No fundo, com coração
por Beatriz Modenese –
ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS
Um menino chamado Léo sai de sua casa na cidade em direção a uma vila de pescadores, para passar as férias na casa de seu primo, Vitinho. A rotina dos dois, que têm provavelmente entre 10 e 13 anos, reduz-se a brincar na praia, em barcos, na areia, juntamente com outros meninos. Já no início do curta, somos apresentados à personagem que o nomeia: Sem Coração. Através de uma fotografia cheia de cores e imagens submersas, vemos a menina capturando um polvo, para depois matá-lo a pancadas – logo começamos a entender o porquê do apelido.
Em dado momento, Vitinho e seus amigos encontram Sem Coração na praia, e a chamam. Somos então remetidos a um outro cenário: uma grande piscina vazia e abandonada, em frente ao mar. A narrativa, que até então seguia uma linha leve e de temas inocentes, transforma-se. Léo, Vitinho e os amigos sentam-se na borda da piscina, enquanto a menina dirige-se ao fundo dela, encostando-se numa das paredes. Um dos meninos agora desce e vai ao encontro de Sem Coração. Abre o zíper da bermuda e a menina levanta a saia; ele introduz-se nela. A inocência prévia de toda narrativa parece agora se perder. Os amigos assistem aos dois, sem qualquer aparente emoção. Léo demonstra um certo incômodo, mas que logo vemos dispersar. Sem Coração e o menino terminam. A menina, ainda sem expressão aparente no rosto, ajeita um pouco a saia. Outro amigo de Vitinho desce ao fundo da piscina, para fazer o mesmo com ela, enquanto os outros, em silêncio, continuam assistindo.
A cena desta vez dá-se em outro cenário. Resgatando o inicial perfil inocente das personagens, vemos estes brincando no mar. No meio do jogo, Léo beija rapidamente Sem Coração – o tipo de beijo que esperamos de duas pessoas na faixa de idade deles. À noite, Vitinho conversa com o primo, buscando descobrir se ele sentia-se atraído por alguma menina – novamente, o tipo de conversa que esperamos deles.
Agora, voltamos à cena da piscina: desta vez, Léo é pressionado por seu primo e os outros garotos a se encontrar com Sem Coração. Com alguma relutância, o menino desce. Inicia o ato sexual, e fala discretamente no ouvido da menina: “Queria te beijar”. Depois, ainda com a mesma discrição – com medo de ser julgado pelos que assistiam – coloca algo, que não conseguimos ver, na mão de Sem Coração. O curta encerra-se com Sem Coração olhando-se no espelho, com planos bem fechados da cicatriz que tem próxima ao coração – resultado da implantação de um marca passo. Léo encontra-se no carro, voltando para sua casa.
Sem Coração é uma grande crítica à sociedade de hoje, à vida sexual que inicia-se cada vez mais cedo, aliciando também muitas crianças ao tráfico sexual. Questionamos a maturidade da menina apelidada de Sem Coração, que consente os atos, nos perguntando se há idade ideal para o início de uma vida sexual. Se não há maturidade, podemos considerar então o coito entre a menina e os amigos de Vitinho, assim como Léo, um certo tipo de estupro?
Os meninos ao importar-se apenas com seu próprio prazer, e não com de Sem Coração, desencadeiam desta forma ações totalmente machistas. A vergonha de Léo de assumir seus sentimentos pela garota para os amigos é outro reflexo da mentalidade machista ali – e na sociedade contemporânea – contida. O fato dos meninos acreditarem (ou pelo menos, fingirem que acreditam) que tais ações não causam sentimento algum em Sem Coração, é mais um fator que contribuiu para a criação de seu apelido. Assim, somos remetidos também ao conceito muito popular nos dias atuais de “sexo descompromissado”. Até que ponto os sentimentos de um e de outro são respeitados? Ou são inexistentes, além do prazer físico?
O curta-metragem dos diretores Nara Normande e Tião, é o tipo de obra que nos faz sair da sala de cinema com um sentimento incerto: um misto de adoração, compaixão e raiva. O certo, no entanto, é a sensibilidade maestral com a qual assuntos tão sérios são lidados.