Memórias do Cine Argus: generosidade com o passado
por Rafael Dornellas –
Cidade de Castanhal, Pará: uma fusão entre o desbotado prédio do antigo Cine Argus e uma loja de material de plástico é realizada sob o mesmo enquadramento nos primeiros instantes do curta-metragem. A diferença entre as imagens do velho e do novo é clara. Mais significativo do que sua aparência é aquilo que é produzido nos dois tempos fundidos na transição: em um deles, plástico; no outro, cinema. É desse contraste que Edivaldo Moura usufrui para dar vazão a seu filme, e seu resgate à memória.
Não é a monumentalidade do prédio que é colocada em questão. Não é um olhar monumentalizante. O choque inicial entre arcaico e moderno é necessário para que se construa a partir de então a personalidade do antigo, ou daquilo que restou das memórias passadas. Os frequentadores, funcionários, seguranças, idealizadores, e todas as pessoas que de alguma maneira tiveram alguma relação afetiva com o finado Cine Argus, têm seu depoimento registrado no filme. E esse é um dos pontos centrais de Memórias do Cine Argus: a relação de afetividade e de homenagem ao cinema, e particularizada neste local específico, é sempre mediado através de pessoas, de suas falas.
O caráter humano se faz ainda mais necessário uma vez que é estabelecido um embate crítico entre o arcaico e o moderno na primeira fusão citada acima. O olhar se volta para o passado, para o humano. O edifício de décadas atrás projetava filmes e resultava em um acontecimento social na interação entre os moradores da cidade. Já o prédio novo é frio, empresarial.
Não havia outra maneira de abordar esse cinema de rua que não essa, de entrega, de abertura sentimental, de uma percepção da necessidade e importância de preservação da memória. O olhar generoso para o passado e para o cinema faz desse um documento honesto acerca de um cinema de rua desativado, e também de um momento histórico para um pequena cidade do Pará.
Sem idealizações gratuitas, os depoimentos também carregam em sua impressão imagética o desgaste e reclusão pelo tempo. Antigas fotos dos rostos jovens são intercaladas às rugas do tempo presentes, e o ponto máximo da humanização desse olhar é o momento em que o filme se atém a falar sobre o seu Duca (idealizador do cinema de rua de Castanhal) e como sua morte representou o fim daquele cinema.
Então a reflexão: a defesa realizada pelos moradores da cidadezinha de um cinema que possua sua recepção presente em tela grande, em um ambiente em que haja interação coletiva, contrariamente à dispersão do vídeo. Há, nas memórias dos entrevistados, a indicação de uma razão social presente naquele cinema – a possibilidade de convívio que era estabelecida pela chegada de um novo filme em cartaz, e a constatação de acuamento e reclusão perante o mundo pós-moderno.
Ainda que a narração do diretor que abre e encerra o filme possa parecer romantizada por demais, ela expõe sua honestidade perante o Cine Argus da mesma forma que os moradores de Castanhal relatam sua relação com esse cinema, da mesma forma também que nos são revelados os diversos cartazes de filmes que passaram por ele, documentando e resgatando a memória – em que o antigo, se não é idealizado em relação ao moderno, nos parece uma opção mais humana, enraizada na experiência de participar de uma sessão no cinema assistindo a filmes de cinema.