Django indígena
Na época de seu lançamento, o longa Django Livre de Quentin Tarantino, que transforma o período escravista dos Estados Unidos num western spaghetti, foi categoricamente criticado pelo também cineasta Spike Lee. “Tudo o que posso dizer é que o filme é desrepeitoso com meus ancestrais”, disse o cineasta engajado. Existem muitas similaridades entre o último filme do cultuado diretor e O Homem Que Matou Deus, do diretor francês Noé Vitoux. Semelhanças que não se limitam à temática das obras, já que o curta de Vitoux parece muito inspirado na estética tarantinesca.
A proposta do filme é extremamente interessante: utilizar um humor ácido e irônico para construir uma crítica política aos crimes cometidos contra a população indígena no país. Ou seja, fazer com índios o que o Django de Tarantino fez com os escravos negros e o que o Machete de Robert Rodriguez fez com os imigrantes mexicanos nos Estados Unidos. O resultado atingido é, inevitavelmente, tão controverso quanto o das duas obras citadas.
Em formato de falso documentário, a produção acompanha o cotidiano do índio Wem Tom, o melhor caçador de homens brancos da região. Nesse ponto o curta se difere dos filmes já citados: o nosso protagonista não vê no ato da caça um exercício de vingança, pois ele, como qualquer caçador, caça por prazer. Não pretendo de forma alguma por em debate os pilares do politicamente correto e taxar esse humor como ofensivo a moral e aos bons costumes. Sou entusiasta desse tipo de abordagem, e acho que vários filmes tiveram um êxito estrondoso nesse setor, como é o caso de Borat, personagem estrelado por Sacha Baron Cohen, que incomodou muita gente lá por meados dos anos 2000.
Compreendo muito bem a intenção do diretor, que fica bem clara através de um dos monólogos do personagem, de nos mostrar o quão desumano são os homícidios de indígenas que acontecem sem qualquer razão por diversas áreas do país e, de um modo geral, terminam impunes, através de uma inversão de papéis para ressaltar o absurdo da situação.Ora, se o homem branco mata um indígena por prazer, por que o contrário seria tão abominável? E é aqui que nasce o meu desconforto. Nesse processo, acho que de certa forma o autor causa um efeito reverso e acaba por desumanizar um pouco o protagonista. Na tentativa – fundamental para esse tipo de filme de protesto – de chocar o espectador constantemente, o discurso as vezes acaba sendo um pouco brutal demais. Ainda não encontrei a necessidade de se ter uma cena em que a tribo faz churrasco de um bebê.
Além dessas questões, o diretor também peca por não saber que rumo seguir, já que o roteiro abrange um excesso de recursos narrativos, esforçando-se desesperadamente em ter um aspecto cult. Narrativa não-linear, fotografia que alterna entre preto e branco e colorida, trilha sonora cheia de batidas eletrônicas contrastando com o bucólico das imagens, tipografia estilizada em cores neônicas e, até mesmo, uma desnecessária metalinguagem: tem de tudo um pouco nos míseros 18 minutos de duração do curta. São tantos apelos estéticos que o assunto central acaba perdendo um pouco de sua força, em meio a esse carnaval de referências a cultura pop.
No entanto, alguns méritos precisam ser dados a produção franco-brasileira. A iniciativa de tirar o indígena do papel de coadjuvante, quase sempre vítima ou marginal – ponto que o próprio Wem Tom menciona em determinado trecho – e colocá-lo não só como protagonista mas também como um anti-herói, é um grande passo, ainda mais quando se leva em consideração que não faz muito tempo que o primeiro ator negro protagonizou uma novela e o primeiro beijo entre pessoas do mesmo sexo aconteceu em um canal aberto.
É importante lembrar do papel intrínseco as obras audiovisuais na tarefa de quebrar preconceitos, e o melhor jeito de fazer isso ainda é através do desmitificação de estereótipos. Em meio a tantas boas intenções, é nesse pequeno detalhe que o filme nos mostra seu argumento mais incisivo.
Henrique Rodrigues Marques
O Homem que Matou Deus está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013