Fantasma com cara de boi
O Auto do Boi-bumbá não é feito em Parintins desde a década de 1960. Não deixou recursos sonoros e visuais. Boi Fantasma – meio filme, meio projeto cultural – vai resgatar o Auto perdido a partir de projeções animadas nas paredes históricas de Parintins. Por cima das animações a toada vai sendo cantada como devia ser nos tempos de outrora.
O Auto é divertido e articula figuras da historiografia brasileira: o capitão, o vaqueiro, o índio guerreiro que é batizado. A toada é rápida. A animação abusa de elementos ritmados repetidos, tenta-se chegar a algum ritmo em relação à narração, mas em poucos momentos as duas informações se complementam – e não entram em conflito.
A projeção nas paredes das casas, paredes em que o material de construção e sua estética guardam a memória e a história de Parintins, traduz o significado último do curta-metragem. A memória permanece em suas construções históricas e é sobre elas que vai ser projetado o Auto – a cidade, portanto, o revive em sua própria estrutura.
A escolha para reviver o Auto perdido e, então, fazer deste algo semelhante a um registro visual-sonoro do que fora perdido, poderia ser só a animação ou mesmo a reconstituição viva, organizando um batalhão de pessoas para reinterpretar o Auto sob égide daqueles que o conhecem e o viveram. Mas a imagem que nós temos é latente dessa reconstituição: espectros brancos se animam sobre as paredes da cidade, são como fantasmas noturnos que vieram, a bel-prazer deles, se fazer vivos. O boi fantasma se agita sob a superfície da cidade, assombrando a todos devido tal esquecimento.
A imagem então, além de nos contar a narrativa, é também a memória translada sobre paredes. A falta das pessoas vivas reencenando o Auto na rua faz o curta possuir força: o curta-metragem não é, por si, o estrangeiro que quer reviver as tradições perdidas, mas sim, aquele que guarda em sua linguagem a perda de algo que ainda pode ser recuperado.
Afinal de contas, a voz que canta e que dá depoimentos, é voz de quem é vivo, maior portal das memórias perdidas: os senhores e senhoras participantes da tradição, conhecedores de seu mito e de sua força. A voz é demasiadamente humana e carregada de vivacidade, celebra a tradição oral e se faz presente; enquanto a imagem é morta e vive de luz projetada.
Se faz em Boi Fantasma a contradição entre som e imagem, voz e projeção: um vive e o outro atesta a morte, um relembra o outro recria; e os dois resultam em Boi Fantasma e não no Auto do Boi-bumbá, ainda bem.
Mariana Vieira