UM BRASIL DE HOJE, ONTEM E AMANHÃ – Mostra Brasil 3 – Perplexidade
por Carolina de Oliveira Silva
A Mostra Brasil 3 – Perplexidade apresentou filmes que ultrapassam a percepção temporal cronológica usualmente compartilhada e descrita nos livros de história. Ao propor uma série de tensões que explicariam o hoje brasileiro, o conjunto de filmes explicita a necessidade de compreender tempos e espaços de maneira simultânea, colocando em questão a percepção linear da história: passado, presente e futuro passam a compor, mais do que nunca, apenas um só tempo.
Nesse sentido, a própria sequência dos curtas parece produzir uma leitura cíclica que comunica as incongruências de um país construído sob as bases do absurdo. Intercalando diferentes estéticas – do experimental ao clássico e do ensaio ao documental – os cinco filmes exploram aquilo que é difícil ver, ouvir, relembrar, entender ou aprender – e justamente por isso, devemos fazê-lo.
O ódio funciona muito bem como prólogo ao abrir de maneira quase universal a sua imagem praiana e pavorosa de um latente e irreversível apocalipse. Os pássaros, quase sempre utilizados para invocar liberdade, são agora trancafiados numa vermelhidão que purga a tela. Um som militarizado acompanha a aproximação de uma bola de fogo, o sol, em seu último dia. É o resultado da mão humana que nem é possível de se ver, já que ela mesma fora responsável pelo nosso desaparecimento.
De maneira mais clássica e previsível, mas não menos problemática, A obra final se debruça sobre uma sombra densa da história brasileira: a ditadura militar. A narrativa que intercala as temporalidades – o auge da ditadura e a retomada, anos depois, de histórias forjadas no âmago de um Estado autoritário – joga com os dados estéticos do filme de gênero – o policial, por exemplo, construindo uma narrativa em torno do mistério, que não prevê reviravoltas, mas confirma uma condição engessada: o assassino converte-se em herói por meio da aprovação do povo.
Se a ditadura brasileira ainda nos persegue como uma sombra sólida que não pretende se decompor tão facilmente, revelando-se em um terreno ainda fértil para as produções cinematográficas, o ambiente despertado pelo onírico em Per Capita se apresenta numa realidade que relega aos corpos a principal miséria.
Obsessão, violência, depredação e estupro são temas que compõe essas imagens, como num gesto incontrolável de vômito – as imagens múltiplas de carros dos mais diversos filmes que apontam, principalmente para a liberdade, são contestadas pelo cinema pernambucano: estariam os road movies já ultrapassados em suas metáforas? Sim e não. As ações que levam a misoginia são agrupadas pela violência diante de um veículo abandonado, elas habitam a mente de uma mulher acordada pela angústia – a realidade que adentra o sonho e o sonho que se torna real não permitem discernimento. Mas afinal, quando permitiram?
Esse amálgama também serve como terreno movediço em República das Saúvas, que nos força goela abaixo uma série de pronunciamentos de quem se diz presidente em plena crise sanitária num Brasil tão grandioso e ao mesmo tempo tão pequeno. Com uma montagem que inventaria uma realidade nacional explicada pela terra e seu mundo animal, o jogo cômico se faz presente pela recuperação de um dos romances mais importantes de nossa literatura, Macunaíma. As saúvas, denunciadas como as principais responsáveis por sua própria depravação, provocam um questionamento tão incômodo em nós quanto o vai e vem dessas imagens – saúvas, gados, saúvas, burros, saúvas, urubus. Se é possível angariar um papel nessa cadeia alimentar, a pergunta deve sugerir: a que preço?
Em meio a essas inúmeras realidades, a afirmação de uma especificidade – a das mulheres surdas em Seremos Ouvidas – se volta para um dado preocupante na trajetória dos feminismos brasileiros: a de que é preciso ouvir, falar, ver, tocar e sentir em seus mais diversos e possíveis significados. Por meio de depoimentos que se fazem tão diretos e reais quanto as experiências das mulheres que sofrem algum tipo de violência, o curta explora um redimensionamento necessário para tornar o mundo um lugar habitável, acessível e, principalmente, disponível às mais variadas transformações – mesmo depois de sua explosão devastadora.
Os filmes da Mostra Brasil 3 – Perplexidade conseguem, de alguma maneira, pontuar grande parte daquilo que foi acumulado, guardado, restringido em séculos de história brasileira, mas que, ao ocupar um espaço finito, não sabe mais para onde ir e só pode explodir. O prognóstico diante da detonação do país já foi feito: a ideia nunca foi organizar o caos, mas aceitá-lo em suas mais diversas constituições e, quem sabe, especular sobre o que podemos na tela e fora dela.