, mas uma representação. Cada faceta encontra sua imagem e seu espelho: estamos na identificação narcísica. Mas e a faceta diferente de si? Ela é igual às outras, mas lhe faltam olhos, nariz e boca. Por que aquilo que foge de si teria de não falar, não ver e não respirar?
Aqui, a não identidade tem lugar no sistema de identificações narcísicas, mas somente ao se manter sem expressão.