A Era de Ouro: o palco e a verdade
por Bianca Elias –
A vida em torno de festas robotizadas pelas roupas pretas e o eletrônico tem grau de normalidade que vai dos paulistanos aos cearenses. Não cabe falar de uma pureza de raiz do paulistano que cresceu no coração do progresso econômico, pois quando não motorizada, a identidade mais miscigenada é a sua. Falamos aqui, ou falam Miguel Antunes Ramos e Leonardo Mouramateus, dos efeitos da cidade que perde suas convicções naturais e se transforma em impérios modulares de coqueiros e arranha céus de vidro; homens que se auto enclausuram com a identidade mantida no sotaque e mais nada.
A Era de Ouro aparenta um resultado final (ao menos até agora) de ensaios sobre a vida dentro dos muros invisíveis e sobre quatro rodas. Os realizadores em codireção sintetizam o que é brincar de atuar para a conquista do sucesso profissional e, hoje não desvinculado, pessoal. São tomadas diretrizes de duração de planos, escolhas de cores e palavras corporativas para a imersão no espectro burguês que não se discernem da presença preponderante desses elementos ermos na vida real: um incômodo invasivo toma conta do espectador que, mesmo não indo na contramão da ideologia mercadológica que se retrata, identifica um constrangimento ainda que não saiba qual é. O contato entre Simone e David, que se viram pela última vez no Ceará, acontece pela vitrine do viver em São Paulo e, por conta das tentativas vindas dele, de se resgatar o elo antes vivo e poético entre os dois. Um passado teatral que os conecta respinga apenas na teatralidade de Simone na vida real.
E e Salomão, ambos no festival deste ano e codirigidos por Miguel, em mesmo nível, mas em teor documental, resgatam pelo sarcasmo de suas imagens e silêncio a representação dos estacionamentos e do templo da Igreja Universal do Reino de Deus da mesma maneira em que se perpetua um papel para os personagens da ficção: ao alcance da aprovação em sociedade cria-se um discurso convincente sobre si mesmo e para si mesmo. O Completo Estranho (também em mostra) de Leonardo Mouramateus se situa dentro do mesmo universo em Fortaleza e cria o cenário para falar da sobrevivência conquistada através das máscaras, onde perucas e danças ensaiadas fazem parte de uma encenação pensada para ser verdadeira.
Relações esfriadas pela vida e outras esquentadas pela ideia de ser arte consagram-se e, sem força, acordam no dia seguinte sem esperança para ser. Numa descaracterização dos personagens, que vem sem informações adicionais que não seus nomes e vícios de entonação, poderíamos pensar no filme sendo realizado diegeticamente em qualquer lugar do Brasil, quiça do mundo.
Os dois diretores traçam caminhos que passam pelo entendimento da fraqueza relacional e/ou o fortalecimento inevitável das barreiras de concreto, para que juntos pudessem sintetizar um propósito, um fim em si: o alcance de consciência na retomada da atuação teatral. A Era de Ouro termina com Simone cedendo aos textos por ela conscientemente esquecidos e os declamando em voz alta, aos prantos, exterminando sua outra aparência e dando espaço ao riso por ferir David com seu cartão de visita de vidro – o papel dela o fere, e lhe invade o riso leviano do reconhecimento. Se atuar é estar em palco, então é o palco a única possibilidade da verdade.