Fuga de Casablanca
Cinema is not 100 years old.
No momento em que se completavam 100 anos da primeira exibição dos irmãos Lumière no Salão Indiano do Grand Café em Paris, o cineasta lituano Jonas Mekas proferia seu grito “o cinema não tem 100 anos”, concretizado em um curto vídeo-manifesto de mesmo título, em meio às novas (velhas) discussões que surgiam sobre a morte do cinema. Mekas, que em seus escritos na Film Culture, sempre defendeu um cinema que desse conta das principais questões do homem de seu tempo, pode ter seu grito considerado como otimista em meio a avalanche de profecias apocalípticas acerca do fim do cinema (basta lembrar do filme Quarto 666 de Wim Wenders).
Longe de um purismo infantil em defesa da “nobre” sétima arte, o grito de Mekas, contudo, distancia-se também de um falso entusiasmo sobre a jovialidade do cinema e a da falsa ideia de permanência eterna de modelos de se produzir imagem (principalmente os calcados na captação com suporte 35mm) que se consagraram ao longo do século XX. Muito pelo contrário: o grito de Mekas aponta para a necessidade de se repensar o modo de como se produz imagens, a partir da inevitável mudança (e não morte) do cinema e, portanto, de como as imagens se relacionam com o mundo e o mundo com elas.
Na última década, principalmente, tal equação foi tensionada pela acentuada facilidade de produção e divulgação de imagens. Nesse cenário, em que muitas vezes a imagem e os próprios filmes se tornaram algo banal, o grito de Mekas parece apontar para um pensamento que se instaura quase como obrigatório no processo criativo de qualquer cineasta: por que produzir mais uma imagem?
Idolatria, mecânica, choque
Pouco Mais de um Mês e Alguém no Futuro partem da ideia de uma relação conflituosa entre ato de produzir imagens e o mundo sobre o qual se debruçam. Encontram o sentido de existir dessas imagens ao enxergarem no cinema campo privilegiado para expressão material de uma reflexão cujo único parti pris é o conflito. O resultado do choque entre ato de filmar e mundo resulta em uma matéria que vai de encontro à ideia de imagem como mera idolatria. Assim, partindo de uma situação (no caso de Pouco Mais de um Mês) e de um pensamento (no caso de Alguém no Futuro) aparentemente rotineiros, ambos os filmes traduzem sentimentos e reflexões sobre aquela dada situação, que seriam impossíveis de emergir senão a partir dessa forma conflituosa de cinema.
Em Pouco Mais de um Mês a tensão se estabelece logo na sinopse: atribui ao relacionamento retratado um índice de realidade. Contudo, para além do mero jogo estético entre ficção e documentário sugerido na sinopse, este dado se constitui apenas como ponto de partida na construção da relação conflituosa entre o ato de filmar e o mundo.
Um primeiro plano longo, escuro. Identificam-se algumas formas deitadas numa cama. Os corpos ganham vida, começam a se mexer. No áudio, acompanhamos uma conversa entre o casal. A fluidez e naturalidade da conversa (oriunda do índice de realidade originário da suposta confusão entre real e ficção) em conjunto com a composição do plano induzem a uma dissolução das formas no espaço. Estabelece-se o conflito: os corpos permanecem e cruzam os espaços em Pouco Mais de um Mês, de forma a se chocarem com o mundo delimitado pela câmera.
Dois momentos: no primeiro um dos personagens forma uma “câmara escura” no teto, utilizando uma cortina. A imagem da rua é invertida, ambos discorrem sobre essas distorções enquanto a câmera se mantém na projeção (da câmara) sobre o teto – imagem capaz de se expressar por oposição, por choque entre o que se vê e o que se é – conflito como elemento essencial. No segundo, vemos o casal pela primeira vez juntos em quadro com seus rostos a mostra. O quadro se limita pelos dois. Silêncio e sufoco – novamente choque e oposição – uma apresentação truncada do relacionamento, conflito plausível pela construção empreendida entre o dispositivo e a realidade/mundo que ele olha, e só por isso. Essa dialética extravasa o incômodo que não consegue ser compreendido/expresso pelos seus protagonistas.
Em Alguém no Futuro, por sua vez, o conflito surge primeiramente a partir do pensamento que engendra o filme: inconsistência do presente e do tempo. Estaríamos, portanto, nesse momento, falando de presente e tempo no plano cinematográfico. Contudo, é pela lente da câmera que o mundo é visto, que o mundo é construído, em suma, que o mundo é traduzido (ou se tenta traduzir).
Surge o choque: a imagem de Casablanca – que se encontra quase como um signo vazio, já no campo da idolatria, fruto de anos de reprodução e processamento pelo imaginário, que torna a sua absorção já um processo automático, retirando-a, assim, de seu contexto original – assombra os protagonistas, cisão entre áudio e imagem. Depois a imagem de Casablanca é expulsa e a sincronia audiovisual restabelecida: não é uma resolução/fim do choque com o mundo, restabelecimento da ordem, mas sim uma suspensão, momentânea apenas, que reitera o conflito pretérito devido sua própria transitoriedade e excepcionalidade. Aqui novamente o conflito encontra no cinema campo privilegiado para uma expressão material.
Dessa forma, em ambos os filmes não se trata de um discurso sobre a situação específica que retrata, e sim do estabelecimento de uma poética que encontra na impressão do choque, resultante do olhar para o mundo pelo cinema, na imagem final a ser reproduzida. Assim, mesmo em última instância tal imagem sendo virtual, carrega consigo uma experiência concreta, uma tradução material desse conflito, que tenta esboçar um entendimento acerca de uma possível mecânica do mundo e da existência (entendida aqui tanto como experiência humana quanto a própria existência dessas imagens). Tal tradução não existiria em outro campo a não ser no filme.
Dos riscos
Dois filmes da programação realizam movimento inverso ao exposto acima. São eles: Memória de Rio e O Proustiano de Osasco. Ao contrário da busca pelo choque observada em Pouco Mais de um Mês e Alguém no Futuro, nesses dois filmes ocorre uma neutralização de qualquer possibilidade de conflito, fruto de uma confiança excessiva no extraordinário (pré-concebido) que o mundo traduzido pela câmera por si só pode render.
Em Memória de Rio, o discurso acerca de uma mística em torno das águas fluviais se torna uma redoma de segurança pela qual o discurso irá se firmar como mero encadeamento de imagens do rio Tietê. Estas imagens já saem com um suposto valor atribuído, devido ao caminho supostamente lírico traçado pela fala mística inicial. Não se arrisca nada. A mecânica que se tenta compreender já está posta: o extraordinário pré-concebido.
Risco é o que falta também a O Proustiano de Osasco. No momento mais emblemático do filme, o personagem do documentário é questionado sobre como foi sua infância, ao que ele responde apenas que foi normal. Esse movimento de tentativa de reforçar o extraordinário da realidade que se filma através de um discurso (de novo) supostamente lírico (e aqui isso possui caráter acentuado devido as constantes sobreposições entre áudio de trechos de Em Busca do Tempo Perdido e imagens do retratado circulando pela cidade) se constitui novamente como uma zona de conforto, em que, mais uma vez, a mecânica do espaço e das situações filmadas não emergem.
Em ambos os filmes, os efeitos de deslocamento entre áudio e imagem dialogam mais com uma estética e uma linguagem publicitária que buscam chamar a atenção do cliente para seus produtos em um curto espaço de tempo. Justificar a produção de mais um filme, de mais imagens perante essa lógica, além de confortável, é no mínimo problemático. Anula-se toda e qualquer tentativa de discurso lírico (entendido como forma na qual uma voz central exprime um estado de alma) nesses filmes, uma vez que nada é mais orgânico, não há descoberta/invenção (porque não há abertura), o “extraordinário” do mundo filmado já está dado, pré-concebido (portanto seguro, tranquilo, inofensivo).
Poesia é risco já dizia Augusto de Campos. É necessário o risco do choque, o risco de não ser inofensivo, o risco de fracassar: a abertura ao mundo ao se lançar (um olhar) sobre ele.
Guilherme Maggi Savioli