Um desbunde tátil
Havendo um feixe de luz, a câmera aceita de tudo – a liberdade do equipamento cinematográfico, com a vinda das câmeras Super-8, portáteis, uniu-se também a uma liberdade do olhar e da moral (o “tudo”) do que se registrava na película. A partir de sua inserção na mão do estudante, do amador ou do cineasta, trouxe consigo imagens que antes não eram vistas, nem registradas, abrindo a porta para novos discursos, criando uma utopia de liberdade de expressão diferente do contexto ao qual surgiu no Brasil.
A “limitação” técnica do formato (1/4 da ‘qualidade’ de um filme 32mm), veio a fazer com que o gosto pelo Super-8, hoje em dia, tenha ficado restrita ao aficionado ou ao historiador, levando-nos a esquecer o íntimo acesso que o equipamento trazia ao registro do corpo, da paisagem, da mescla entre aquela coisa qualquer e aquela outra que talvez estivesse ali perto, e que, no filme Super-8, se conectavam como se fossem o mesmo: a buceta e o céu como em Céu sobre Água ou Hendrix e Van Gogh em Jimi Gogh. A Mostra Cinema do Desbunde 1 me fez notar essas delicadezas do aparato, que, como uma luva, couberam na indistinção lisérgica da cultura dos anos 70.
A curadoria da Mostra conseguiu reunir em apenas cinco filmes de Super-8, de cineastas de extensa obra, um atestado vigoroso da versatilidade inconsequente do formato, com suas utopias recriadas e suas associações histriônicas. O Duelo, de Daniel Santiago, foi a única exceção na questão de unificação, pois divorciava o cineasta superoitista daquele do 16mm, já afirmando seu humor e descontração como sua política. Toques, de Jomard Muniz de Brito, mitifica o corpo jovem e belo, cuja inocência convive com o ménage, corpo que fala e estremece, quase virando um videoclipe precoce da música Pelos Olhos, de Caetano Veloso.
Curiosamente, Jimi Gogh também veio a se assemelhar, para mim, a um proto videoclipe – embora isso reduza sua experimentação, traz em mente o lado pop tropicalista do qual os superoitistas pareciam se filiar, adotando aqui uma estética de colagem iconoclasta que sabia apreciar as pérolas de Jimi Hendrix, associando sua guitarra histérica às imagens psicossomáticas de Van Gogh. Tudo podia virar tema, virar um ensaio no Super-8. O ridículo faz parte, claro, e torna muito mais coletiva a experiência na tela.
Agora, os curtas que mais me forneceram uma experiência, visual e corpórea, borrando as barreiras, foram Gato/Capoeira e Céu sobre água. Gato/Capoeira, de Mario Cravo Neto, nos apresenta um corpo, o do Capoeira baiano, e sua harmonia com aquele espaço: descendo as íngremes ladeiras da cidade, o corpo do Capoeira já dança. Não se trata de um olhar distanciado, analítico, e sim um olhar empírico, compactuante, que entra na capoeira e não se limita a seguir seu “protagonista” se há algo interessante acontecendo numa janela próxima. Das anotações mentais, poucas sobraram, além da sensação de “Nossa, desvia!” durante a filmagem da luta de capoeira – há uma adrenalina que caminha junto ao Super-8, trazendo outra camada ao seu registro. Ou refazemos os passos do cinegrafista e algumas de suas associações momentâneas ou ficamos livres a divagar sobre a divagação que se transcorre na tela, passando a escutar-se os sons que não estão lá (o filme é mudo).
Durante a conversa com os curadores após a sessão, levantou-se a questão de uma tentativa de narrativização do filme de Super-8, seja por parte do cineasta-montador ou do público acostumado a enxergar por histórias, e, em Céu sobre água (de José Agripino de Paula), que poderia ser tomado como um mero registro de uma tarde, isso me ocorreu – há um intenso simbolismo em seu registro. Não se tratava de uma tarde qualquer, mas sim de ensaios circulares sobre água, céu, mãe, filha, corpo e os movimentos e reflexos de todos esses fatores, sob uma trilha eventual que convidava à meditação, sobre a purificação do corpo mãe-filha por um céu-mar, ou do mar-mãe pelo céu-filha – lisergia tátil. Há uma dificuldade em se categorizar esses filmes.
A narrativização me veio por uma associação distante, ou nem tanto – o filme Window Water Baby Moving, de Stan Brakhage, no qual, em 16mm ele filmou o parto natural de sua filha, na banheira de sua casa. A intimidade e o olhar curioso e desregrado das câmeras me fizeram ver os dois filmes como irmãos, sequências: Brakhage como a violência natural, e afetiva, do parto e Céu sobre água a lembrança do elo amniótico da maternidade, evocado pela câmera; um filme se destaca pelo vermelho, o outro pelo azul.
A comparação não vêm em vão: para mim, o Super-8 brasileiro, esquecido e escondido, merece um olhar tão afinado e radical quanto àquele dedicado à filmes conceituados como os de Brakhage (que também foi um forte nome no Super-8). Há muito a se escrever a respeito desses filmes e, principalmente, há muito o que se ver.
Rodrigo Faustini
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