Em respeito à solidão

au revoir

O minucioso controle e planejamento dos gestos, palavras, enquadramentos e cortes parece procedimento minoritário no atual contexto do cinema de caráter mais “autoral”. Em meio à um mar de planos propositadamente esgarçados, gestos “espontaneamente” rarefeitos em seus sentidos e uma certa utilização da ambiguidade como fator pré-legitimador a filmes que se querem “sérios”, Au Revoir, de Milena Times, chega como uma necessária recordação da riqueza e pertinência que a construção cinematográfica econômica e precisa em suas escolhas, sem receio de fazer sentido, pode agregar a um filme.

O corpo da protagonista carrega em cada gesto uma objetividade narrativa que, ao contrário do engessamento que tal escolha dramática aparentemente suscitaria, acaba por pontuar ao longo do filme – aliada sempre à fala precisa e à uma minuciosa exploração espacial – os exatos humores e níveis de familiaridade vividos entre a brasileira e a senhora sua vizinha ao longo da delicada relação ali estabelecida.

O hall do edifício em que moram é a primeira fronteira entre suas intimidades. Encontrando-se através de seus respectivos exílios, as duas mulheres percorrem um caminho de incômodas minúcias. O apartamento vizinho, que a mais jovem, a princípio, adentrava com acanhamento e retidão, passa a ser um prolongamento de seu lar: um imóvel do qual partilha as chaves e a solidão inabitável.

Se a fronteira entre seus apartamentos é logo transposta, a total aproximação entre as duas personagens só esboça se dar por completa sob a íntima e solitária lógica da dor humana, na qual, em sua excruciante plenitude, só é possível permanecer sozinha(o). Quando a jovem esboça partilhar de seu sofrimento, a convalescente senhora necessita partir: Não existe calvário com lugar para dois.

Os últimos planos do filme são os do apartamento da falecida, vemos a brasileira sozinha no quarto de cama vazia e a sala sem seu gato: nem mesmo Hércules resistiu. Idos aqueles poucos próximos de si, restam à jovem a indiferença do espaço e um cilindro de oxigênio, condições típicas para todos nós, exilados.

Bruno Marra

Au Revoir está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Roda mundo, roda gigante

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Ao se utilizar da Arqueologia para problematizar o despejo dos vários moradores das favelas brasileiras (e, porque não, mundiais) destruídas pela especulação imobiliária, A Máquina da Ruína (The Ruin Machine) procura realizar uma arqueologia do presente. Ao projetar um olhar que se quer deslocado temporalmente, o filme procura nos instigar a tomar agora atitudes que o fluxo ininterrupto do tempo não nos permitiria em nenhum outro momento histórico.

O curta-metragem de Bruno Vianna inicia-se com uma breve introdução a respeito da função da arqueologia, dizendo-nos que “o método arqueológico pode ser aplicado a qualquer coisa”, já que seu intuito é o de permitir compreender os modos de vida e de estar no mundo dos vários indivíduos sobre os quais se aplica.

Juntamente ao som das diversas falas e informações em off, nos são apresentadas imagens de indivíduos os quais deduzimos ser arqueólogos. Estas imagens nos chegam saturadas e truncadas em seu transcorrer inconstante, borrando seus contornos conforme se movem lentamente. Vemos ali estampados os traços deixados por aqueles homens e mulheres ao longo do tempo que habitaram a tela.

Toda esta construção fílmica parece caminhar rumo a uma evidente crítica à ação do capital escondido sob a égide do “progresso” e do “desenvolvimento”. Passamos a ver imagens documentais da bruta remoção e destruição de comunidades periféricas. Assistimos àquilo que o filme formula como um futuro sítio arqueológico, ouvimos um morador revoltado gritando aos tratores que aquilo ali destruído não são apenas casas, mas também vidas e histórias de seus moradores.

Temos então contrapostos dois momentos discursivos, um que pretende nos instigar a olhar para o passado e revirarmos suas ruínas à procura de uma maior compreensão histórico-social, e outro que nos coloca ao lado dos moradores expulsos, próximos de sua dor e revolta. Estes movimentos acabam por perigosamente aproximar e associar duas forças: uma delas inevitável à ação do tempo e das catástrofes naturais – como no momento em que um dos estudiosos nos lembra a erupção do Vesúvio que destruiu Pompeia – e outra inerente à expansão destruidora do capital, que se desenvolve às custas da obliteração daquilo que lhe impõe resistência.

O filme parece criticar o ataque sistemático às populações pobres através de uma delicada abordagem da ação destrutiva do “progresso” sob o olhar arqueológico: tanto a natureza quanto os homens destroem, cabe detectarmos a razão, a necessidade e a justiça de tais impulsos para que possamos tomar diante deles a mais correta atitude.

Para um filme que lida com arqueologia, talvez A Máquina da Ruína pudesse ir mais a fundo na problematização desta força que destrói favelas e gentrifica cidades mundo afora: somos apresentados aos efeitos e não às causas. Apesar de interessante este seu ímpeto por lançar um olhar histórico sobre um presente tão comumente desenraizado e alienado frente aos seus alicerces político-ideológicos, suas pesquisas como filme que intenta ir além do senso comum parecem se dar ainda muito superficial e timidamente. O que alimenta A Máquina da Ruína?

Bruno Marra

A Máquina da Ruína está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013